Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

O racha que só a imprensa viu

A democracia não suprime a divergência, nem pode ficar paralisada em razão da mesma. Numa verdadeira democracia a vontade da maioria predomina e a minoria se resigna a exercitar seu direito de crítica. É assim que funciona nos outros países, é assim que deve funcionar no Brasil. Mas a imprensa parece ignorar ou não gostar disto.

O título e o tom da matéria sobre o Plano Nacional de Direitos Humanos do Último Segundo, do iG, exemplifica o desgosto da mídia: ‘Plano Nacional de Direitos Humanos racha o governo‘.

O resumo da matéria não se ajusta perfeitamente ao título:

‘Numa tentativa de contornar a divisão no próprio governo, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República se defendeu das críticas ao Plano Nacional de Direitos Humanos feitas pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, de setores da Igreja Católica, de parlamentares ruralistas e do ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes. O órgão afirma ter apoio maciço à proposta na Esplanada dos Ministérios, com assinatura de 31 das 37 pastas.’

A deformação funcional

Antes de fazer a crítica da matéria, convém lembrar algumas lições importantes. Em seu livro Jornalismo e Desinformação, o jornalista Leão Serva detalha os procedimentos através dos quais a imprensa produz desinformação. São eles: omissão, sonegação e submissão da informação.

‘Pode-se chamar omissão a ausência de informação, de qualquer natureza, causada por falta de condições do órgão de imprensa de obtê-la.’ A omissão é, portanto, uma limitação material ou econômica.

‘Por sonegação entende-se aquela informação que, sendo de conhecimento do órgão de imprensa, não foi colocada na edição por alguma razão.’ A sonegação não é fruto de uma limitação, mas de uma escolha consciente.

‘Por submissão entende-se o fato que, embora noticiado, tem uma edição que não permite ao receptor compreender e deter a sua real importância ou mesmo seu significado.’ A submissão pode ser fruto de uma limitação material desprezada em benefício da divulgação da informação parcialmente desconhecida. Mas também pode ser fruto de uma escolha consciente de dar menos ênfase a um assunto considerado sensível aos interesses do veículo.

Além dos casos de omissão, sonegação e submissão, a informação pode sofrer deformação. Leão Serva classifica corretamente a deformação como um caso extremo de submissão. ‘Quando a desinformação gerada por alguns casos de submissão é tão grande que chega a provocar a compreensão errada da informação, isso poderia ser chamado de deformação da informação.’

Já a desinformação funcional ‘corresponde a um fenômeno definido pelo fato de que as pessoas consomem informação através de um ou mais meios de comunicação, mas não conseguem compor com tais informações uma compreensão do mundo ou dos fatos narrados nas notícias que consumiram.’ Curiosamente, a deformação funcional pode ser produzida pela própria imprensa na medida em que a ‘necessidade de surpreender e os procedimentos usados pelo meio para esse fim explicam em parte a existência de tantos leitores que, embora metralhados diariamente por um sem-número de informações, nem por isso compreendem realmente a natureza dos fatos que consomem.’

Religião e Estado

Tal como foi titulada e concebida, a matéria do iG dá a entender que a maioria do governo não tem direito de adotar o novo Plano Nacional de Direitos Humanos. Este é um caso típico de deformação jornalística.

Como dissemos no princípio, numa democracia a vontade da maioria deve predominar. Portanto, se o Plano Nacional de Direitos Humanos é apoiado por 31 dos 37 ministérios não há um racha. O que há é uma minoria descontente querendo paralisar o governo e impor sua vontade à maioria dos Ministérios. Esta manobra deveria ocupar o centro das preocupações dos jornalistas do iG. Mas não foi isto que ocorreu.

Há ainda um outro problema. A matéria se refere a uma divisão no governo, mas cita membros da Igreja Católica e parlamentares ruralistas. Nós vivemos num Estado laico cuja Constituição prescreve expressamente a separação entre religião e Estado. Portanto, a Igreja não faz e não pode fazer parte do governo (muito estranha um jornalista não saber disto). Além disto, os parlamentares ruralistas não fazem parte do governo, mas da oposição.

Fiz questão de citar o livro do Leão Serva, ex-assessor da Prefeitura de São Paulo e atual diretor de Redação do Diário de S.Paulo, porque ele foi o editor do iG por muito tempo. Leão Serva está fazendo falta àquele portal ou os jornalistas do Último Segundo desprezam completamente sua obra Jornalismo e Desinformação?

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Advogado, Osasco, SP