Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O papel da imprensa na segurança pública

[A mídia] ‘quando se apropria, divulga, espetaculariza, sensacionaliza ou banaliza os atos de violência está atribuindo-lhes um sentido que, ao circularem socialmente, induzem práticas referidas à violência. Se a violência é linguagem – forma de comunicar algo -, a mídia ao reportar os atos de violência surge como ação amplificadora desta linguagem primeira, a da violência’ (RONDELLI, E. Imagens da violência: práticas discursivas. Tempo Social, S.P, v. 10, n. 2. p. 145-157, out.1998).

O aumento estrondoso da criminalidade violenta, nos últimos anos, trouxe para a agenda social a questão da segurança pública. Outrora, assunto restrito a poucos atores, agora a temática da segurança pública alcança o centro das discussões, numa sociedade aflita em meio a um estrondoso incremento da violência e criminalidade. O resultado do referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo e munição amplificou um evidente clamor popular que exige medidas consistentes, duradouras e claras no combate e na prevenção ao crime. A mídia, percebendo a importância do momento histórico (e principalmente o poder de vocalização dessa demanda pela classe média – sua maior consumidora) tem aprofundado as discussões sobre a questão, pautando de forma cada vez mais constante a cobertura acerca da segurança pública.

A violência (e seus efeitos perversos) fragiliza as instituições sociais. Isso sem falarmos na corrupção – que atinge todos os níveis da administração pública produzindo uma generalizada falta de credibilidade e de confiança nas autoridades. Esses dois ingredientes explosivos têm motivado muitos indivíduos a defenderem a tese da auto-resolução dos conflitos, através de meios ilegais, e, o mais grave, a quererem fazer justiça com as próprias mãos.

Ao tratarmos da segurança pública estamos nos referindo às formas de prevenção e combate à violência: tema que sempre provocou muita polêmica. Alguns acreditam que a violência tem de ser atacada ‘em suas raízes’: a miséria, a exclusão social, a má distribuição de renda, o desemprego. Por outro lado, cresce o coro dos que pleiteiam a adoção de políticas de segurança pública eficientes, que levem em conta os problemas específicos de cada realidade e, não menos importante, a necessidade de reformas profundas no sistema de justiça criminal.

Porém, todos os que lidam com o fenômeno da violência devem compreender sua complexidade e a dificuldade no domínio de todas as suas variáveis. Um outro problema é a confiabilidade dos dados produzidos sobre crimes. É difícil construir indicadores estatísticos representativos e confiáveis. Daí se pode entender porque pesquisadores e operadores da segurança pública têm chamado atenção para a necessidade de produzir estatísticas confiáveis e garantir a transparência na divulgação dos dados sobre a violência.

Ademais, a representação da violência pela mídia altera a percepção que temos do fenômeno, pois a cobertura nem sempre é representativa do universo de crimes e sim dos eventos extraordinários e muitas vezes pontuais.

Neste contexto, a mídia pode se tornar uma das mais contundentes formas de se propagar e, em até certo ponto, exaltar a violência.

As múltiplas facetas da violência

Como espectadores, leitores, ouvintes, cidadãos e operadores da segurança pública devemos compreender que a cobertura do cotidiano violento das grandes cidades não é tarefa fácil. Por trás de eventos violentos outras questões estão ocultas, e dificilmente podem ser contempladas em cada matéria ou reportagem que envolve a abordagem do tema, pela mídia.

Ademais, é mister entendermos que na análise da questão não existe verdade absoluta, nem ponto de vista inquestionável e irrefutável. Neste sentido, os operadores da segurança pública, os especialistas e os jornalistas devem levar em consideração uma série de questões. Afinal, todos esses profissionais têm se debruçado na tentativa de explicações lógicas para um fenômeno múltiplo e complexo. As dificuldades em abordá-lo não justificam, porém, as simplificações e generalizações grosseiras e, muitas vezes, tendenciosas.

