Saturday, 11 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Números de uma apuração apressada

Se existe um fator positivo da globalização para a camada média de leitores, ouvintes e espectadores de notícias, este é definitivamente a explosão de informação advinda especialmente com a internet, e que acaba produzindo gente mais crítica, menos crente em tudo o que lê, ouve ou vê. Assim, velhas raposas felpudas das redações e que ainda sobrevivem aos novos tempos têm cada vez mais dificuldade de comprovar em textos teses arquitetadas em reunião de pauta. Da mesma forma, um número cada vez maior de leitores toma conhecimento de como se ‘produzem aspas’ para colocar na boca de fulano ou, simplesmente, repórteres bem-intencionados e que acreditam em suas próprias teorias acabam sendo desmentidos não por cartas dos leitores, mas por seus próprios tropeços na apuração das informações.


A matéria ‘Sem hospícios morrem mais doentes mentais’, de Soraya Aggege, publicada na edição de domingo (9/12) de O Globo, parece padecer de um ou mais dos males assinalados acima. Numa análise atrapalhada dos números, a repórter evoca o que seria um furo jornalístico para concluir que o fechamento dos manicômios no Brasil teria provocado a morte de 41% a mais de pacientes nos últimos cinco anos.


A experiência bem-sucedida dos CAPS (Centros de Atendimento Psicossocial) – um caso raro no Brasil de política iniciada num governo anterior e aprofundada na administração atual, que atende a mais de 300 mil pessoas pelo país afora – é apenas tangenciada. O tom maior da pauta parece vir orquestrado a partir dos acordes da Associação Brasileira de Psiquiatria.


Indústria da internação


É importante notar, porém, que existem divergências. Para Luís Fernando Tófoli, professor adjunto de Psiquiatria da Universidade Federal do Ceará, o contundente furo de reportagem não passa de ‘fanfarrice epidemiológica’. Ele explica que o raciocínio desenvolvido na matéria não resiste a uma singela análise comparativa de dados do Sistema de Informações Sobre Mortalidade (SIM), que estão disponíveis para qualquer pessoa no site do Datasus. O SIM é o sistema que reúne todas as declarações de óbito no país.


Tófoli considera absurdas a premissa e a conclusão da matéria. Para saber se estão morrendo mais doentes mentais seria necessário uma pesquisa específica, o que não existe. O dado objetivo de que houve uma melhoria no registro de mortes no Brasil provavelmente faz toda a diferença. Essa melhoria, segundo o professor, é explicável pelo aprimoramento na captação dos dados sobre mortalidade no Brasil desde 1999. Em números absolutos, entre 2001 e 2005 há uma redução de 30 mil mortes nos registros que antes eram classificados como mortes mal definidas. Quando os registros de morte melhoram, causas que eram antes pouco declaradas pelos médicos, como as diretamente decorrentes de transtornos mentais, naturalmente aumentam.


A tabela abaixo que foi compilada com dados disponíveis na internet, de onde foi sacado o número de 6.655 mortes em 2001 que consta da matéria. É intrigante que a repórter, ao analisar suas fontes, não tenha se dado conta de que indicadores de outras causas também cresceram em grandes proporções (em azul), como os de doenças do sistema nervoso (item VI) ou do aparelho geniturinário (item XIV). Nesses casos não há qualquer evidência de grande redução de leitos. Haveria também uma campanha para matar esses brasileiros?








































































































































Óbitos por causa segundo a Classificação Internacional de Doenças,
10ª Edição (CID-10) por ano de ocorrência. Brasil, 2001/2005


Capítulo CID-10


2001


2005


Diferença 2001-2005


absoluta


percentual


I. Algumas doenças infecciosas e parasitárias


45.032


46.628


1.596


3,54%


II. Neoplasias (tumores)


125.348


147.418


22.070


17,61%


III. Doenças do sangue


5.240


4.999


-241


-4,60%


IV. Doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas


47.800


53.983


6.183


12,94%


V. Transtornos mentais e comportamentais


6.655


8.931


2.276


34,20%


VI. Doenças do sistema nervoso


12.296


16.384


4.088


33,25%


VII. Doenças do olho e anexos


12


13


1


8,33%


VIII. Doenças do ouvido e anexos


129


112


-17


-13,18%


IX. Doenças do aparelho circulatório


263.417


283.927


20.510


7,79%


X. Doenças do aparelho respiratório


90.288


97.397


7.109


7,87%


XI. Doenças do aparelho digestivo


44.393


50.097


5.704


12,85%


XII. Doenças da pele e subcutâneo


1.825


2.014


189


10,36%


XIII. Doenças do sistema osteomuscular


2.606


3.084


478


18,34%


XIV. Doenças do aparelho geniturinário


14.350


18.365


4.015


27,98%


XV. Gravidez, parto e puerpério


1.587


1.661


74


4,66%


XVI. Afecções no período perinatal


34.274


29.799


-4.475


-13,06%


XVII. Malformações congênitas


9.520


9.927


407


4,28%


XVIII. Causas Mal-definidas


135.766


104.455


-31.311


-23,06%


XX. Causas externas (violência, acidentes, suicídio)


120.954


12.7633


6.679


5,52%


Total


961.492


1.006.827


45.335


4,72%





Fonte: Datasus, 2007 (www.datasus.gov.br)


Outro dado intrigante que pode ser encontrado no Ministério da Saúde – e que ajudaria o leitor a entender melhor o contexto – é que a fatia do orçamento da saúde que ia para a indústria da internação hospitalar nos manicômios – de quase 90% – caiu para pouco mais de 50% nos últimos anos. Efetivamente, muita gente deve estar descontente com a desinternação.

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Respectivamente, jornalista; mestre em Psicologia e psicóloga do Instituto de Psiquiatria da UFRJ