Wednesday, 08 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

O tênue limite para as celebridades

Em 8 de dezembro de 1980, Mark Chapman postou-se na esquina do edifício Dakota, em Nova York, e exterminou, com quatro tiros à queima-roupa, um dos maiores ídolos da geração dos anos 1960 e 70. John Lennon tombou, assinalando o fim de um sonho. Chapman justificou sua atitude afirmando que não poderia haver dois iguais ao cantor, pois ele próprio era John Lennon. A patologia que acometeu o assassino foi diagnosticada como esquizofrenia, uma obsessão que somente poderia findar com a eliminação do seu admirado, do seu ‘duplo’. Chapman queria ser John Lennon, sentia-se John Lennon e, portanto, teria que eliminá-lo para, enfim, sentir-se o único capaz de conhecer a sua vida, pois o outro não existia mais.


À parte qualquer abordagem psicanalítica, a história do assassinato de Lennon possibilita uma oportuna reflexão sobre o limite entre o público e o privado na vida de uma celebridade. Um limite que é estabelecido pelo direito, em primeiro lugar, e que se segue pelo senso comum. A curiosidade, a fofoca, é talvez parte do instinto humano e surge a partir de um sentimento de inveja, da necessidade de ter o que o outro tem, desfrutar daquilo que o alheio desfruta. Assim, deter o conhecimento do detalhe mais íntimo da vida de celebridades é também possuir um pouco do gozo de sê-la, ainda que por alguns instantes imaginários.


O direito constitucional estabeleceu dois conceitos que se confrontam quando se está diante da revelação de fatos da vida privada de uma pessoa tida como pública: o da liberdade de expressão e o do direito à intimidade – direito dito personalíssimo. Divulgar o que faz uma celebridade no âmbito de quatro paredes é permitido? É livre o investigador que assim o pretende? A vida de uma celebridade é pública, não há nada privado? É diante da linha tênue que separa essas questões que se depara o comunicador – jornalista, cronista, escritor. E a resposta, quem pode dar é o Direito.


Expor tudo


É indiscutível que ninguém quer mais a celebridade do que o próprio fã, ninguém é capaz de se dedicar mais às suas idiossincrasias do que ele, que o devota, o admira, o idolatra. E em todo o lugar do mundo não faltam revistas ou periódicos destinados a vasculhar a vida de celebridades, escancarar suas veleidades numa ânsia obstinada por expor cada detalhe do seu quotidiano, desvendar sua intimidade e, se possível, seus segredos mais íntimos.


No Brasil, com freqüência o nome do cantor Roberto Carlos – sem dúvida um dos que mais atenta para a discrição e resguardo de sua vida privada – é alvo de algum tipo de curiosidade. Não à toa é a maior celebridade popular dos últimos trinta anos, posto na condição de majestade, o Rei. Sua biografia não-autorizada, Roberto Carlos em Detalhes (Ed. Planeta, 2006), no entanto, é objeto de litígio judicial entre cantor e autor [ver remissões abaixo].


O autor, Paulo César Araújo, entende que é livre para divagar sobre a vida do cantor e, a pretexto de contar a sua história, o livro vislumbra uma obstinação pelo cantor, buscando detalhes da sua vida – mesmo que em páginas de revistas sobre celebridades, trechos de obras de outras personalidades, mas sem, em momento algum, entrevistar o biografado, pois este não o quer. Então, só restou ao autor expor tudo, como forma de assumir para si a autoria de algo que não lhe pertence. Reverenciar o biografado e, ao mesmo tempo, atingi-lo pela sua ignonímia, pelo descaso para com o seu apreço de anos dedicados à vida do cantor. O livro relata logo no início as tentativas frustradas do autor para encontrar o seu ídolo.


Jogar damas à noite


Outro exemplo que ilustra o imaginário popular é o das fotos que circulavam na internet nos anos 1990, com as imagens dos corpos dilacerados dos integrantes do grupo Mamonas Assassinas, mortos em um acidente aéreo no auge de sua carreira. Foram amplamente difundidas, em manifesta curiosidade mórbida que se deflagra em momentos de comoção entre os fãs. A desgraça também atrai olhares.


É a admiração do fã pelo ídolo que denota sua atração e expô-la ao público é como fazer parte da sua vida. Propagá-la indiscriminadamente é como atribuir para si um poder de possessão, acima do direito da pessoa sobre sua própria vida. Como Chapman fez por vias mais patológicas, apagando a vida do outro para o assumir em seu delírio.


Esconder-se atrás de institutos jurídicos de liberdade e propalá-la como verdade absoluta, entretanto, é ignorar que a celebridade é também um ser humano que pretende ter uma vida, às vezes alheia a tudo. Justamente a que pretendem subtrair, a que deveria ser privada, mesmo que reservada para jogar damas à noite, quando os vassalos se retiram, como fazia o monarca Luis XV, na França setecentista, antecedido por um Rei Sol que extravagou o exibicionismo.

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Advogado, ex-estudante de jornalismo e sócio do escritório de advocacia que atuou no patrocínio da ação movida pelo cantor Roberto Carlos contra o seu biógrafo