Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Notas sobre o sentido real do conceito de igualdade

Tenho acompanhado com muita atenção o debate na imprensa sobre a implementação de cotas nas universidades públicas. Praticamente todos os jornais de grande circulação deram destaque ao tema, com proeminência para o jornal O Globo, onde dois de seus principais articulistas, Ali Kamel (contra) e Miriam Leitão (a favor), escreveram vários artigos. O debate não tem dado o destaque merecido à discussão sobre o conceito de igualdade. Creio ser bastante relevante esta discussão. Este texto pretende ser uma pequena contribuição, pedindo benevolência aos leitores para a pouca familiaridade com o jargão do campo jurídico.

Um dos principais e mais fortes argumentos daqueles que são contrários à implementação das cotas como ação afirmativa diz respeito ao princípio da igualdade. Este princípio está descrito da seguinte forma na Constituição de 1988, artigo 5º, caput:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, (…)

De fato, a igualdade jurídica formal é uma conquista do Estado democrático de direito e está diretamente relacionada à queda da aristocracia e à ascensão da burguesia como classe dominante a partir da Revolução Francesa. É certo que a igualdade formal frente aos privilégios de nascimento do período aristocrático constituiu grande avanço, sendo uma das grandes conquistas atribuídas à Revolução Francesa. Sobre a interpretação adequada do princípio da igualdade, assim nos fala Amaral:

A interpretação desse princípio deve levar em consideração a existência de desigualdades de um lado, e de outro, as injustiças causadas por tal situação, para, assim, promover-se uma igualização. É dispositivo constitucional que por um lado representa promessa legislativa de busca da igualdade material e, por outro, mostra a necessidade da conscientização de que promover a igualdade é, também, levar-se em consideração as particularidades que desigualam os indivíduos. (Marcelo Amaral Silva)

Desta forma, faz-se necessária a distinção entre igualdade formal garantida pela constituição no caput do artigo 5º e igualdade de fato, prometida em vários pontos de nossa Carta Magna.

Se a igualdade formal é uma garantia constitucional, também está prevista pela Constituição a garantia da igualdade material. Citemos como exemplo o artigo 3º, inciso III:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

Percebe-se de forma nítida que o legislador sabe da existência de desigualdades. De fato, esta superação só pode se dar com tratamento desigual, com vistas a igualar os desiguais. Assim, tratar com igualdade formal só acentua as desigualdades preexistentes.

Podemos ainda citar como exemplo a previsão constitucional para a busca da igualdade material ou de fato presente no artigo 170, caput e inciso VII:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

VII – redução das desigualdades regionais e sociais;

Livre, justa e solidária

Assim, o debate sobre cotas ou qualquer outra forma de ação afirmativa deve ser precedido por um debate acerca da concepção de igualdade. A concepção de igualdade deve ser dinâmica, de modo a dar conta da complexidade do tema tratado. Tomemos com exemplo o que coloca o ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello:

Pode-se afirmar, sem receio de equívoco, que se passou de uma igualização estática, meramente negativa, no que se proíbe a discriminação, para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos ‘construir’, ‘garantir’, ‘erradicar’ e ‘promover’ implicam, em si, mudança de ótica, ao denotar ‘ação’. Não basta não discriminar. É preciso viabilizar – e encontrar, na Carta da República, base para fazê-lo – as mesmas oportunidades. Há de ter-se como página virada o sistema simplesmente principiológico. A postura deve ser, acima de tudo, afirmativa.E é necessário que essa seja a posição adotada pelos nossos legisladores. (…). É preciso buscar-se a ação afirmativa. A neutralidade estatal mostrou-se nesses anos um grande fracasso; é necessário fomentar-se o acesso à educação (…). Deve-se reafirmar: toda e qualquer lei que tenha por objetivo a concretude da Constituição Federal não pode ser acusada de inconstitucionalidade. (Citado por Júlio César Rossi)

Como pequena introdução ao debate, este não tem nenhuma intenção de esgotar o assunto, nem poderia. Por isso, recomendo como introdução dois textos básicos sobre o tema. O primeiro é do ministro do Supremo, Joaquim Gomes Barbosa, ‘Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade’ (Rio de Janeiro e São Paulo, 1ª edição, 2001, Editora Renovar). O outro é ‘Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade’, de Celso Antônio Bandeira de Mello (São Paulo, 3ª edição 2ª tiragem, 1993, Malheiros).

Para finalizar, esperemos que a vontade do legislador constitucional seja feita quando propõe no artigo 3º inciso I:

Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária.

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Antropólogo e ativista do EnegreSer – Coletivo Negro no Distrito Federal e Entorno, Brasília