Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Mulher, de vítima a culpada

Mais uma vez a imprensa presta um serviço exemplar ao reproduzir as declarações dos envolvidos no caso da adolescente paraense. Depois do delegado que chamou a menina de ‘débil mental’, vem a defesa dos policiais – feita por uma mulher. Se o caso é chocante, o que dizer das declarações da delegada corregedora Liane Martins?

Em entrevista à Folha de S.Paulo (6/12), a corregedora declarou:

‘A todos os delegados ela se apresentava como maior de idade. Não acredito que eles estejam mentindo. São pessoas que têm formação. Eles têm responsabilidade, alguma negligência houve, mas não é o caso de demissão. Até o momento, não.’

O problema maior com as declarações da corregedora está na forma que ela encontrou para defender seus colegas: transformar a menina em culpada, no melhor estilo dos famosos julgamentos em que assassinos de mulheres usavam a ‘legítima defesa da honra’ como argumento. E esquece que o principal problema é que a menina não poderia estar na mesma cela destinada aos homens, obviamente com conhecimento dos policiais envolvidos. Ao que se saiba, não há celas mistas no Brasil.

Para inocentar os policiais, a delegada disse que a menina ‘provocava sexualmente os presos’ e que apenas um abusou sexualmente da menina: ‘Os demais [atos sexuais] foram por livre e espontânea vontade da própria adolescente. Ela se deitava na rede dos presos novatos e mantinha relações com eles. Os 17 presos que estiveram na delegacia dizem a mesma coisa’. Mais uma vez, parece natural que uma mulher estivesse entre os homens.

Outro lado do balcão

A corregedora afirmou ainda:

‘Nenhum dos presos ajudou a garota porque, no cárcere, é cada um por si e ninguém se mete na vida de ninguém. Um dos presos confirma que ela gritou e pediu ajuda, mas que não podia se meter, pois ali dentro existe a lei do silêncio… Quando ela saía para tomar banho, mexia com os presos, saía andando, se exibindo nua. Os presos ficavam irritados com ela e a mandavam vestir uma roupa. Ela não criava jeito.’

O simples fato de a imprensa publicar essas declarações é um grande serviço, pois revela não apenas a conivência dos policiais para com os abusos dos colegas, mas, e principalmente, porque revela que dar tratamento diferenciado às mulheres – na luta pela carreira ou por direitos – é uma grande injustiça.

A corregedora teve uma atitude igual ou pior do que a do delegado demitido. Se ela realmente acredita que os policiais não têm culpa, poderia ter se limitado a dizer isso. Não precisava dar um show de preconceito, transformando a vítima em culpada. Culpada por ser pobre e não ter tido oportunidade, como aconteceu com a delegada corregedora, de estar do outro lado do balcão. O lado das mulheres que, ao chegar ao poder, esquecem suas iguais que vivem na miséria e sofrem duplamente com os preconceitos.

O mais importante

Felizmente a imprensa estava atenta ao caso e fez o seu papel. Tão bem-feito que a delegada corregedora – afastada do cargo no dia seguinte à entrevista – declarou que ‘prevaleceu a imprensa’. Na Folha de S.Paulo de sexta-feira (7/12), ela voltou a falar, desta vez se justificando:

‘Tem algumas colocações que foram deturpadas. Eu não minimizei a culpa dos policiais. Por conta disso [da entrevista], o delegado-geral mandou eu me afastar da apuração e designou outro delegado para presidir. Eu tenho que acatar. Prevaleceu a imprensa’.

O jornal encerrou a matéria esclarecendo que a entrevista – feita na Corregedoria da Polícia Civil – fora gravada. O que se espera é que o assunto não morra por aí. Além do fato de haver várias mulheres envolvidas neste processo – da vítima à governadora do Pará – seria interessante discutir o aspecto fundamental dessa história: como uma mulher vai parar numa cela de homens e ninguém faz nada?

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Jornalista