Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O silêncio virtuoso da informação

Em sua minicrônica na Folha de S.Paulo, o colunista Fernando Rodrigues chamou a atenção para o fato de que os deputados da CPI do Apagão Aéreo deixaram passar sem maiores contestações o depoimento evasivo do presidente da TAM, porque suas prioridades estariam em ‘oferecer ao país a interpretação oral e dramatizada das últimas frases do piloto morto no acidente’ (Folha, 4/7/2007, pág. A 2).


Como se sabe, depois de tomarem conhecimento do contéudo de dois CDs, com dados técnicos do vôo, gravação e transcrição dos diálogos dos pilotos do Airbus da TAM, os parlamentares chegaram à conclusão de que tinha se passado ‘um filme de terrror’. A partir daí, as discussões que vieram a público versavam basicamente sobre conveniência ou não de se dar divulgação a esse material. ‘Divulgar gritaria é mórbido’, disse um; ‘o leitor seria voyeur de um sofrimento à distância’, disse outro.


As várias questões problemáticas aí implicadas não permaneceram no âmbito dos deputados, foram também comentadas por jornalistas e por este Observatório da Imprensa. A principal diz respeito aos limites jornalísticos na divulgação de aspectos de um fato que tenha causado intensa comoção pública e muito sofrimento privado. Pensa-se, sobretudo, na divulgação televisiva, por seu potencial de reprodução do vivido.


A propósito da informação sobre os atentados terroristas contra as Torres Gêmeas em Nova York, Daniel Dayan, analista francês de mídia, diz que…




‘…é preciso desconfiar, em matéria de televisão, de uma equação simplista: ter imagens é ter informação; não ter imagens é ficar desinformado. A proporção costuma ser falsa (a informação dada pela imagem só se revela às vezes numa segunda leitura, e então pertence àquilo que Carlo Ginzburg chamava de paradigma do índice)’.


Espetáculo da agonia


Ginzburg é um historiador italiano preocupado com uma outra matriz de conhecimento que busca a realidade nos indícios, e não nos tópicos e nas provas. Trata-se de um modelo investigativo, surgido em fins do século 19 tanto na literatura policial quanto nas ciências sociais, ao qual não se prestou muita atenção. Sua matriz é a estética, que prioriza sensores paralógicos e alógicos, tais como o olfato, o golpe de vista e a intuição.


Os índices respondem pelos componentes intuitivos da cognição, o que fica muito evidente no caso da televisão, onde contam muito os gestos, as inflexões de voz, as cores, os ruídos. Mas a sua predominância em qualquer jornalismo colado ao mercado resulta no fenômeno já muito bem descrito por Perseu Abramo, embora referindo-se ao impresso:




‘O texto passa a ser mais importante que o fato que ele reproduz; a palavra, a frase, no lugar da informação; o tempo e o espaço da matéria predominando sobre a clareza da explicação; o visual harmônico sobre a veracidade ou a fidelidade’.


Seria, assim, puramente indicial o detalhamento imagístico da catástrofe do Airbus da TAM, ou seja, as imagens serviriam para suscitar uma ‘outra coisa’, que bem poderiam ser informações de natureza diversa sobre os pilotos e os passageiros. Como comenta Dayan sobre o atentado às Torres:




‘Eu sei que o comandante Massoud morreu. Mas para ter acesso a tal informação, eu não tive nenhuma necessidade de assistir à sua agonia. O espetáculo dessa agonia me teria dado outras informações, informações médicas sobre a resistência de um homem, informações psicológicas sobre mim próprio e sobre o que me incita a olhar. Mas essas outras informações não são pertinentes para um relato público‘.


Arsenal de influências


É difícil para um agente da comunicação coletiva, habituado a um certo vezo profissional segundo o qual ‘tudo deve ser mostrado’, aceitar o princípio da necessária ‘ausência ocasional de informações’. Em outras palavras, aceitar que às vezes o jornalista deve calar, especialmente em situações em que a manipulação da notícia com vistas ao efeito sensacional continua a ser, hoje como no passado, uma espécie de tentação maléfica para a boa consciência jornalística, que não é imune às enormes pressões da mídia de entretenimento e ao enfraquecimento institucional de seus mecanismos de apuração do fato.


Desta vez se evitou o ‘espetáculo’ televisivo da agonia, mas de um jeito ou de outro, no manifesto e no latente do impresso, ficou-se sabendo do ‘filme de horror’.


A segunda questão problemática tem a ver apenas indiretamente com a mídia e muito diretamente com a famosa CPI do Apagão Aéreo. Indiretamente, porque ao priorizarem num primeiro momento a discussão sobre a divulgação do conteúdo da caixa-preta, os parlamentares forneceram o índice preciso para se averiguar o verdadeiro foco de suas preocupações – ou seja, a mídia, com todo o seu arsenal de influências. Diretamente, porque se revela de fato um problema de grande interesse público saber por que ainda se faz CPI em Brasília.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro