Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O documentário como pluralização de vozes

Os meios de comunicação de massa norte-americanos realmente exibem aquilo que o público gostaria de assistir? E como a emissão de informações nestes meios influi em diversos âmbitos na caracterização de sua sociedade contemporânea?

Além do acontecimento em si

Diferentemente das pesquisas iniciadas no Mass Communication Research, que viam o receptor como uma ‘massa sem face’, os estudos culturais, iniciados principalmente por Richard Hoggart, Raymond Willians e E.P. Thompson, começam a teorizar, segundo STOREY, citado por ESCOSTEGUY, ‘(…) que através da análise da cultura de uma sociedade (…) é possível reconstituir o comportamento padronizado e as constelações de idéias compartilhadas pelos homens e mulheres que produzem e consomem os textos e as práticas culturais daquela sociedade’. Indo um pouco mais diretamente em um aspecto importante:

‘Na pesquisa realizada por Hoggart, o foco de atenção recai sobre materiais culturais, antes desprezados, da cultura popular e dos meios de comunicação de massa, através da metodologia qualitativa. Esse trabalho inaugura o olhar de que no âmbito popular não existe apenas submissão, mas também resistência, o que, mais tarde, será recuperado pelos estudos de audiência dos meios massivos’ (ESCOSTEGUY, 2003, p.153).

Segundo BAVCAR (2005, p.153), ‘uma vez que somos bombardeados por imagens sem poder controlar seu fluxo, a força delas ultrapassa a capacidade de nossa memória, que necessita de um tempo próprio para digerir os dados visuais’. Esta citação é importante, pois caracteriza uma provável intenção do discurso midiático¹ em utilizar imagens que estimulam sensações a fim de ocultar a pluralidade de vozes e os debates intrínsecos a determinados acontecimentos. Mas onde essa resistência do âmbito popular a essas mensagens de alguns meios massivos se manifestaria?

O documentário pode ser uma destas fontes. Lançando mão primeiramente de Bowling for Columbine (2002), podemos compreender e problematizar determinados aspectos relevantes. Tomando por base o massacre ocorrido no Columbine High School, no condado de Jefferson, Colorado, Estados Unidos, Michael Moore, se utilizando do equilíbrio entre crítico e repórter defendido no ramo do jornalismo cultural (CUNHA, 2008), e explora aquilo que vai além do acontecimento em si e sua veiculação pela maioria dos meios massivos. A partir de uma pluralidade de vozes, temas mais complexos são expostos.

Crítica das relações sociais

Arthur Busch (2002, Bowling for Columbine), fala desta influência dos meios de comunicação de massa na população. ‘(…) A mídia torna os crimes um exagero, o sangue dá dinheiro e faz as primeiras páginas e isso se torna a imagem de todo o povo. O que está muito longe da realidade, em minha opinião.’ Barry Glassner (2002, Bowling for Columbine), autor do livro Culture of Fear, vai além:

‘Minha estatística favorita de toda a pesquisa que eu fiz descobriu que o número de assassinatos caiu 20% à medida que o número de assassinatos mostrados no jornal da noite subiu 600%. (…) O número de crimes não pára de abaixar, enquanto o medo de crimes continua a aumentar. Como isso é possível se nem faz sentido? Mas faz perfeito sentido quando vemos o que os políticos estão nos dizendo nos jornais.’

Tomando como significante que em grande parte a mídia dos meios massivos realmente seleciona aquilo que vai exibir em uma realidade diferente daquela que seria cabível, e essa realidade realmente estimula alguma sensação na população, como o cinema, e especificamente o documentário, contribuem para diferentes produções de sentido? BENJAMIN (1936-39) discorre sobre essa possível contribuição:

Deixo em aspas para diferenciar a noção de cultura das mídias expressa em SANTAELLA, Lúcia, Da cultura das mídias à cibercultura: o advento do pós-humano. São Paulo: Paulus, 2003, 2ª. ed. 2005

‘Enquanto o capital cinematográfico der o tom, não se poderá atribuir ao cinema actual, em geral, outro mérito revolucionário para além do de promover uma crítica revolucionária de concepções tradicionais da arte. Não contestamos que o filme actual, em casos particulares, possa promover, além disso, uma crítica revolucionária das relações sociais, mesmo das de propriedade.’

