Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O surto esquizofrênico da mídia





Dois meses após o lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), a polêmica começa a esfriar. Depois de uma cobertura tímida logo após o anúncio do programa, em dezembro do ano passado, no início de janeiro os meios de comunicação despertaram para a importância do tema e promoveram um estardalhaço em torno do assunto.

Lançado em 1996, na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, o programa foi ampliado pela primeira vez


em 2002. Entre os seus pontos mais controversos está a revisão de crimes de violação dos Direitos Humanos cometidos durante a ditadura militar. Classificada como revanchista, a iniciativa gerou descontentamento na ala militar. O PNDH-3 desagradou também a setores da igreja católica, representantes de grupos homossexuais, ruralistas e entidades do setor de comunicação. Mas, para seus defensores, é um avanço da garantia dos direitos básicos do cidadão e fortalece a democracia.


O programa Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (23/2) pela TV Brasil discutiu os objetivos do PNDH-3 para a mídia e a cobertura dos veículos de comunicação sobre o plano. O ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vannuchi, participou pelo estúdio em Brasília. Em São Paulo, o programa contou com a presença da procuradora Flávia Piovesan, membro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do Estado de São Paulo. Aluízio Maranhão, editor de Opinião do jornal O Globo participou pelo estúdio do Rio de Janeiro.


Nível de exigência 


Antes do debate ao vivo, na coluna ‘A Mídia na Semana’, o jornalista Alberto Dines comentou fatos recentes. A pouca cobertura que a mídia dedica à administração do Distrito Federal, encarada como secundária inclusive pela imprensa local, foi o primeiro tema da seção. Em seguida, Dines comentou o lançamento de um grande número de novidades tecnológicas que prometem modificar os hábitos de leitura: ‘Está ficando evidente que a tal revolução tecnológica destinada a acabar com o jornalismo impresso resume-se à disputa para oferecer equipamentos. Enquanto isso, jornais e revistas oferecem conteúdo’, sublinhou. O último assunto da coluna foi o fim do mandato do jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva como ombudsman da Folha de S.Paulo. Dines destacou que o jornalista foi ‘rigoroso e justo’ nos dois anos em que ocupou o cargo.


Em editorial sobre o PNDH-3, Dines abordou a reviravolta na cobertura do assunto. ‘Dezoito dias depois, alguém soprou para os jornais a informação de que o programa continha restrições à liberdade de expressão. E, de repente, evaporou-se o bom senso e entrou em ação a banda de música das corporações de mídia’, disse [ver íntegra abaixo]. O jornalista relembrou que Carlos Eduardo Lins da Silva criticou a demora da Folha para dar destaque ao programa e a pouca profundidade com que o tema foi tratado.


A reportagem produzida pela equipe do programa entrevistou o coordenador do primeiro PNDH, José Gregori. Ex-ministro da Justiça, ele foi o primeiro secretário nacional de Direitos Humanos, cargo criado em 1996. Atualmente, ocupa a presidência da Comissão Municipal de Direitos Humanos de São Paulo. Para o ex-ministro, a democracia e os direitos humanos são os dois lados de uma mesma moeda. Por isso, os direitos humanos ‘praticamente só convivem na democracia’. Dificilmente são respeitados por regimes fortes. ‘A gente só concebe um regime escolhido livremente pelas pessoas – com alternância de poder, com limitação de poderes – desde que ele se complemente com os direitos humanos. Aí garante a vida, a liberdade, a igualdade, e modernamente também, direitos sociais, como saúde, educação, trabalho e moradia’, explicou.


Na opinião do ex-ministro, dois aspectos estruturais da mídia eletrônica merecem atenção: a grande disputa de audiência entre as emissoras e o baixo nível educacional da população. Na medida em que o acesso à educação aumentar, o nível de exigência em relação à programação televisiva também crescerá. ‘Mesmo antes de chegar essa hora em que o público cobre, acho que a televisão poderia propiciar um mais alto nível de qualidade’, disse. Gregori relembrou que quando esteve à frente da secretaria reuniu-se com representantes das emissoras de TV para estimular a criação de um manual de ética para o setor, mas que o projeto não vingou.


Reação desproporcional 


No debate ao vivo, Dines pediu para o ministro Paulo Vannuchi avaliar a reação ‘controversa’ e ‘tardia’ da mídia ao PNDH-3. ‘Distorções foram praticadas. Houve uma reação desproporcional e, sobretudo, houve pouco cuidado em ler com atenção o que o programa propõe’, criticou o ministro. A imprensa não informou, por exemplo, a realização de diversas reuniões regionais para elaborar as ações do programa. Cerca de 14 mil cidadãos que ‘não têm voz’ participaram das discussões.


