Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Nem todos os jornais viram papel de embrulho

É comum, nas salas de aula das faculdades de Jornalismo, professores soltarem anedotas sobre o destino final dos jornais: na feira, como embrulho de peixe. Talvez presos a esse ‘axioma’, desde o último dia 25 de novembro, os chefes de Redação dos veículos de comunicação na Bahia procuram sem autocrítica os culpados pela trágica morte de sete pessoas no estádio Octávio Mangabeira (Fonte Nova), no jogo entre o Bahia e o Vila Nova pela série C do Campeonato Brasileiro. Eles se esquecem de olhar para o próprio umbigo, como se não tivessem qualquer responsabilidade no fatídico episódio.


Felizmente, algumas pessoas ainda lêem jornais – e nem tudo vira embrulho. Porque, afinal de contas, os jornais são feitos diariamente (também) para serem lidos. Pois bem.


No dia 23 de novembro deste ano, uma sexta-feira, dois dias depois de a seleção brasileira jogar no estádio do Morumbi, em São Paulo, contra a seleção do Uruguai, a manchete do suplemento de esportes do principal jornal nordestino (A Tarde) estampou em letras garrafais: ‘A FONTE TAMBÉM É VIÁVEL’. A matéria fazia um comparativo entre o estádio paulista e o baiano e dizia: ‘Vá lá, os erros do Morumbi não justificam os da Fonte Nova. Mas as carências provam que as exigências não assustam tanto’. Nem um pouco.


Conteúdo perfeito


Logo à frente, destacou simples mudanças que poderiam ser feitas pela Superintendência de Desportos (Sudesb) para conter uma torcida que pôs em média 40 mil pessoas por jogo nas arquibancadas durante o ano. E mais: a reportagem indicou claramente que os repórteres procuraram os órgãos competentes para realizar um juízo de valor sobre as condições estruturais da Fonte Nova. ‘A Fonte, até hoje, a Bamor (torcida do Bahia) sacudiu à vontade, sem que autoridades indicassem riscos.’ Ou seja: demonstraram ao leitor que o estádio não só possuía condições de sediar um jogo oficial da seleção brasileira, como também passar por uma pequena reforma e assumir jogos da próxima Copa de 2014. Ninguém imaginava que aquele cenário viraria o palco sangrento de uma crônica de mortes ‘anunciadas’.


Afinal de contas, era um cenário que rendia por jogo, nesta fase final do campeonato, 496 mil reais, com média de público de 53.648 mil torcedores tricolores, como toda a imprensa fez questão de ressaltar. Ganhavam os dirigentes dos clubes, a CBF, a Sudesb, o estado, mas também a imprensa, que vendeu milhares e milhares de exemplares diante do espetáculo midiático em que se tornaram os jogos do Bahia.


A própria Rede Globo, dias antes de o time do Bahia jogar uma partida decisiva pela fase anterior ao octogonal final da Série C, transmitiu em rede nacional uma reportagem que destacava justamente a maciça presença dos torcedores tricolores no estádio desde o início do campeonato. A empolgação pelo espetáculo tomou conta da mídia, que passou a escrever desde então o roteiro desencadeador da crise de acordo com as necessidades do público naquele momento. Era o conteúdo perfeito para o jornalismo esportivo nacional exagerar ao extremo no uso da linguagem adaptada à determinada ocasião e interesse. E o interesse era promover o retorno da seleção ao estádio baiano e Salvador sediar jogos da Copa do Mundo de 2014.


Tragédia em sete atos


O filósofo Schlegel alegaria que o uso corrompido da linguagem verossímil significa tanto quase verdadeiro ou um pouco verdadeiro ou o que ainda pode se tornar verdadeiro. ‘O que parece verdadeiro não precisa, por isso, e em grau algum, ser verdadeiro, deve positivamente parecer verdadeiro.’ E de parecer verdadeiro, sete pessoas viram que para a imprensa a realidade tem pouca importância na transformação do episódio em espetáculo, o que vale é sua possibilidade de gerar entretenimento. Fica a pergunta referente ao papel do jornalismo: informar de acordo com o interesse público ou omitir em nome do espetáculo da indústria cultural? O fato é que todos lucravam com a avassaladora média de público do time baiano, e a informação… a informação ainda era um mero detalhe técnico.


O relatório encaminhado ao ex-governador Paulo Souto desde 2004 pelo Corpo dos Bombeiros, a Vigilância Sanitária e a Polícia Militar baiana ainda não era avaliado com o status de informação factível e de interesse público? Todas as visíveis ferrugens e rachaduras do estádio, que após a tragédia preencheram galerias e mais galerias de fotografias e gráficos, ainda não eram tão visíveis? Tampouco a interdição requerida pelo Ministério Público no início de 2006 era plausível e consistente? Talvez por isso, o anúncio que o novo governo iria construir um novo estádio era encarado como desnecessário. Afinal de contas, a Fonte Nova era viável. Bastavam alguns reparos. Ledo engano da imprensa? Não.


