Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

“O presídio é a lata de lixo social”

A Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) promoveu debate na sexta-feira (15/9) sobre o tema “Mídia, Segurança Pública e Direitos Humanos”. Depois da exibição de fotografias num telão, começaram as palestras para as poucas mas interessadas pessoas que se dispuseram a estar na Ufes numa sexta-feira à noite, horas antes do início de uma festa que haveria ali ao lado. A frase que intitula esse texto, proferida posteriormente pelo professor Júlio Pompeu, sintetiza o modelo carcerário atual.

Os principais atores da polêmica que motivara a promoção desse debate, entretanto, não entrariam em cena. Isabel Lacerda, militante da Pastoral Carcerária, apontada na imprensa como aliada do crime organizado após a divulgação de gravações de conversas suas com presos, não pôde comparecer. Marcus Monteiro, repórter de A Gazeta que escreveu algumas das matérias sobre a militante, havia confirmado presença por telefone e e-mail, mas cancelou de última hora alegando que não foi autorizado pela editora do jornal.

Embora esse ponto factual tenha sido deixado um pouco de lado devido às ausências, o debate não deixou de ser interessante. Isaías Santana, ativista dos direitos humanos, comentou as imagens exibidas afirmando que a tortura é prática histórica do Brasil, presente desde a chegada dos escravos negros e que persiste em pleno século 21, na vigência do estado democrático. Para ele, pior que a tortura física é a tortura psicológica exercida contra os presos e seus parentes. Ele afirmou que apenas 10% a 15% dos cerca de sete mil presidiários capixabas são criminosos perigosos e que a criação de um presídio de segurança máxima no estado resolveria os problemas em relação aos presos de alta periculosidade. Além disso, destacou o problema das instituições que abrigam menores, como a Unis, que servem de mera “cadeia para crianças”.

Negócio privado

Santana afirmou não ser possível discutir sistema penitenciário sem discutir segurança pública. Para ele falta de credibilidade da Polícia Militar e, agora, também do Batalhão de Missões Especiais (BME) e da Força de Segurança Nacional, que tentam manter a ordem nos presídios capixabas. “Não há como recuperar ninguém com o sistema de hoje, em que há superlotação nas prisões e falta de estrutura e preparação nas delegacias”. O militante diz que inverte-se a lógica: primeiro prende, depois investiga. Segundo ele, a presença de assistentes sociais, psicólogos e profissionais de direito nas delegacias garantiria uma redução significativa do número de presos por pequenos delitos.

Além disso, de acordo com Santana, pesa o fato de que os presídios são lucrativos para os “coronéis”. Ele denunciou a omissão e a conivência do Estado: “Presídio é igual pobreza, dá dinheiro. O governo não tem interesse de mudar”. Santana não deixou de criticar o sistema judiciário, que classificou de “irresponsável e sem nenhuma visão social”. O ativista afirmou existirem advogados extorquindo pobres e esquemas de venda de sentenças: “Quem tem dinheiro compra fuga”.

A seguir foi a vez de representante do Sindicato dos Jornalistas de Vitória Inês Simon, que também é assessora técnica da Secretaria de Segurança Urbana de Vitória. Ela manifestou sua insatisfação com o jornal A Gazeta por desrespeitar o debate ao não liberar o convidado. Didática, Vitória Simon afirmou com convicção que não temos liberdade de imprensa, visto que o governo oferece concessões públicas a grandes famílias comandarem serviços de mídia e não tem controle nenhum sobre elas. “O jornalismo é organizado como negócio privado e não atende ao interesse social”.

Cobertura superficial

A palestrante definiu o jornalista como profissional credenciado para mediar fatos, daí sua grande importância para a democracia e para a liberdade. Desse modo, o jornalista não pode deixar que sua visão particular influa na produção de uma matéria. Segundo ela, a reunião de pauta, na qual são decididos os temas a serem abordados pelos jornais, é influenciada indiretamente pela gerência das empresas, já que muitas vezes os pauteiros e chefes de redação têm ligação com os executivos.

