Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O FBI contra o jornalista David Halberstam

Nunca agradeci suficientemente um presente que recebi há 34 anos do jornalista Elio Gaspari. Trabalhávamos no Jornal do Brasil, onde eu escrevia com freqüência sobre os EUA. Naquele ano cobri em Washington, como enviado especial, o final da crise de Watergate, com a renúncia de Richard Nixon e a posse de Gerald Ford. O presente dele foi o livro The Best and the Brightest (Os melhores e mais brilhantes), de David Halberstam.


Desde então, embora tivéssemos nossas divergências, passei a admirá-lo também pela generosidade. Entusiasmado com o livro, ele tinha comprado vários exemplares para dar a amigos que, imaginava, também poderiam gostar. Noto que ainda faz coisa parecida. Quando gosta de um livro escreve notas sugestivas em sua coluna, para que outros possam desfrutar o mesmo prazer.


Devo àquele ato de generosidade minha fidelidade posterior ao autor de The Best and the Brightest. Também ficaria encantado, 20 anos depois, com seu The Fifties, magnífico retrato da década de 1950. Eu o conhecia de nome desde os anos 1960, por causa da controvérsia em torno da cobertura da guerra do Vietnã, que envolveu o New York Times, onde ele trabalhava, e outros veículos acusados pelo Pentágono de torcer pela derrota dos EUA.


Contra as liberdades civis…


O mérito extraordinário de Halberstam em The Best and the Brightest foi ter contando muito bem – com pesquisa minuciosa e envolvente, somada a um texto primoroso – o papel dos EUA no conflito e a atuação de intelectuais brilhantes convocados pelo governo Kennedy. Uma elite intelectualmente privilegiada, formada nas melhores universidades do país, tinha empurrado o país para aquela marcha da insensatez rumo à tragédia americana no Sudeste Asiático.


Os jornalistas que irritavam o governo com sua cobertura da guerra eram relativamente jovens. Além de Halberstam (saiba mais sobre ele aqui e aqui), havia ainda Neil Sheeham, Peter Arnett, Malcolm Browne e outros. Viam os fatos de perto, testemunhavam ações no campo de batalha e ouviam relatos dramáticos de soldados. Para eles, era impossível ser otimista como os intelectuais e sábios da equipe de John Kennedy, herdada pelo sucessor Lyndon Johnson. Sob pressão do governo, Halberstam e outros acabariam afastados da cobertura, mas o futuro provou que estavam certos.



A partir da era conservadora de Reagan-Bush passou a prevalecer nos EUA a imagem equivocada de que no Vietnã os EUA foram sabotados por uma imprensa impatriótica. Daí porque, na década de 1980, os jornalistas foram impedidos de cobrir a agressão covarde à minúscula ilha de Granada e o massacre do Panamá, ambos transformados em espetáculos triunfalistas na mídia.


Volto a tudo isso porque agora sabemos que Halberstam – morto em abril do ano passado, aos 73 anos de idade, num acidente de automóvel – passou a ser vigiado pelo Bureau Federal de Investigações (FBI) do infame J. Edgar Hoover exatamente na época da controvérsia sobre o Vietnã. Ele ganhou o prêmio Pulitzer pela cobertura do Times em 1964. E durante mais de duas décadas foi vigiado como se fosse espião.


…e travestido de democrata


Ordenado por Hoover, o monitoramento continuou depois da morte do diretor do FBI – em 1972, ano do lançamento de The Best and the Brightest. Oficialmente Halberstam não sabia, mas suspeitava. O esforço dos estudantes da Escola de Jornalismo da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY), com base na Lei de Liberdade de Informação (FOIA), levou afinal o FBI a admitir agora o que fez – para variar, a pretexto de defesa da segurança nacional.


Certos documentos referem-se a 1965, quando Halberstam era correspondente do Times na Polônia, onde casou pela primeira vez – com a atriz Elzbieta Szyzewska. O casal acabaria expulso do país porque as matérias irritavam os líderes comunistas poloneses. Os documentos liberados incluem artigos publicados por Halberstam e registros da companhia telefônica de chamadas recebidas por ele.


Sem guerra fria e sem URSS, é inexplicável que só 62 das 98 páginas do dossiê tenham sido liberadas. Ao mesmo tempo ainda se reverencia gente como J. Edgar Hoover – cujo nome foi dado ao edifício-sede do FBI em Washington, como se ele fosse herói nacional e não um travesti de patriota. Admirado pelo obscurantismo, violava as liberdades civis e caçava bruxas no período mais vergonhoso da história dos EUA.


Segundo documentos citados pela Associated Press, em 1971 os esbirros de Hoover ainda planejaram entrevistar Halberstam, na certa decididos a detonar sua reputação. Apesar de forçado a liberar os papéis agora, o FBI não se considera obrigado a dar explicações. Para Jean Halberstam, viúva do jornalista, ele nunca teve certeza de que era vigiado, mesmo achando que isso era bem possível.


O pior servidor público do país


Também espantoso é que durante sete dos oito anos do governo de Ronald Reagan a espionagem do FBI sobre ele tenha sido mantida. Afinal, começara como uma ação insana entre tantas outras de Hoover, violador contumaz das liberdades civis dos americanos e com base no Cointelpro, programa ultra-secreto que suspeitava de ligações de Halberstam com socialistas e comunistas.


Definitivamente fechado em 1971, esse programa de espionagem interna já se ampliara para incluir, entre seus alvos, organizações de direitos civis, ativistas antiguerra, parlamentares e jornalistas. Segundo Jean, o marido só se referia a Hoover como ‘o pior servidor público de nosso país’, até porque o contribuinte é que pagava a conta desses gastos abusivos e atividades criminosas.


Segundo Jean, a vida de Halberstam era um livro aberto. Além disso, ele não tomava conhecimento do que outros, de quem discordava, achavam do que escrevia. Depois de 1967, quando deixou o Times, passou a escrever artigos para publicações importantes de circulação nacional, como Harper´s, Atlantic Monthly e Esquire. Publicou também uma dúzia e meia de livros. Neles foi sempre um jornalista exemplar – e, ao contrário de J. Edgar Hoover, sem nada a esconder.

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Jornalista