Tolerância e compreensão vendem pouco

Esse chamado capital cinematográfico também é discorrido pelo próprio MOORE (2003, The Corporation) para falar das brechas no sistema.

‘Chega a ser irônico que eu seja capaz de fazer tudo isso e ainda estar no esquema. Estou nas TV´s, sou distribuído pelos estúdios de grandes grupos. Por que eles me divulgam se sou contra tudo o que representam? Eu gasto o dinheiro deles para criticar suas crenças. Bem, é porque eles não acreditam em nada. Eles me divulgam porque sabem que milhões de pessoas querem ver o meu filme, ver o programa na TV e eles vão faturar. Eu consigo divulgar meu trabalho porque aproveito esta incrível falha do capitalismo. A falha da cobiça. O ditado diz que o rico irá vender a corda para se enforcar se ele achar que lucrará com isso. Eu sou a corda. Espero. Sou parte da corda. Eles também acham que quando as pessoas assistirem a este filme, não farão nada porque fizeram um bom trabalho entorpecendo suas mentes, tornando-as idiotas, e elas jamais farão algo, não deixarão o sofá para tomar uma ação política. Eles estão convencidos disto. Eu acho o oposto. Estou convencido de que alguns deixarão o cinema, sairão do sofá e farão algo para retomar o mundo.’

O cinema de Michael Moore se aproveita disso para abordar parte das chamadas críticas revolucionárias das relações sociais, indo até mesmo a questões raciais, expresso também em Bowling for Columbine (2002). O documentário cita um programa da televisão norte-americana, intitulado Cops. Nele são mostradas a todo segundo perseguições de policiais armados a bandidos que, em sua maioria, são negros e hispânicos de classes médias e baixas. Michael Moore questiona por que em vez de mostrar os crimes em si, o programa não mostra as causas deles? Segundo o autor do programa, Dick Hurland, ‘a raiva, o ódio e a violência são coisas que vendem bem. A tolerância, a compreensão e aprender a ser melhor vendem menos em termos de audiência’.

Informações infundadas sobre saúde

Embora o mercado se relacione diretamente com o jornalismo, a combinação entre entretenimento e cultura, citada por CUNHA, 2008, não cita que raiva, ódio e violência vendem mais. Esta ‘diabolização’ de negros e hispânicos, como dito por MOORE, 20002 em programas como o Cops, reintegra discussões que vão muito além da idéia que programas que estimulam sensações como as citadas por Hurland vendem mais. O medo de ‘negros perigosos’, de gangues, de terroristas armados ou até mesmo de abelhas africanizadas assassinas que são veiculados a todo instante em grande parte dos noticiários da televisão norte-americana, fazem com que parcelas do público, beirando a paranóia, busquem segurança e conforto no consumo.

A Culture of Fear estimula o consumo como maior expressão da liberdade cívica e talvez seja esta uma das intenções por trás do discurso destes meios de comunicação. O medo, em conjunto com a alta presença de campanhas publicitárias entremeadas a essas mesmas matérias jornalísticas, estimula o receptor no ato comunicativo a consumir. ‘Desde a publicidade a seguros de saúde até anúncios a serviços financeiros com ênfase na segurança, os meios de comunicação social se multiplicaram em apelos para a prevenção de algo que é quase impossível de prevenir através do consumo’ (LOCKARD, 2003).

Indo mais diretamente a essa publicidade de seguros de saúde, é válido citar Sicko (2007). Nele, o cineasta debate sobre a privatização intensa do sistema de saúde norte-americano, que só disponibiliza como grátis serviços básicos de saúde como vacinas ou emergências. Em determinada parte do documentário, ele critica de forma ferrenha o papel de alguns meios de comunicação em oferecer informações infundadas acerca do sistema público de saúde.