Apresentamos, a título de ilustração, uma síntese da complexa teia de fatores intervenientes no fenômeno da violência e criminalidade. Para tanto, usamos o modelo proposto pelo cientista francês Jean-Claude Chesnais, conceituado demógrafo e especialista em violência urbana. Ele traçou um estudo sobre a violência criminal no Brasil, apontando seis causas como fatores responsáveis pela atual situação:

** Fatores sócio-econômicos: miséria, agravamento das desigualdades, herança da hiper-inflação;

** Fatores institucionais: insuficiência e incompetência do Estado, crise do modelo familiar, recuo do poder da Igreja;

** Fatores culturais: problemas de integração racial e desordem moral;

** Demografia urbana: as gerações provenientes do período da explosão da taxa de natalidade no Brasil chegando à vida adulta sem muitas referências éticas; e o surgimento de metrópoles, sem a mínima infra-estrutura, que receberem uma fortíssima migração nas últimas décadas;

** A mídia, com seu poder, que colabora para a apologia da violência.

** A globalização mundial, com a contestação da noção de fronteiras; e o crime organizado (narcotráfico, posse e uso de armas de fogo etc.).

Acrescentaria outro fator, característico e específico das grandes cidades brasileiras. A organização do tráfico de drogas (disputas pela ampliação de espaço e poder, guerra entre gangues) e suas conexões com outras modalidades de crimes (contrabando, lavagem de dinheiro, corrupção de agentes públicos etc.).

Ora, fica evidente a complexidade que envolve o fenômeno da violência. E, por conseqüência, a dificuldade, ou a quase impossibilidade, do profissional da comunicação, cobrindo o pontual, abordar todas essas questões na apresentação de cada notícia sobre o tema. Isso sem contar, obviamente, com outras dificuldades de abordagem, como o reduzido espaço ou tempo para apresentar a notícia; as pressões vindas de editores e chefes de redação; os interesses, nem sempre confessáveis, das empresas de comunicação, dentre outros. Ademais, não podemos esquecer da rotina massacrante das redações, que não permite o aperfeiçoamento e o aprendizado contínuo por parte dos profissionais da comunicação.

Quebrando preconceitos e instituindo uma nova práxis

Existe uma tradição muito arraigada dentro das redações de que a cobertura dos temas envolvendo a violência e a criminalidade é cobertura ‘de polícia’. Com o processo crescente de aprofundamento das discussões sobre os problemas da segurança pública, esse tipo de postura precisa ser revisto. Nessa empreitada todos os atores envolvidos na temática (jornalistas, operadores da segurança pública e pesquisadores) devem se despir das ‘verdades absolutas’ que os circundam, caminhando na direção de uma nova relação entre as partes, baseada principalmente no direito de todos a uma informação qualificada, transparente e ética sobre assuntos que envolvem os fenômenos da violência e da criminalidade.

O jornalismo policial, ainda, é uma área ‘marginal’ nos veículos de comunicação. E os profissionais que cobrem essa área formam uma espécie de casta, vista com ressalvas. Existe a presunção de que é uma área pouco nobre (a classe valoriza mais os assuntos ligados à política e à economia). Muitos dos que fazem cobertura ‘de polícia’ são repórteres novatos ou os mais antigos, que não se adaptaram à modernização dos processos de comunicação.

As editorias de polícia continuam sendo, com raríssimas exceções, os berçários e os cemitérios das redações. É preciso que os donos e os operadores da mídia compreendam, de vez, que se foi o tempo em que os crimes eram ‘assuntos de polícia’. São fatos que se encaixam na esfera da segurança pública, portanto, influenciam a qualidade de vida dos cidadãos e, como tal, merecem tratamento qualificado e tão nobre quanto aos outros assuntos.

Uma pesquisa reveladora

Considerando o papel decisivo dos meios de comunicação nas democracias para o agendamento de políticas públicas, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Candido Mendes, decidiu realizar um diagnóstico sobre como os jornais cobrem a violência no Brasil, em janeiro de 2004. [Leia aqui matéria dada neste Observatório sobre a pesquisa.]

