Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O fantasma da censura

Não exageremos o caso Emir Sader. Ninguém foi proibido de dizer ou de escrever coisa alguma. O professor escreveu algo sobre o senador Jorge Bornhausen. Inconformado, este recorreu ao Judiciário, que lhe deu razão, condenando Emir Sader em primeira instância.


O condenado pode agora recorrer. Melhor fora que nada disso tivesse acontecido. Que o articulista medisse melhor suas palavras no calor da hora e que o senador fosse mais tolerante. Mas na refrega todos exageraram.


O Judiciário tem seu foro próprio para julgar tais demandas, mas não substitui a História. Deveras incompreensível foi o juiz dizer na mesma sentença que Emir Sader ofendeu também os eleitores catarinenses que elegeram o senador. Lê-se na sentença do juiz Rodrigo César Müller Valente, da 11ª. Vara Criminal de São Paulo:




‘Ao adjetivar um Senador da República de ‘racista’, esqueceu-se o réu de todos os honrados cidadãos catarinenses que através do exercício democrático do voto o elegeram como legítimo representante em nossa República Federativa. Trata-se, pois, de conduta gravíssima, que de modo algum haveria de passar despercebida, principalmente porque partiu de alguém que, como profissional vinculado a uma universidade pública, jamais poderia se valer de um meio de comunicação de grande alcance na universidade em que atua para divulgar ilícito penal.’


Se assim é, como ficam os que criticam Paulo Maluf, um dos deputados federais mais votados, de recente passagem pelos cárceres por corrupção? Como se vê, quando entramos no terreno pantanoso da política não é apenas a sentença da História que difere do Judiciário. Também a das urnas oferece suas discrepâncias.


Tudo passará


Defendi duas teses sobre o tema da censura. A de mestrado, na UFRGS, em Porto Alegre (1981), e a de doutoramento, na USP (1989). Foram publicadas em três livros: O Caso Rubem Fonseca (São Paulo, Alfa-Ômega, 1983); Nos Bastidores da Censura (São Paulo, Estação Liberdade, 1989) e Rubem Fonseca: proibido e consagrado (Rio, Relume-Dumará, 1997), recentemente reeditado. E um dos ensaios recebeu o X Prêmio Abril de Jornalismo, em 1985.


Lembro das grandes dificuldades que tive para convencer a banca da USP de que a censura era norma na civilização ocidental e não execrável exceção de períodos autoritários. James Joyce foi proibido nos EUA em pleno século 20 e somente veio a ser liberado depois de rumoroso caso judicial. E o Judiciário francês tinha levado aos tribunais ninguém menos do que Gustave Flaubert. Pareceu pouco a dois dos examinadores, mas felizmente uma banca de doutoramento é composta de cinco doutores.


Já estava com a tese quase pronta quando aconteceram duas coisas que me fizeram rever o que estava escrevendo.


A primeira: em 1985, no alvorecer do governo Tancredo Neves/José Sarney, o ministro da Justiça, Fernando Lyra, liberou em célebre evento no Teatro Casa Grande, no Rio, tudo o que estava proibido, menos o que estava sub judice – como o caso emblemático de censura a escritores, a proibição de Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca. Depois daquele ato memorável, fui jantar ali por perto, na companhia, entre outros, de Cristóvam Buarque, Rubem Fonseca e Thea Fonseca.


A segunda: dali a pouco tempo o mesmo governo proibia a exibição do filme Je Vous Salue Marie, de Jean-Luc Godard, na esteira de reinterpretações da vida de Jesus, como já fizera Pier Paolo Pasolini com o Evangelho de Mateus.


A Igreja Católica, tão eficaz nas lutas da redemocratização, como igualmente eficaz tinha sido para ajudar a derrubar o governo democrático de João Goulart, surpreendia a muitos, fazendo intensas pressões para que o governo José Sarney proibisse o filme de Godard. E o presidente sucumbiu, igualando-se, neste particular, aos ditadores que sucedia, que haviam proibido até o Último Tango em Paris! Quem diria, mas já houve tempo em que os brasileiros iam ao Uruguai para ver esse filme de Bertolucci!


Não conheço a censura apenas em teoria e por havê-la estudado na universidade. Quando publiquei meu primeiro conto, na imprensa, em 1974, fui condenado a dois anos de prisão pela ditadura militar, pena que cumpri sob sursis. A sentença saiu em 1975.


Em 1976, meu livro de estréia era premiado pelo MEC, como melhor livro publicado no ano. (O prêmio de conjunto da obra saiu para Alceu Amoroso Lima; o melhor livro inédito, para Moacyr Scliar; o melhor livro de ensaios, para Regina Zilberman: lá fomos todos a Brasília receber os prêmios e foi de Alceu Amoroso Lima o discurso mais contundente). Mas um de meus contos continuava proibido. Eu era premiado pelo MEC e me apresentava ao Judiciário comprovando com os textos que escrevia que ‘não continuava a delinqüir’. Por isso, coragem, Emir Sader: tudo passará! São outros os tempos!


Ordem jurídica


Já o presidente Lula e vários de seus ministros – ainda que não seu governo como um todo (vide o caso Larry Rohter, recentíssimo), nem o PT como um todo, como mostram as recentes ameaças e agressões a jornalistas – vêm suportando com estóica paciência todas as revelações de escândalos, alguns dos quais dependendo ainda dos ritos dos processos judiciários, que costumam ser demorados, sobretudo por causa de um dos pilares em que se sustentam os julgamentos: a demora na produção de provas. De todo modo, não se pode concordar com quem chama pejorativamente os petistas de ‘petralhas’, pois é erro de julgamento generalizar.


Nenhum partido é muito diferente de outro, este foi o erro do PT: apresentar-se como acima de todos os outros. Mas erram os que tratam o PT, de tantas memoráveis lutas pela redemocratização, como valhacouto de uns poucos criminosos. O que é necessário é que a maioria de seus membros se pronuncie livremente sobre os crimes já comprovados.


Esperemos que o governo Lula não imite o de José Sarney, pois hoje não é segredo para ninguém que o ex-presidente aluga as orelhas do atual com alguma freqüência, dando e recebendo conselhos. Pois a História mostra que os processos censórios começam com ninharias às quais não se dá a devida importância. Depois o fogo se alastra e nem aqueles que o deflagraram conseguem apagá-lo, pois o incêndio sai de controle. Não há incêndio controlado em censura. Aceso o pavio, tudo pode acontecer.


Mas o que aconteceu foi uma coisa normal, dentro da ordem jurídica: o senador Jorge Bornahausen processou o professor Emir Sader, doutor em ciência política, e obteve a condenação em primeira instância. Aguardemos os desdobramentos. Isso, de todo modo, não é censura. É apenas o seu fantasma. Não passa de uma assombração.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br