Quantidade transformou-se em qualidade

Quando Hillary Clinton propôs, no governo Bill Clinton, um sistema nacional de saúde, meios de comunicação como a CNN empregavam incessantemente discursos de políticos e altos escalões das indústrias farmacêuticas que criticavam esta postura, comparando-a com uma ‘terrível experiência socialista’ ou ‘pesadelo vermelho’, que levaria o estadunidense a uma perda de seus direitos cívicos, que seriam impostos pelo Estado. Em colaboração a isso, os jornais deturpavam que o sistema nacional de saúde no Canadá era um verdadeiro caos, onde médicos ganhavam pouco, tratamentos eram falhos e os pacientes esperavam horas em filas.

Tony Benn (2007, Sicko), cita que há duas maneiras de controlar as pessoas. Primeiro, assustando-as, e, segundo, desmoralizando-as. Uma nação saudável, educada e confiante é mais difícil de ser governada. Esse pensamento nos reitera a idéia de uma Culture of Fear, que faz com que uma grande parcela do público aceite as ideologias empregadas nos noticiários e se oponha ao sistema público de saúde com medo de perder sua ‘liberdade’ para uma sociedade socialista, que lhes é transmitida como uma ameaça e perigo pelo governo, meios de comunicação e mercado. Enquanto isso, as campanhas publicitárias estimulam o consumo de medicamentos para depressão e angústias a preços exorbitantes.

Essa presença marcante do mercado nos materiais jornalísticos e essa crença de que o público não ‘compra’ a tolerância e compreensão colaboram para a criação da tão citada Culture of Fear. E o público, embora em parte seja tragado por essa cultura, reage e se expressa em documentários como os de Michael Moore. BENJAMIN (1936-39) nos diz que ‘a massa é uma matriz da qual surgem, atualmente, novas formas relativamente aos comportamentos habituais para com a obra de arte. A quantidade transformou-se em qualidade: o número muito mais elevado de participantes provocou uma participação de tipo diferente’.

Novos ângulos da realidade

Vale ressaltar que não só os trabalhos de Michael Moore revelam uma pluralidade de vozes em um discurso que discute os preceitos não só de materiais jornalísticos, mas da própria cultura norte-americana. E também nem todos os meios de comunicação norte-americanos utilizam-se dessas diretrizes. Diversas manifestações populares e trabalhos de outros cineastas e jornalistas criticam a postura corporativista de uma parte dos meios de comunicação não só norte-americanos, como também em outras partes do globo.

Como discorrido e problematizado no trabalho, a emissão dos meios de comunicação norte-americanos, especificamente, realmente influi na percepção dos receptores acerca da sociedade, economia e política. A Culture of Fear, a ideologia de que a intolerância e a violência vendem mais, aliada a tantas outras mensagens diretas ou subjacentes no discurso das mídias, transmite ideologias e crenças que passam como verdades para parte dos receptores. Mas essa realidade mostrada não é necessariamente aquilo que o estadunidense comum gostaria de assistir e eles também questionam até que ponto o que lhes é mostrado pode ser infundado.

O cinema é uma das representações desta postura questionadora. Filmes como os de Michael Moore são transmitidos em milhões de lares e essa experiência comunicacional adentra, acomoda, desenvolve e se equilibra em novas formas de compreensão social. E na medida em que isso ocorre, como Michael Moore cita em The Corporation, alguns se levantam e incorporam aquilo que lhes é transmitido de modo a realmente participar ativamente de âmbitos que às vezes nem lhes passavam pela mente. Não quero dizer que o cinema de Michael Moore é a ‘verdadeira’ realidade, só quero tomar como perceptível que ele trabalha novos ângulos da realidade, que também são recortes, mas contribuem para uma visão mais pluralizada de muitos dos discursos monofônicos de meios de comunicação habituais dos norte-americanos. Os meios de comunicação devem ser voltados para os interesses do público, e não de corporações privadas ou órgãos estaduais autoritários.

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Graduando em Comunicação Social – Jornalismo, Universidade Federal de Ouro Preto/UFOP, MG