As coordenadoras da pesquisa, Silvia Ramos e Anabela Paiva, apontaram alguns resultados do diagnóstico que analisou textos veiculados pelos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, Agora São Paulo, O Globo, Jornal do Brasil, O Dia, Estado de Minas, Diário da Tarde e Hoje em Dia ao longo de 35 dias, distribuídos por cinco meses do ano de 2004 (maio a setembro). Em média, a circulação dos nove veículos, somada, é de 1,2 milhão de exemplares diários. [O estudo e outros dados da pesquisa estão disponíveis na página do CESeC]

Ao analisar os 2.514 textos, as pesquisadoras perceberam que ‘os jornais não cobrem a violência com a mesma intensidade. O perfil dos textos analisados também indica que os jornais têm abdicado de enriquecer a cobertura sobre violência e segurança com alguns tipos de abordagem. O espaço que os veículos analisados dedicaram a textos opinativos sobre estes temas foi muito reduzido: durante o período da pesquisa, houve pouquíssimos editoriais (1,4%), artigos (1,2%) e colunas (0,3%) sobre o tema. Mais de um quarto (27%) da cobertura é composta de pequenas notas informativas, sem qualquer tipo de contextualização’.

Sobre os principais temas tratados pelas redações, as pesquisadoras concluíram que ‘as forças de segurança – nas quais se incluem as várias corporações policiais (Federal, Civil, Militar e Técnica), as Forças Armadas e as guardas municipais – são as protagonistas do noticiário, sendo o assunto de 40,5% dos textos. O outro tema dominante é o ato violento em si, assunto de 21% das matérias. Os desdobramentos e repercussões destes atos somam 16,2% – ou seja, 37,2% da cobertura gira em torno de crimes. Mas a análise das matérias deve ser considerada não apenas por aquilo que foi abordado, mas também pelo que não foi. Temáticas centrais como a violência enquanto fenômeno sócio-cultural-político (3,3%) e direitos humanos (2,4%) aparecem muito pouco. Também chama a atenção o pequeno número de reportagens e artigos baseados em estatísticas e pesquisas’.

No entanto, segundo as pesquisadoras, ‘é importante reconhecer que em alguns estados brasileiros, como o Rio de Janeiro, a mídia é uma fonte quase solitária de controle externo da ação de polícia, considerando que a Ouvidoria é virtualmente inexistente e as corregedorias são extremamente frágeis. Em síntese, pode-se concluir que há tendências simultâneas em curso. Por um lado, o volume de notícias sobre os temas da violência e da segurança publica é expressivo, indicando o reconhecimento da importância do assunto, especialmente nos jornais do Rio de Janeiro. Tudo indica que a maioria dos jornais analisados deixou de praticar as coberturas meramente criminais típicas das antigas seções de polícia e passou a tratar de violência e de segurança pública. Além disso, nem mesmo os jornais de venda em banca se excedem no sensacionalismo ou na apelação à dureza contra o crime nos moldes clássicos e muito recorrentes no passado. São muito raras as notícias que defendem o endurecimento do tratamento com os criminosos ou a restrição de seus direitos (0,4%) e é pequeno (5,6%) o número de matérias que buscam enfatizar um sentimento de medo da sociedade frente ao fenômeno da violência urbana. Por fim, são desprezíveis os textos que deixam transparecer a idéia de que é possível fazer justiça com as próprias mãos (0,7%).’

O papel da mídia

A forma e conteúdo de exposição dos vários tipos de violência pela mídia devem ser questionados. Obviamente, não estamos tratando aqui de qualquer tipo de censura; ao contrário, defendemos uma interlocução cada vez mais consistente entre os profissionais da comunicação, pesquisadores do tema e operadores da segurança pública.

Porém, somos cônscios de alguns exageros. Por exemplo: uma pesquisa da Unesco sobre a exposição da violência na mídia e suas repercussões na vida das crianças apontou que a função da mídia na percepção e prática da agressão é apresentada em um contexto compensatório. [Unesco, 2002. A amostra do estudo foi formada por um núcleo original de 23 países em todo o mundo, nos quais, em função do tamanho de cada um, foram pesquisados entre 150 e 600 crianças de 12 anos (de ambos os sexos) que freqüentam escola.]

