Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O risco de ser mulher no Ceará

Quero fazer uma breve, embora triste, comparação de duas notícias que semana passada saíram em distintos territórios e respectivos meios de comunicação, e que dividem um aspecto em comum e outro, não. Em seguida, baseado nesses básicos dados, pretendo compartilhar um raciocínio com meus eventuais leitores.

Primeira notícia: no ano de 2006 no Ceará foram assassinadas 135 mulheres. Segunda notícia: no mesmo ano, na Espanha, foram assassinadas 70 mulheres. Dados para aumentar a distância: a população do Ceará é de 7,5 milhões de habitantes e a da Espanha é de 44.108.530. São dois conjuntos de números referentes aos mesmos dados: morte violenta de uma parcela de uma população (mulheres) e estas populações (Ceará x Espanha).

Sentimento apaixonado de humanidade

Sem necessidade de acudir para percentuais para reforçar o argumento, apresento uma breve opinião. Creio que, neste caso, os números cobrem de indignidade nossa sociedade, não apenas a cearense, frente à nação e seus estados, porém, infligindo maior vexame na alencarina, pois que valores seriam mais relevantes numa sociedade que não protege suas mães, esposas e filhas? Que qualidades maiores teriam esses valores que os façam sobrepor qualquer discussão destes números indecentes? Quantas mulheres mais precisam morrer no Ceará para que as manchetes dos veículos locais e de outros estados detenham qualquer outra atividade com o intuito de dedicar especial atenção para este problema que é real e sem volta?

Admito que essa vergonha não nos converte em cúmplices, mas o contrário também pode encontrar defesa. O ideal seria uma ‘atitude externa de desconforto’ dos cearenses, clamando para si a voz das mortas e, através disto, fundados nas principais ferramentas legais existentes (Declaração Universal dos Direitos Humanos e Constituição federal brasileira), serem protagonistas de um movimento político fundamental para situações desta amplitude, um movimento constitucional, na visão de Bruce Ackerman. Abdicar desta ação seria continuar como um verme sobre o fio de uma navalha.

Não pretendo generalizar nem ser apocalíptico, mas também não consigo ‘despojar minhas palavras desse apaixonado sentimento de humanidade e dessa indignação ante a injustiça que dão força a muitos escritos…’, como escreve Robert Dahl. Ressalva posta, creio que este elemento é mais uma absurdo constitutivo presente no seio de um Estado fraco e ineficaz, com instituições cambaleantes e inócuas. Desejaria que nenhum setor tome para si um manto de culpa, mas sim todos, indiferentes de casta, pois mães, irmãs, esposas e filhas temos todos, sejam do Ceará, do Acre, do Goiás, do Espírito Santo ou do Paraná. Em outra ocasião, trouxe um texto de Marco Aurélio Weissheimer comentando um livro de Luís Mir, e pus:

‘Sigamos! Com nossa novela, Copa do Mundo, banda larga, revista; com nosso jornal, bbb, cartão, 8 anos, hexa. Morram eles, expirem eles, agonizem eles, maldigam eles. Sigamos aqui, eles lá. Enquanto eles morrem em silêncio, nós seguimos em arruaça. Acreditando naquilo que lemos e não lendo aquilo que acreditamos.’

Problema está abaixo da terra

Aqui posso repetir o texto, pois a idéia de Luís Mir permanece: temos uma guerra civil em nosso país, e acrescento que não a vemos por que não nos mostram! No texto de Weissheimer o pato da vez é a população carcerária, e vos digo: entre estar em uma cadeia no Brasil ou ser uma das 135 mulheres que pereceram me paira uma dúvida. E a latência da sociedade também se repete neste caso. Embora, tanto para as mulheres vítimas de violência quanto para os presidiários, existam setores organizados da sociedade que prestam um mínimo de atenção.

Em determinadas situações como estas fica evidente o que chamamos de ‘ausência do Estado’. Mas não é o apenas o Estado que está ausente, é a sociedade. Não é que a polícia militar ou civil do Ceará falharam para prevenir e evitar estas mortes: culpar estes órgãos não é atitude responsável e que se sustente por mais de 5 minutos. Tampouco repousa apenas nos dirigentes políticos a responsabilidade ampla, embora a política possa estar presente. A sociedade é a matriz de todos estes sujeitos e, ao mesmo tempo, a responsável pelo acompanhamento de suas funções. Suas instituições, os canais para exercer este acompanhamento.

Talvez exista alguém capaz de enumerar todas as instituições que devem defender a mulher no Brasil, entretanto nenhuma delas se fez presente de maneira eficaz para evitar as 135 falecidas. Não se pode repensar este Estado a partir de seus ramos filiais. O problema está abaixo da terra, nas raízes do Estado, em sua constituição e Constituição. E para tão arraigados fundamentos, diferente não pode ser sua discussão e reparo. Por tal motivo, finalizo aqui. E trago Terral, de Ednardo: ‘Aldeia, Aldeota, estou batendo na porta pra lhe aperriá/ Pra lhe aperriá, pra lhe aperriá/ Eu sou a nata do lixo, eu sou o luxo da aldeia, eu sou do Ceará.’

[Dedico este texto às 135 mulheres assassinadas no meu estado em 2006.]

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Estudante de pós-graduação, Fortaleza, CE