Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O diabo está nos detalhes

Os jornais ainda fazem o rescaldo das eleições municipais, encerradas no domingo (28/10). As pautas são o tradicional: especulações sobre futuros secretários, notícias plantadas por partidos sobre trocas de cargos, assessores tentando fazer seus clientes serem citados em colunas de política.

Além disso, observam-se as primeiras projeções sobre potenciais alianças para a sucessão presidencial de 2014 e os primeiros entendimentos entre os atuais ocupantes das prefeituras e os sucessores eleitos nas capitais.

Em São Paulo, onde o poder mudou de cores depois de oito anos, a imprensa dá ampla cobertura para o início da transição. Em todos os jornais há referências à suposta disposição do atual prefeito, Gilberto Kassab, em facilitar as coisas para o eleito Fernando Haddad.

Fala-se até mesmo em uma aliança formal entre o partido criado por Kassab, o PSD, e o Partido dos Trabalhadores, que se estenderia ao governo federal, num arco bastante heterogêneo, desses que transformam instantaneamente antigos adversários em amigos de infância.

Números incompreensíveis

Tudo isso é da política e de tudo isso a imprensa precisa dar conta. No entanto, não basta noticiar. É preciso ir adiante e revelar para o leitor não apenas as intenções de cada lado, mas o contexto em que se dão essas negociações.

No caso da capital paulista, por exemplo, os jornais apenas citam, de passagem, o tamanho da dívida que o futuro prefeito vai herdar, dando de barato que, como ele pertence ao mesmo partido da presidente da República, tudo haverá de ser equacionado, como se diz no jargão dos economistas. No entanto, essa equação pode não fechar assim tão fácil e a imprensa dá algumas pistas.

Na terça-feira (30/12), o Estado de S. Paulo, a Folha de S. Paulo e o Globo informam que a primeira iniciativa de Fernando Haddad, ao viajar para Brasília, além de agradecer o apoio da presidente Dilma Rousseff, foi de encaminhar um pedido de renegociação da dívida do município com o Tesouro federal.

O problema do endividamento não é exclusivo da capital paulista, e a situação de dependência dos municípios em relação ao poder central tem sido citada pela imprensa. Mas os números de São Paulo sempre impressionam mais.

Os jornais divergem quanto aos valores, mas pintam um cenário igualmente preocupante. Segundo o Globo, a dívida de São Paulo com a União chega a R$ 40 bilhões e compromete mensalmente 13% das receitas do município. Para o Estadão, a dívida foi de R$ 50 bilhões em 2011 e chegou a R$ 52 bilhões em setembro passado. Já segundo a Folha, a dívida é de R$ 58 bilhões, quase o dobro da receita anual paulistana.

Embora discordem quanto aos números, o que demonstra que alguém teve pouco cuidado com a apuração, os três jornais concordam em que esse é o pior entrave aos planos anunciados durante a campanha eleitoral.

De qualquer maneira, a imprensa deveria ter mais capricho ao lidar com questões do tipo macro, como a das dívidas dos municípios, porque elas ajudam a entender a vida real nas cidades.

Colocados assim, esses números podem se tornar incompreensíveis para o leitor comum. Mas se lembrarmos que em 2011 o Imposto Sobre Serviços contribuiu com 25% das receitas municipais em São Paulo, enquanto o Imposto Predial e Territorial Urbano responde por 14% de todo o dinheiro disponível, o leitor vai concluir que, só com a amortização da dívida, a capital paulista perde praticamente tudo que recolhe com o IPTU.

Bomba-relógio

Mas, se consegue chegar facilmente aos grandes números, porque eles são divulgados obrigatoriamente pelos gestores públicos, a imprensa parece incapaz de penetrar nos meandros da administração municipal.

Por exemplo, está em andamento em São Paulo uma cobrança retroativa do ISS que deixa de cabelos em pé milhares de pequenos e médios empresários. Mesmo negando a dívida e exibindo comprovantes de recolhimento, eles estão sendo coagidos a pagar e aconselhados a acionar posteriormente a Justiça, sob pena de perder o direito de emitir a nota fiscal eletrônica.

Funcionários que atendem os reclamantes deixam escapar que se trata de manobra para resolver problemas contábeis no fim do governo.

Pode-se imaginar o tamanho da bomba-relógio que está sendo armada para detonar no futuro próximo.

Os jornais passam ao largo dessa e de outras questões porque suas pautas perderam capilaridade e não conseguem ver os detalhes da vida real.