Dependendo dos traços de personalidade e das experiências cotidianas das crianças, a violência na mídia satisfaz diferentes necessidades: ‘compensa’ frustrações e carências em meio a ambientes problemáticos, ao mesmo tempo em que oferece ‘emoção’ aos infantes que vivem em áreas menos problemáticas. Apesar das inúmeras diferenças culturais, os padrões básicos das implicações ligadas à violência na mídia são semelhantes em todas as partes do mundo. Os filmes, individualmente, não se constituem o problema, mas a extensão e a onipresença da violência na mídia contribuem para o desenvolvimento de uma cultura global agressiva. As ‘características de recompensa’ da agressividade são mais sistematicamente incentivadas do que as formas não agressivas de lidar com a própria vida, fazendo prevalecer, dessa forma, o risco da violência na mídia.

Em combinação com a violência da vida real, vivenciada por muitas crianças, é alta a probabilidade de que orientações direcionadas para a agressividade sejam mais intensamente promovidas do que aquelas que incentivam comportamentos pacíficos.

Também em áreas onde o nível de agressividade é baixo, o conteúdo de violência da mídia é apresentado em um contexto compensatório. Embora as crianças lidem com esse conteúdo de formas diversas em diferentes culturas, o traço transcultural comum do problema encontra-se no fato de que a agressão é interpretada como uma boa forma de solucionar os problemas em várias situações.

Assim, a onipresença da violência na mídia estimula muito mais as ações violentas para a resolução de simples conflitos cotidianos do que atos pacíficos e de respeito aos outros e a si mesmo.

E como tratar a questão?

A mídia deveria ser o espelho fiel das contradições e conflitos existentes na sociedade. Evidente, portanto, que na sua pauta apareça a questão da segurança pública como uma das principais demandas de discussão da sociedade brasileira na atualidade.

Ponto-chave: profissionais da mídia, operadores de segurança pública e pesquisadores do tema devem conhecer os limites e os interesses que envolvem o tratamento da temática da segurança pública. Nesse terreno não há espaço para improvisações e amadorismos.

É preciso compreender, também, as dificuldades nas abordagens de uma temática tão densa e complexa, como já exposto anteriormente. Portanto, especializar-se nesse tipo de cobertura seria o desejável e muitos profissionais da imprensa têm percorrido esse caminho (com ou sem apoio dos veículos). O Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG (CRISP), por exemplo, ofereceu, no Rio de Janeiro, um curso para repórteres de um jornal de circulação nacional, depois da direção do órgão se convencer da necessidade de uma especialização na cobertura de eventos criminais naquela cidade. No mesmo caminho deveriam trilhar os assessores de comunicação das instituições do sistema de justiça criminal.

É também fundamental que a divulgação e a apuração das informações acerca de estatísticas criminais sejam rigorosamente avaliadas: quem produz a notícia de levar em conta a subnotificação de vários tipos de ocorrências; os interesses políticos que envolvem a divulgação das notícias; os vieses evidentes em análises feitas por operadores e especialistas.

Uma notícia irresponsável pode causar danos irreparáveis a uma comunidade. Por exemplo, o simples fato de se noticiar um aumento de crimes num determinado bairro baseando-se na percepção da população, sem verificar com mais acuidade o que essa situação pode acarretar: diminuição no preço dos imóveis naquele local; deterioração da qualidade de vida da população em virtude do medo e do aumento da percepção da violência local; fragilização das relações sociais, entre outras questões. Por outro lado, sonegar, omitir ou maquiar informações sobre crimes pode significar efeitos tão perversos ou até piores do que os citados acima, incluindo riscos objetivos para a vida das pessoas. Portanto, ao revelar dados, noticiar eventos criminais e abordar determinados assuntos envolvendo violência e criminalidade é preciso pensar nas conseqüências desse tipo de informação.

Finalmente, o papel da imprensa na cobertura da segurança pública é de fundamental importância para o aprimoramento das políticas públicas nessa área. Apesar das eventuais limitações, observamos que a mídia tem se esmerado no tratamento da temática, o que muito contribui para a melhoria das relações entre os operadores da segurança pública, pesquisadores e os profissionais da comunicação.

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Professor da PUC-Minas, filósofo, mestre em Administração Pública, especialista em comunicação social, em estudos de criminalidade e segurança pública; coordenador de Comunicação e Informação do CRISP (Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG)