Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Não é ao bispo; é ao juiz que nos queixamos

A expressão ‘queixar-se ao bispo’ já era antiga quando foi capitulada no conjunto de leis que vigorou na Península Ibérica entre os séculos 5 e 8, conhecido como Código Visigótico. Lê-se o seguinte no Livro II, Título II, item XXVIII, encimado pelo subtítulo ‘o poder que têm os bispos sobre os juízes que julgam torto’: ‘Nós admoestamos os bispos de Deus que devem proteger os pobres, e que eles admoestem os juízes que julgam torto contra os povos’.

Vivemos outros tempos, entretanto. Não se pode mais e nem é necessário queixar-se a bispo algum. Em certos países, de que é exemplo o Paraguai, queixar-se ao bispo resultou em sérias complicações para algumas filhas de Deus. O bispo Fernando Lugo, hoje presidente da República, teve uma atuação assim resumida pelo jornalista Augusto Nunes na Veja on-line:

‘Por mais de 10 anos, absolveu durante o dia fiéis atormentados por pecados que o confessor cometeria à noite. Pregava na missa de domingo o respeito a Deus que ignorava nos dias úteis. Pela naturalidade com que espancou o Direito Canônico, não teme o Juízo Final. É improvável que perca o sono com a justiça dos homens.’

Todavia, no caso de nossa República, a aplicação da concordata assinada entre o Brasil e o Vaticano, ratificada na Câmara Federal na semana passada, pode demorar e provavelmente não vai retroceder a ponto de trazer de volta aos bispos o poder que um dia tiveram. É verdade que o próprio título episcopal já foi arrebatado por outras crenças, de que é exemplo a denominação que a si mesmo se dá Edir Macedo, ‘bispo’ da Igreja Universal do Reino de Deus.

Um espaço sem lei

‘Justiça seja feita’, este é o título de uma daquelas reportagens memoráveis, de leitura imperdível, publicada na revista Veja Rio (2/9), com textos assinados pelos repórteres Sofia Cerqueira e Patrick Moraes, e fotos de Fernando Lemos.

A matéria não aborda nenhum dos temas que abriram este artigo, mas apresenta números impressionantes. No centro da cidade, erguem-se imponentes os três prédios do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. São 132 varas, 400 gabinetes e 2.000 salas. Para chegar ali, é preciso vencer um labirinto que começa por seis entradas, dez blocos, 24 elevadores. Mas ainda é pouco! O Fórum do Rio aluga mais seis salas no outro lado da rua, onde está a sede social do Jockey Club. Falta espaço ainda assim. E por isso já começaram as obras que vão erguer mais dois edifícios, com inauguração prevista para 2010. Por seus corredores, que somam 4 milhões de quilômetros de extensão, circulam cerca de 30.000 pessoas, entre as quais 6.000 funcionários e 320 magistrados. Ali estão 1.920.219 processos, quantificados com precisão até quarta-feira (26/8).

Um dos juízes é Luiz Roberto Ayoub, de 49 anos, titular da 1ª Vara Empresarial. Formou-se em Direito pela Universidade Estácio de Sá há cinco anos. Ele está, como todos os habitantes da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, sujeito à violência diária que assola todo o perímetro urbano, sem exceção, com pontos mais perigosos naquelas áreas em que o poder público parece ter abandonado as pessoas a um espaço sem lei, onde imperam, soberanas, hordas e quadrilhas, cada qual com volumosos prontuários de ilicitudes, crimes e demais ações perpetradas contra a pessoa e contra a sociedade.

Palavras com sentido peculiar

Eis um flagrante que ilustra com a precisão e a velocidade de um sequestro-relâmpago o que fizeram com o juiz certa vez, como informa a reportagem: ‘Enquanto comunicava uma decisão por celular, Ayoub foi abordado por dois homens, supostamente armados, que queriam roubar seu carro, em frente à Igreja da Candelária, no Centro’. Menos mal o desfecho: ‘Escapou ileso.’

Esse juiz cuida de uma pilha de processos. Um deles é o da recuperação judicial da Varig, que chega a seis metros de altura, com 205 volumes e 42.300 páginas.

Outro bom exemplo de como as coisas acontecem ali é o caso do desembargador Elton Leme, de 49 anos, titular da 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça. Ele entrou para a magistratura em 1992 e julga cerca de 150 processos por mês. Para espairecer dessa trabalheira, cuida de bromélias em Teresópolis, onde tem uma casa. Sua coleção é considerada a maior do mundo em variedade. Já deu nome a 350 bromélias que descobriu em expedições a matas e serras do Brasil.

A Justiça tem palavras cujo sentido é peculiar. Diz-se de um processo que ele corre na vara tal. Corre? Um dos processos que correm na 11ª Vara de Órfãos e Sucessões é o inventário de número 1911.111.002122-1. Deu entrada em 1911!

Quem vence

Correr veio do latim currere, designando o tempo que um animal ou uma pessoa levava para ir do ponto de partida ao ponto de chegada. Os antigos perceberam que alguns animais corriam mais do que outros. Também corriam no firmamento, segundo antigas observações que enriqueceram o étimo do verbo correr, a Terra, a Lua, o Sol e numerosos astros que tiveram os caminhos desvendados há milhares de anos. Um rio também corria.

Mas os processos têm velocidades que lhes são próprias em cada etapa. O filósofo Zenão, talvez um precursor involuntário dos métodos da Justiça no Brasil, mostrou que uma tartaruga pode vencer uma lebre, mas só no intrincado paradoxo que ele elaborou com sofisticada argumentação. Na vida real, a lebre sempre vencia.

Na vida legal, o pobre pode vencer no Judiciário. Na vida real, vence quem pode pagar o melhor advogado. Os juízes, nestes casos, pouco podem fazer. Eles julgam o que está nos autos. O que está nos autos, está no mundo. O que não está nos autos, não está no mundo.

Estado leigo

De acordo com o Mapa do Judiciário Brasileiro, elaborado em 2008 pelo pesquisador Ivan Ribeiro, o tempo médio entre a distribuição de um recurso e seu julgamento é de 100 dias. ‘Parece uma eternidade, mas o Tribunal de Justiça do Rio é considerado o mais rápido do país. A cada dia são proferidas 5.050 decisões.’

O brasileiro médio pouco recorre ao Judiciário. Em geral, vai apenas quando obrigado. Mas essa realidade está mudando. ‘As pessoas descobriram, por meio do Código de Defesa do Consumidor, que têm direitos’, explica o desembargador Luiz Zveiter, de 54 anos, presidente do Tribunal de Justiça, acrescentando: ‘Com isso, aumentou muito o número de processos e o Poder Judiciário teve de acompanhar’.

Que boa notícia! O brasileiro, que há tempos não pode mais queixar-se a bispo nenhum, vai acabar descobrindo na vida prática de cada dia que o Estado deve ser leigo e que padres e pastores, acompanhados de fiéis de todos os credos, sejam quais forem, devem conviver pacificamente em nosso país e, como todos nós, cumprir as leis vigentes que ordenam a vida social.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)