Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O elogio do massacre

Então é isso. A polícia invade o Complexo do Alemão, mata 19 pessoas num único dia (moradores falam em 30), não sofre nenhuma baixa e as corporações de mídia chamam isso de guerra.

Quem não se deixou levar pela irracionalidade, percebeu o seguinte (usando apenas os dados oficiais, reproduzidos pelas corporações de mídia): foram 19 mortos e 14 armas apreendidas. 19-14 = 5. Ou seja, se cada morto portasse pelo menos uma arma, temos que cinco pessoas estavam desarmadas. Há fortes indícios de que foram executadas. Repare você que ainda nem falei dos relatos de tortura, assassinatos a facadas e outras agressões (estou preparando outro texto só sobre isso). Por enquanto, pretendo desconstruir o discurso oficial usando apenas as suas contradições implícitas e explícitas.

Além disso, as fotos divulgadas não deixam dúvidas: os supostos traficantes estavam de bermuda, sem camisa e descalços, enquanto as equipes de elite da polícia utilizam o mesmo equipamento dos militares estadunidenses. Chamar isso de guerra é brincadeira. Mas é uma brincadeira compreensível, pois pela posição de algumas fotografias dá pra ver que parte da imprensa invadiu junto com a polícia. Na foto da primeira página do Globo do dia 28, por exemplo, fica evidente que o fotógrafo já estava posicionado esperando a movimentação dos policiais.

Política de extermínio

A Veja deste final de semana publica matéria com o título ‘A guerra necessária’ e avisa (estou citando de cabeça, pois me recuso a dar R$ 8,40 por essa revista): ‘Não faltaram organizações que se pretendem defensoras dos direitos civis alegando que houve um massacre indiscriminado, mas o que essa gente quer é passar a mão na cabeça desses facínoras’.

Em dois dias de cobertura (28 e 29), 16 das 17 cartas dos leitores selecionadas pelo Globo elogiavam a operação policial e 95% de suas matérias apoiavam a ação da polícia. Nos 5% restantes espremiam-se as denúncias da OAB, de moradores e de ONGs sobre violações de direitos humanos cometidas pelas polícias do governo do estado e do governo federal. Denúncias que eram sutilmente postas em dúvida pela reportagem através da estrutura lingüística utilizada (futuro do pretérito).

Um dos resultados dessa cobertura artificial é o estímulo à sede de vingança em parte da população. Cecília Coimbra, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, ressalta o poder da mídia em moldar percepções e forjar consensos. ‘A classe média se torna fascista. Com sua subjetividade envenenada pelos meios de comunicação de massa, ela acredita que essa política de extermínio é necessária para resguardar sua segurança’, disse a professora de Psicologia da UFF.

Entusiasmo e crueldade

Entretanto, basta olhar as estatísticas para constatar que matanças como a de 27 de junho não reduzem a criminalidade. De acordo com o Instituto de Segurança Pública, vinculado à Secretaria de Segurança, os números de apreensões de drogas e armas caíram entre janeiro e abril deste ano, em comparação com o mesmo período do ano anterior. Além disso, no mesmo período de análise, há mais homicídios (saltaram de 2.187 para 2.224), roubos (39.761 para 45.616), furtos (44.707 para 52.359) e autos de resistência (mortes causadas por policiais em confronto, que passaram de 329 para 449). Sublinhe-se que esses números não incluem as mortes por ‘balas perdidas’, freqüentemente atribuídas por moradores a disparos de policiais.

Durante dois dias tentei entrar em contato com a Secretaria de Segurança Pública. Solicitei uma entrevista com o secretário, mas não obtive resposta. Perguntei à assessoria de imprensa qual era o objetivo dessa ação no Complexo do Alemão. ‘Combate ao tráfico’, disseram. A socióloga Vera Malaguti, do Instituto Carioca de Criminologia, questiona esse discurso. ‘Não diminui o crime, nem o consumo de drogas. Então, qual o sentido disso? O que está em jogo agora é matar por matar, porque os indicadores não mostram melhora. A eficácia é a truculência por si só’, afirmou.

Para uma mídia que se estabeleceu apoiando uma ditadura que seqüestrou, torturou e assassinou milhares de brasileiros, é mesmo muito difícil compreender que no Brasil não existe pena de morte. Bandido tem que ser preso, não executado. Incluindo – e sobretudo – os bandidos que moram fora das favelas, como bandidos banqueiros, bandidos lobistas, bandidos diretores de multinacionais que roubam as riquezas do Brasil, bandidos empresários de mídia que distorcem a realidade do país etc.

A capa do Globo de sexta-feira (29/6), elogiosa ao policial que fuma charutos após ‘trocas de tiros’, consagra um modelo de cobertura que abandonou o jornalismo para se transformar em assessoria de imprensa da violência, da irracionalidade, do sofrimento, da morte. É a tragédia humana exibida com entusiasmo e requintes de crueldade, desde a opressão contra os que não têm voz até a defesa da barbárie pelos que se pretendem donos da opinião pública.

Registro necessário: Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo ofereceram ao leitor uma cobertura mais equilibrada e com críticas à ação da polícia.

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Jornalista, editor do FazendoMedia