Como bem destacou A Tarde (27/11), era uma tragédia em sete atos patrocinado pelo estado, mas também pela imprensa: omissão ao não expor problemas visíveis; negligência perante a apuração dos fatos e relatórios; irresponsabilidade postergada pela empolgação da Copa de 2014 e o acesso do time baiano à Série B; ganância diante dos espetáculos de público promovidos pelos torcedores do Bahia; parcialidade inconseqüente em prol da reforma do estádio da Fonte Nova em detrimento da viabilidade do governo construir uma nova arena; arrogância e sentimento de infalibilidade da cobertura dos eventos, sem a devida autocrítica de sua participação para a construção do fato trágico; e, por fim, subserviência da redação em relação à publicidade, ao marketing e aos pontos de ibope.


Os limites da opinião


O jornalista Eugênio Bucci, em seu livro Sobre ética e imprensa, define tal procedência da imprensa como ‘síndrome da auto-suficiência ética’. Explica que a arrogância na imprensa a conduz até a seguinte atitude: cumprir seu dever de informar e não de discutir seus valores. Segundo Bucci, ‘o jornalismo já é em si mesmo a realização de uma ética: ele consiste em publicar o que os outros querem esconder, mas que o cidadão tem o direito de saber’, assim como publicar ‘a informação que, uma vez revelada, afeta as expectativas do cidadão…’. E, após a sucessão dos eventos, ficou claro que o objetivo não era promover o amadurecimento da opinião pública sobre as condições do estádio, mas corresponder às expectativas emotivas do público.


O jornalismo, ao contrário do que pregam certos setores da mídia, é o cão de guarda da opinião pública e, sendo assim, muitas vezes, precisa ir de encontro ao desejo do leitor. Portanto, a opinião pública não é a vontade geral de Rousseau, tampouco corresponde aos interesses de uma parcela dominante da sociedade.


A opinião pública é o conjunto de opiniões contraditórias sobre os fatos e os fenômenos sociais que traça, através deste apanhado de idéias e percepções do mundo, a estrutura básica dos valores que dada sociedade escolhe ou procura para si. É o alicerce do sistema democrático, por ser, talvez, a principal síntese dos seus valores. E a imprensa só se confirma como espaço da exposição da opinião pública quando almeja transpor os limites da opinião do veículo e da opinião publicada no veículo de comunicação. Ou seja: quando faz da arte dos contrários a sua opinião.


Quem não tiver pecado…


Ao não discutir o seu papel na construção da tragédia na Fonte Nova, a imprensa baiana acaba por repetir um movimento que se tornou comum na imprensa brasileira. É o exemplo do período em que a mídia ajudou a construir o fenômeno Collor, e, posteriormente fez o mea culpa, ao destroná-lo. Agora a imprensa desandou em denúncias sobre a ausência de investimentos da Sudesb para o setor, passarelas e marquises em péssimas condições, edifícios, viadutos, igrejas e casarões aos pedaços. De uma hora para outra a Bahia começou a desabar e todo mundo só começou a ver isso agora, depois de 16 anos de carlismo e após a morte de sete pessoas realmente inocentes.


Ao se comportar desta maneira, o jornalismo ganha um caráter sensacionalista de fato, porque vira um poder que invade pelo prazer que persegue e que, diante dele, vê um público ouvinte que tem uma espécie de poder que vibra, ao se afirmar como um público que sente prazer em ouvir a vítima mostrar-se, escandalizar-se ou resistir.


É o caso de reportagens de teor emotivo que foram exibidas e publicadas na imprensa baiana, como no dia 1º de dezembro (sábado), nas páginas do jornal Tribuna da Bahia, que explorou uma semana depois a morte do torcedor e agente de limpeza Djalma Lima Santos, 30 anos, uma das sete vítimas do degrau do anel superior da arquibancada da Fonte Nova que cedeu no dia do jogo do Bahia. Sobre tal aspecto do jornalismo, o filósofo Michel Foucault diria que existe um duplo efeito, segundo o qual o poder ganha impulso pelo seu próprio exercício, onde ‘o controle vigilante é recompensado por uma emoção que o reforça; o prazer descoberto reflui em direção ao poder que o cerca’.


O episódio remonta à passagem bíblica em que Jesus Cristo debate com os doutores da Lei e os fariseus sobre uma mulher que tinha sido pega cometendo adultério. Eles colocaram a mulher no meio e disseram a Jesus: ‘Mestre, essa mulher foi pega em flagrante adultério. A Lei de Moisés manda que mulheres desse tipo devem ser apedrejadas. E tu, o que dizes?’ Eles diziam isso para pôr Jesus à prova e ter um motivo para acusá-lo. Lembra bastante a situação do governador Jaques Wagner: demite o craque Bobô, superintendente da Sudesb, ou o mantém? Mas, os doutores da Lei e os fariseus sempre continuavam com a mesma pergunta, como um persistente repórter. Mas, como conhecedor da lei, Jesus Cristo respondeu: ‘Quem não tiver pecado, atire nela a primeira pedra.’


Fica a dica para o governador petista.

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Jornalista e assessor de imprensa na Assembléia Legislativa, Salvador, BA