Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O apagão judiciário

O presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes disse que, para tomar suas decisões jurídicas, não leva em conta a opinião do homem da esquina. Ele se considera o sacerdote que detém o monopólio da interpretação da palavra divina, então está se lixando para o que qualquer zé-mané pense.


Não lhe caiu ainda a ficha de que o zé-mané também está se lixando para a pretensão de infalibilidade dos doutos. Já não engole que os estudados e os togados estejam sempre certos. Quer que lhe apresentem argumentos, não diplomas, títulos e cargos. Então, o zé-mané sabe que Sarney era, sim, culpado das acusações que lhe foram feitas. E deveria, sim, ter sido expelido da presidência do Senado.


Erro crasso do PT foi privilegiar o placar oficial e esquecer o moral. Salvou Sarney por meio a zero. Moralmente, o placar foi de 10 x 0… contra. As consequências virão, com o tempo.


Responsável único


A última de Gilmar Mendes, como relator, foi conduzir o Supremo Tribunal Federal a mais uma decisão que interessava ao Poder: isentar Antonio Palocci de uma culpa que salta aos olhos e clama aos céus. Linguajar pomposo à parte, o que ele alegou foi:


** O então ministro da Fazenda Palocci sofreu acusação vexatória do caseiro Francenildo;


** Palocci era a pessoa mais interessada, no Brasil inteiro, em desacreditar Francenildo;


** Palocci detinha autoridade de fato sobre o então presidente da Caixa Econômica Federal;


** O presidente da Caixa Econômica Federal (CEF) não tinha motivo real nenhum (o que alegou foi risível) para interessar-se pessoalmente pela movimentação bancária de Francenildo, dentre os milhões de correntistas da instituição;


** O presidente da CEF requisitou os dados e os levou até a casa de Palocci;


** Por uma feliz coincidência, lá estava também um assessor de imprensa;


** Palocci leu;


** O assessor entregou à imprensa;


** Mas, não há como provar que foi Palocci quem pediu que os dados lhe fossem mostrados, nem que ele tivesse ordenado ao assessor para divulgá-los, já que os outros dois não admitiram isso;


** Então, o único que deve responder pelo delito é o ex-presidente da CEF.


Homem da esquina


Para quem passou da idade de acreditar em Papai Noel, fada dos dentes e saci-pererê, essa insólita reunião na casa de Palocci foi obviamente tramada para produzir o resultado que produziu. E a ligação entre os personagens secundários só aconteceu porque foram convocados pelo personagem principal.


Ademais, mesmo ao zé-mané mais crédulo ocorreria a pergunta que não quer calar: se dar conhecimento a terceiros de dados sigilosos que se detém em função do cargo ocupado é crime, como um ministro de Estado pôde testemunhar o crime cometido pelo presidente da CEF sem tomar providência nenhuma contra seu autor?


Outra: se Palocci, não sendo um zé-mané, estava ciente de que o presidente da CEF não tinha o direito de lhe revelar a movimentação bancária de Francenildo, por que não procedeu como um homem honrado faria, recusando-se a ler o que lhe era ilicitamente oferecido?


Enfim, com malabarismos e interpretações tortuosas pode-se criar a ilusão de que a conduta de Palocci não feriu a letra da lei, só o alfabeto completo da ética. Mas, o espírito de Justiça continuará levando cada zé-mané a concluir, corretamente, que tanto o mandante quanto o segundo pau mandado também eram culpados.


Pois até o homem da esquina está enxergando a nudez dos reis, nesta fase deplorável de nossa história republicana.


Repercussões


Três dias antes da sessão do STF, eu já cantava a bola: ‘O relator deste caso é – logo quem! – Gilmar Mendes (…). Se precedentes significam algo, vem aí uma decisão tão aberrante quanto a tomada no julgamento do diploma de jornalista, que teve Mendes como relator. Os rumores em Brasília são de que, utilizando filigranas jurídicas, o STF absolverá Palocci’.


Não deu outra. O relatório conduziu o STF a antecipar a discussão do mérito do caso, ao invés de apenas averiguar se havia motivos para o recebimento da denúncia. E, por ínfima maioria, fez o que convinha para os que contam com Palocci como um trunfo (ou curinga) para as eleições 2010.


Enfim, à guisa de conclusão, vale registrar algumas repercussões que, somadas, compõem um quadro bem real do que foi o apagão judiciário de 27/08/2009 – outro dia nefasto para as instituições brasileiras:


** ‘Se você perguntar a qualquer um do povo se ele acha que Palocci mandou quebrar o sigilo, verá que a sensação é de que ele tinha interesse nisso. Ele é o único beneficiado. Isso é de uma clareza solar. A corda acabou estourando do lado mais fraco, como sempre.’ (Marco Aurélio Mello, ministro do STF)


** ‘No recebimento de uma denúncia, exige-se que a autoria e a materialidade do crime estejam presentes. Depois, no curso do processo, discute-se se há provas suficientes. O Supremo, porém, discutiu se o ministro sabia ou não da quebra. Olha, tanto o Palocci sabia que, na época, ele perdeu o cargo! O que o STF fez foi uma `absolvição sumária´.’ (Luiza Cristina Frischeisen, procuradora Regional da República)


** ‘O Ministério Público tinha indícios contundentes para abrir um processo contra Palocci. A decisão do Supremo, mais uma vez, é contrária à sociedade.’ (Janice Ascari, procuradora regional da República)


** ‘O que significa, afinal, um episódio de violação de sigilo bancário, promovida em retaliação a um serviçal doméstico, diante do excelente trânsito de Palocci nos setores que contam para o governo, seus sustentáculos na área empresarial e financeira?’ (Folha de S. Paulo, editorial)


** ‘Essa foi a lição ministrada pelo STF a caseiros, mordomos, secretárias e motoristas de poderosos: tomem cuidado. Suas palavras não valem nada. Terão efeito nulo se desejarem relatar alguma impostura. Todos vocês correm o risco de terem suas vidas devassadas.’ (Fernando Rodrigues, colunista da Folha)

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Jornalista e escritor, mantém blogues aqui e aqui