É orientação da ONU que os programas nacionais de direitos humanos tenham caráter abrangente, por isso a mídia é objeto do PNDH. Uma das ações propostas pelo programa – a criação de um ranking de veículos comprometidos com a garantia desses direitos – causou alvoroço no setor e foi objeto de confusão na imprensa. ‘Ao abordar os temas da Comunicação, [o PNDH-3] propôs centralmente definir critérios editoriais para ranking até no sentido de valorizar veículos que produzem boas matérias’, argumentou. Vannuchi criticou o comunicado divulgado em horário nobre pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). O ministro afirmou que o comunicado se equivoca ao afirmar que o programa prevê a criação de uma ‘comissão’ do governo.


‘O jornalismo tem um papel central na construção democrática. Não pode um comunicado distorcer desta forma’, disse Vannuchi. ‘Viu-se no programa um ataque, uma tentativa de censura, de cerceamento, que não existe nele. Todo o pensamento do governo do presidente Lula é no sentido de que a liberdade plena de imprensa é um bem indispensável da democracia’, afirmou. O ministro acredita que após a confusão inicial ocorrida no lançamento do PNDH-3, uma nova fase terá início. ‘Agora, passou o período de estresse, de ruído, e vamos começar o diálogo democrático respeitando opiniões contrárias e mostrando que a mídia tem um papel absolutamente central na consolidação dos direitos humanos no Brasil’, disse.


Em um mea culpa, Aluízio Maranhão concordou que houve erros na cobertura. A imprensa ‘comeu mosca’. Para os jornais, o mais importante no lançamento do programa foi ‘o novo visual’ da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, que aparecia em público pela primeira vez sem peruca após as sessões de quimioterapia a que se submeteu. Os jornais só passaram a dar destaque ao plano quatro dias depois do lançamento, e então começou o exagero. ‘A reação considerada desmedida veio à altura dos cuidados e da sensibilidade que as grandes redações já desenvolveram ao longo de sete anos com o governo Lula no que se refere à liberdade de expressão’, disse.


Maranhão ponderou que a terceira versão do programa carrega uma ‘marca’ por ter sido lançado em uma gestão na qual o convívio de segmentos do governo com a liberdade de expressão e de imprensa é difícil. ‘Há setores do governo Lula de corte autoritário’, classificou. Como exemplo, Maranhão relembrou as tentativas de criação do Conselho Nacional de Jornalismo (CNJ) e da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav), afastadas pelo presidente Lula. Outro aspecto que contribuiu para o tom da cobertura foi a ‘sensibilidade’ desenvolvida por jornalistas que trabalharam sob censura no regime militar para detectar quando a liberdade de expressão está em risco.


‘A fala de Aluízio Maranhão reforça o que eu já imaginava. A reação está sendo muito desproporcional ao que está proposto. Talvez seja a posição que setores da mídia já afirmaram como tese irremovível de que haveria um forte autoritarismo no governo Lula’, analisou Vannuchi. O ministro reafirmou o viés democrático do governo e ponderou que é preciso haver diálogo entre os diversos setores da sociedade.


Diálogo necessário


Na opinião de Flávia Piovesan, não há democracia sem imprensa livre e independente, mas no âmbito dos direitos humanos é preciso avaliar não só a responsabilidade de Executivo, do Legislativo e do Judiciário, mas também dos atores não-estatais. ‘A mídia tem um papel extraordinário como agente em uma ordem democrática. Portanto, a responsabilidade da mídia deve ser destacada seja quando viola ou quando promove os direitos humanos. Aí é que eu acho que o programa presta uma contribuição’, disse. A procuradora destacou ainda que o Poder Judiciário vem adotando posições firmes para controlar programas televisivos abusivos em ações propostas pelo Ministério Público.


Das cerca de quinhentas ações propostas pelo programa, em torno de trinta sofreram críticas por parte da imprensa, o que mostra, na visão do ministro Vannuchi, que há consonância em torno da grande maioria dos temas.


Mas a imprensa não agiu como um ‘bloco monolítico’, houve posicionamentos diferentes. Vannuchi elogiou a cobertura da Folha de S.Paulo. Além das críticas à cobertura publicadas pelo então ombudsman Carlos Eduardo Lins da Silva, o ministro destacou os artigos do jornalista Fernando Rodrigues. Em uma das edições, Rodrigues comparou a atual versão do programa com as duas anteriores e mostrou que no tocante à mídia, a formulação era a mesma e, em alguns pontos, mais dura.


Vannuchi ressaltou que na época do lançamento das versões anteriores ‘não houve grita’ por parte da imprensa. O ministro questionou a pertinência da reportagem publicada pela revista Veja em 10/01/2010 sobre o PNDH-3 sob o título ‘Coisa de maluco’. ‘Eu pergunto: esse tipo de construção ajuda a elucidar o debate? Sem nenhuma palavra ao contraditório, sem ouvir a outra parte, cotejar argumentos? Neste sentido, os problemas os autoritarismo estão distribuídos por diferentes partes’, criticou


‘O que se propõe aqui é o diálogo. É reconhecer que a mídia tem um papel fundamental. É o quinto eixo do nosso Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. É pela ação da mídia que nós formamos uma cultura de respeito ao outro ou seguimos com programas de incitação à violência e à vingança’.