Acerca da polêmica que envolve a atuação da militante Isabel Lacerda na Pastoral Carcerária, a sindicalista afirmou considerar correta a apuração do repórter Marcus Monteiro, pois a acusação foi induzida pela fala de uma autoridade entrevistada, mas sem comprovação. “As acusações foram baseadas num trecho de fala que não constitui crime, não prova nada”. A respeito dos grampos, Vitória Simon queixou-se do Sistema Guardião, usado no estado no combate ao crime organizado. Segundo ela não há privacidade em ligações telefônicas no Espírito Santo, chegando-se a ponto de toda a redação da Rede Gazeta ter sido grampeada, sem que ninguém assumisse a responsabilidade até hoje.

Sobre a cobertura da imprensa, afirmou que os jornais não se aprofundam na questão da segurança pública porque desgasta o governo, que é um dos grandes anunciantes. Ela também observou que muitas vezes os meios de comunicação defendem as empresas e criminalizam os movimentos sociais, como na cobertura da Rede Gazeta sobre o conflito entre a empresa Aracruz Celulose e as populações indígenas. A sindicalista diz ser comum encontrar preconceito em algumas matérias, embora o código de ética jornalística destaque a defesa dos direitos humanos, respeito às diferenças, cidadania e democracia.

Sistema de sucesso

Ela mostrou duas matérias de uma mesma página de A Gazeta que apontam o tratamento diferenciado dado a jovens de classe média e da periferia que cometem delitos. No caso de adolescentes de um bairro nobre de Vila Velha flagrados com drogas, não havia qualquer menção a seus nomes (nem das iniciais de um menor de idade). Em matéria logo abaixo, aparecia o nome completo de jovens suspeitos de delito, porém oriundos de bairros de periferia.

Simon considera que os jornalistas não têm liberdade de expressão nos jornais e que isso poderia ser mudado pela regulamentação da profissão e da criação do Conselho Federal de Jornalismo, deixado de lado devido à grande pressão dos meios de comunicação.

O professor de Direito Júlio Pompeu, integrante do Núcleo de Estudos sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos da Ufes (Nevi/Ufes), foi contundente em sua fala, iniciada com uma provocação: “O sistema prisional não é um fracasso, é um sucesso. Você é que foi enganado quanto ao projeto e ao objetivo dele”.

O papel da Aracruz

Para explicar sua afirmação, ele fez um resgate histórico ao século 18, quando teria nascido a prisão como forma de pena. O modelo de prisão vigente na época era o do panóptico, estudado por Michel Foucault, em que as penitenciárias tinham uma grande torre no centro, de modo que era possível avistar todas as celas sem que os presos soubessem quando estavam ou não sendo vigiados. Tratava-se da sociedade industrial, na qual a disciplina do operário era fundamental para garantir a produtividade das fábricas. Isso se reproduzia no sistema carcerário da época: “O presídio reflete a sociedade”, disse.

Pompeu afirmou que hoje não se precisa mais do trabalhador devido ao grande desenvolvimento tecnológico, de modo que vivemos numa sociedade de exclusão, na qual a prisão se torna um depósito humano, uma “lata de lixo social”. Para, ele parte da sociedade se omite: “Ao assistir ao filme Carandiru, por exemplo, muitos saíam das salas de cinema comentando coisas banais como o beijo homossexual de Rodrigo Santoro”. Parafraseando Caetano Veloso, disse haver um “silêncio sorridente da sociedade diante de um massacre”.

Sobre a área jurídica, o professor afirmou existirem muitos processos escusos e contou o caso da morte de duas crianças e um adolescente. O laudo pericial sobre as crianças, que tinham menos de 10 anos, feito em Aracruz, apontava como causa o alcoolismo. Já a perícia do rapaz, feita em Vitória, indicava envenenamento em decorrência de agrotóxicos utilizados pela empresa Aracruz Celulose. Porém, o laudo dele sumiu do processo, que teve que ser arquivado. Para encerrar sua fala, Pompeu afirmou que a luta social hoje se dá no campo simbólico, na atribuição de sentido às mensagens e que encontros como aquele são revolucionários. “Se a mídia não pauta, podemos discutir por nossa conta”.

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Estudante de Comunicação Social/Jornalismo da Ufes, Vitória