Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Não estamos lá

Basicamente, aquele filme sobre a vida do Bob Dylan é assim: alguns atores interpretam fases marcantes da vida do cantor. Parece que cada um construiu um Dylan imaginário. Segundo o que li, o roteiro é extremamente ‘surreal e criativo’, os atores estão muito bem e conseguiram transpor para a tela o caleidoscópico talento de Dylan. Bob Dylan é um cara genial. Eu gosto bastante dele! Pessoas como ele – que atingiram esse status artístico – parecem dar aos outros o direito de interpretá-las (como se fossem obras de arte na paisagem do mundo, e talvez seja isso mesmo, oras!).

Mas para que tudo isso, se eu gostaria na verdade de falar sobre o dia das mulheres? Isso sem resvalar para aquelas histórias sobre beleza e maternidade e maternidade e beleza, tão comuns nesse dia. Com o pensamento do avesso, eu fui então, folhear três revistas femininas. Fui ver como elas nos veem. A mim, minhas irmãs, amigas, às mulheres com as quais convivo; mulheres como eu e diferentes de mim, mas mulheres, enfim.

Amor e sexo

E foi assim: na Claudia eu vi mulheres quarentonas com roupas juvenis – é preciso deter o tempo! – mulheres maduras (por exemplo, a talentosa atriz Lilia Cabral está na capa desse mês) com ares sensatos e equilibrados, mulheres de menos de trinta, com deslumbrantes e coloridas roupas; vi consultorias sentimentais, emocionais, fashions, dietéticas; vi casas fantásticas e sugestões para que a querida leitora possa se inspirar e decorar a sua etc. Nada mais bonitinho. A Claudia é uma revista bonita e as mulheres lá são tão lindas, mas tão lindas, que tanta perfeição assusta. Mete medo! Penso que a mulher de Claudia, ainda que descabelada por dores, traições, filhos drogados ou empregos horríveis, será sempre bela e estará sempre de salto alto. É uma mulher de sonhos comportados, aquela de Claudia. Na Claudia, a seção ‘Amor e Sexo’ parece definir o óbvio: sexo para as mulheres apaziguadas de Claudia, só com amor. E, caso haja arroubos, devem ser comedidos.

Já a Marie Claire consegue desarrumar um pouco o cabelo de suas mulheres; elas parecem, sei lá, mais reais. Nela, a Sandra Bullock, na capa deste mês, sorri e seus cabelos parecem levemente bagunçados, ao natural. É como se ela tivesse sido clicada em uma tarde preguiçosa. Sem saltos altos ou reuniões chatas logo de manhã. Mas isso não significa que a MC seja ‘melhor’ que a Claudia.

Apesar de estilosas, modernas e vibrantes (e também coloridas), as mulheres da Marie Claire ainda não se parecem com as que eu conheço, digo, com aquelas que eu vejo por aí, nas ruas (bom, talvez aquelas mulheres andem apenas nos Jardins ou no Leblon; lugares que não frequento, embora tenha uma leve impressão de que nem lá elas andem). Onde estão as mulheres mulheres? Ah, sim, na MC a seção ‘sexo’ é separada de ‘amor’: talvez isso signifique algo. Agora uma coisa eu preciso dizer: as matérias sobre viagens e algumas sobre lugares ou pessoas interessantes, na Marie Claire parecem mesmo mais interessantes.

O direito de ser o que somos

E a Nova, hein? Tão ousada e sensual. Aquelas atrizes da Globo ficam irreconhecíveis lá, com aqueles decotões, aquelas cabeleireiras selvagens, aqueles ares de mulheres sempre dispostas àquilo a qualquer hora. Lá não se esconde o jogo. Mulheres se arrumam, se maquiam, estudam e trabalham, viajam e fazem compras, mas o mais importante, a razão de suas vidas, a verdade absoluta que deve guiá-las é: sou bonita, gostosa e hei de sair com muitos homens! E ponto.

Pois é, e assim, entre estereótipos imaginários ou fabricados por talentosos designers – o trabalho deles é muito bom, deve ser parabenizado e isso não é uma ironia – muitas caras e corpos de mulheres ficaram pairando em um imenso oceano de imagens. E no horizonte desse mar, há toda uma indústria de moda e beleza que deixa as mulheres de Claudia, Marie Claire e Nova realmente deslumbrantes. Inatingíveis.

E no horizonte que se formou ainda há a mídia que se alimenta – reproduzindo e digerindo – disso tudo e ainda há as mulheres, leitoras do lado de cá, como eu, que talvez tentem se achar nesses mares de belezas fake e nunca, nunca, se encontram. Afinal, nós – eu e talvez você – não estamos lá. Aquilo são ideais de mulheres dispostas em quadros, emolduradas por tudo o que o mundo de agora (porque amanhã, tudo muda, este mar midiático é revolto!) considera cool.

E, diante disso, me pergunto: será que um dia seremos amadas pelo que somos de verdade, realmente, com a maquiagem borrada porque não conseguimos segurar o choro quando fomos despedidas, com os quilos a mais aparecendo sob a roupa barata, comprada em liquidação, será que temos o direito de ser o que somos para além do que qualquer revista anuncie como sendo in?

Uma ‘mulher de verdade’

Será que um dia, estaremos lá, de fato, de verdade, nas revistas que só nos querem se formos a imagem pré-fabricada – mitificada e vazia (há raras exceções) – da perfeição photoshopada? Somos caleidoscópicas, interessantes, criativas, doces e amargas, mas só nos querem se cabemos em um manequim 38 (as anoréxicas modelos que o digam) e uma Marina Silva, por exemplo, uma admirável mulher ‘fora do padrão’, que conseguiu sair numa revista feminina, para ter o direito de estar lá, teve que literalmente, mover montanhas.

Mas me resta o consolo de saber que talvez sejamos tão multifacetadas – todas nós, todas mesmo! Talvez sejamos obras de arte, ora e porque não?! – que nenhuma revista – o que são folhas com imagens impressas diante de uma mulher de verdade? – foi ou será capaz de apreender tantos matizes.

Elas bem que tentam… Pobrezinhas.

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Jornalista