Aluízio Maranhão concorda com a necessidade de diálogo, mas ponderou que a auto-regulação do setor pode ser um bom mecanismo para coibir os excessos, como acontece com o segmento publicitário. ‘Toda vez que houver sinais de tentativa de o Estado tutelar, haverá uma reação’, disse.


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PNDH e a mídia


Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 534, no ar em 23/2/2010 –


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa. Vai entrar para a história a reação da mídia ao 3º Programa Nacional de Direitos Humanos. A solenidade nos últimos dias do ano passado foi noticiada de forma rotineira, mundana, dominada pelo novo visual da ministra Dilma Rousseff.


Inicialmente, tanto o noticiário como a opinião da maioria dos colunistas, era favorável a uma revisão dos casos de violência cometidos durante o regime militar. Dezoito dias depois, alguém soprou para os jornais a informação de que o programa continha restrições à liberdade de expressão. E de repente, evaporou-se o bom senso e entrou em ação a banda de música das corporações de mídia. Num passe de mágica o 3º PNDH tornou-se um instrumento totalitário despojado de qualquer sentido humanitário.


O então ouvidor da Folha de S.Paulo, Carlos Eduardo Lins da Silva, num texto memorável, cobrou do jornal a demora e a falta de cuidado em examinar um ato tão importante. Estranhou que um documento discutido publicamente, um ano antes, jamais tivesse sido levado ao conhecimento dos leitores.


Em clima de cruzada ninguém prestou atenção para o fato de que este 3º Programa de Nacional de Direitos Humanos seguia o espírito dos anteriores apresentados durante os dois mandatos do presidente FHC. Sem qualquer restrição.


A questão dos direitos humanos é obrigatoriamente abrangente. A defesa do cidadão deve operar-se em todas as esferas, inclusive no campo da comunicação social e sobretudo no caso das mídias audiovisuais regidas pelo sistema de concessão pública.


Este Observatório aplaudiu a iniciativa do então secretário nacional de Direitos Humanos, José Gregori, que em 1999 pressionou as empresas de mídia eletrônica a adotar padrões de qualidade que não agredissem os direitos dos telespectadores. Agora não podemos deixar de estranhar que, no lapso de apenas uma década, o que a mídia considerava natural e insignificante tenha se tornado uma abominável tentativa repressora.


O 3º Programa Nacional de Direitos Humanos foi reescrito por determinação do presidente Lula, o caso está aparentemente encerrado. Mas o surto esquizofrênico da nossa mídia revela uma perigosa disposição panfletária incompatível com os pressupostos de uma sociedade democrática.


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A mídia na semana


** Quando o Rio era a capital do país, os jornais cobriam os três poderes federais e além disso a administração da cidade onde funcionavam. Hoje, as sucursais de Brasília abrigam as maiores equipes de jornalistas porque o estado ampliou-se e a sociedade passou a exigir maior fiscalização da máquina pública. Mas a cobertura do Distrito Federal tornou-se secundária. Inclusive na imprensa local. O resultado deste afrouxamento é o megaescândalo que levou o governador Arruda para o xilindró e obrigou o seu vice a renunciar. O papel da mídia nestes dois meses de horrores resumiu-se a repercutir e ligar o alarme. Fazer barulho é uma das funções da imprensa mas não deve ser a única. Quando a imprensa abdica da função de fiscal, tudo vai mais devagar.


** Há três semanas a Apple lançou com grande estardalhaço o seu iPad. Agora em Barcelona foi a vez da Microsoft exibir o seu primeiro celular multimídia, o Windows Phone 7. Está ficando evidente que a tal revolução tecnológica destinada a acabar com o jornalismo impresso resume-se à disputa para oferecer equipamentos. Enquanto isso, jornais e revistas oferecem conteúdo.


** A função de ombudsman da Folha de S.Paulo é uma das mais visíveis e importantes da imprensa brasileira. A troca de guarda na ouvidoria do jornal tem se revestido de uma certa solenidade nestes 20 anos desde que o cargo foi criado. Todos os ouvidores completam os seus mandatos com exceção de Mário Magalhães que em abril de 2008 resolveu afastar-se por discordar do embargo imposto pela direção do jornal à publicação da sua crítica diária. Agora, há indícios de novo tranco: Carlos Eduardo Lins da Silva anunciou no último domingo que abre mão do seu terceiro ano de mandato ao mesmo tempo em que se anunciava que a sucessora só assumirá dentro de dois meses. Aparentemente a substituição não teve a fluência habitual. Lins da Silva foi um ombudsman rigoroso e justo.

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Jornalista