Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

O espetáculo da parcialidade

Indiscutivelmente, o novo plebiscito-referendo popular que se realizará na Venezuela sob Hugo Chávez, balançando o debate político latino-americano, coloca em cena a grande mídia nacional e latino-americana, abalada pelas finanças do capitalismo periférico que a leva à propensão permanente de aproximar-se do capital externo como forma de angariar poupança.

Trata-se de momento excepcional para a TV Pública começar a trabalhar para valer, jogando no ar as opiniões antagônicas sobre o assunto, por meio de intensos debates sobre a realidade política da América do Sul, no processo de sua integração econômica, política e social, para que a sociedade brasileira possa entender melhor as disputas em jogo, já que se depender somente da mídia privada, se assistirá ao espetáculo da parcialidade, da manipulação e do cinismo.

O show de parcialidade já começou. No sábado, 03.11, no Jornal Nacional, apenas foi ouvido o sociólogo Demétrio Magnoli, que considerou o movimento chavista essencialmente ditatorial. É uma opinião. Mas, por que somente ela? Porque seria adequada aos interesses da empresa jornalística? E o contraditório? Não será ouvida opinião divergente? Pelo menos foi o que se observou na primeira cobertura quente, depois da sexta-feira, quando o parlamento venezuelano aprovou modificações da Constituição que irá a referendo popular.

Um jogo contraditório

A Rede Globo, como exemplificou a cobertura, mostrou do lado em que está e plenamente disposta a não fazer o verdadeiro jornalismo, isto é, ouvir os dois lados da notícia, a realidade, essencialmente dual, interativa, dialética. A concessão pública de canal de televisão existe para exibir tal comportamento fundamentalmente distorcido, ou a sociedade, que é dona da concessão, deveria ser tratada democraticamente, sob pena da concessão ser revertida em favor do espírito democrático?

Emergiu, pelo noticiário da Globo, no sábado, a opção pelo mecanicismo, propenso, permanentemente, à manipulação, dada disposição de evitar o debate, que implica atenção à diversidade, à controvérsia, enfim, respeito à natureza humana, que busca sempre exercitar a sua condição de sujeito para fugir da sina do objeto em que tentam transformá-la.

Certamente, a visão crítica sobre Hugo Chávez tem que ser exercitada. Ele foi e é militar, formado nas academias militares norte-americanas que, como mostra a história, preparam muitos personagens candidatos a ditador no sofrido continente latino-americano, subordinado aos interesses econômicos e políticos dos Estados Unidos. E não se tem notícia de adaptação fácil de militares ao processo democrático. A rigidez da formação castrense indispõe o indivíduo, especialmente os intolerantes, ao jogo contraditório da democracia liberal clássica, hoje um poço de corrupção, especialmente nos países capitalistas cronicamente endividados, como o Brasil.

Haraquiri político

Os exemplos na história do país são escassos no sentido de perceber militar realmente democrata. A norma é a semi-democracia, no máximo. O exemplo é o presidente Dutra. Se, de um lado, assinou a Constituição de 1946, por outro, perseguiu o Partido Comunista, demonstrando, de fato, presidir uma semi-democracia sujeita ao bom ou mau humor do comandante de ocasião.

A latino-américa é isso aí, autoritária, historicamente, alvo de saques e explorações de suas riquezas, sob ordens externas, cumpridas pelos ditadores para fazer o desenvolvimento dos países ricos, europeus e dos Estados Unidos, enquanto suas energias físicas e materiais se subordinam à escravidão financeira permanente.

Sendo fruto desse processo, como não imaginar Chávez autoritário, intrinsecamente, em sua formação rigidamente militar, temperada pelo marxismo-leninismo?

Mas, também, como negar que todas as ações que empreende têm a chancela popular pelo novo bolivarismo político chavista?

É possível engolir o argumento absoluto de que a população está sendo manipulada de alto abaixo?

Manipulação em um país onde a oposição decidiu pelo haraquiri político, ausentando-se das eleições parlamentares, para não dispor de representantes no parlamento?

Golpe via referendo?

A oposição venezuelana – a grande mídia esconde esse fato – é, na verdade, títere de Washington, que acabou sendo mais realista que o rei expondo o próprio rei, tornando-o impopular perante os súditos.

O que Chávez tem a ver com o golpismo extremado da oposição da Venezuela, que golpeou a si mesma e abriu espaço ao avanço do discurso socialista regado a investimentos sociais com o dinheiro do petróleo da PDVSA?

O debate sobre a supressão de limite para o mandato da Presidência e outras alterações constitucionais – que centralizam o poder político, como fizeram, de outro modo, no Brasil, os credores e o Consenso de Washington, instituindo a centralização via medidas provisórias, destruindo o espírito federativo, enquanto baixa a taxa de democracia congressual, sob silêncio da grande mídia, tributária da banca – está na rua há mais de seis meses em toda a América Latina.

A questão freqüenta todas as rodas nos países latino-americanos, imagine dentro da Venezuela, onde se articula amplo movimento popular há mais de cinco anos, polarizando posições políticas antagônicas e contraditórias?

Por acaso não foram tais movimentos, mediante amplos debates, que serviram de motivações para os golpistas, apoiados por Washington, seqüestrarem Chávez, sem saber o que fazer com ele, até devolvê-lo aos braços do povo, condenando-se a si mesma de anti-democrática, enquanto tenta taxar de anti-democrata quem propõe o golpe via referendo?

Os dois lados da notícia

Ou o referendo tem aspectos democráticos que relativiza o autoritarismo chavista, diferenciando-o em forma de um neogetulismo latino-americano, já que Chávez elogia abertamente o ex-presidente brasileiro e o considera um seguidor de Bolívar? Do ponto de vista democrático, não seria honesto que a mídia mostrasse a diferença qualitativa do ditador Getúlio, que fechou Congresso, e o ditador Chávez, que trabalha com o Congresso e seguidas consultas ao povo sobre seus atos?

A grande mídia está diante de suas próprias contradições. Vai fazer jornalismo honesto, olhando a notícia como polaridade que expressa o movimento da realidade política em sua dualidade intrínseca ao real concreto em movimento, ou partidarizará sua ação jornalístico-política?

Pelo que se pôde ver no Jornal Nacional de sábado, a opção global está tomada. A sociedade brasileira vai ser bombardeada pelo maniqueísmo e pelo mecanicismo político-partidário global, a menos que se apresse a emergência da honestidade, da ética e da decência para fazer prevalecer o direito do cidadão de ter acesso aos dois lados da notícia, o positivo e o negativo, e à interação entre o negativo e o positivo, de modo a perceber que ambos são partes de um mesmo processo em movimento.

E o outro lado?

Chegou, portanto, a hora da TV Pública.

Representaria honestidade jornalística explícita ressaltar ambos os lados do processo político venezuelano em marcha: de um lado, o que se considera negativo, o autoritarismo chavista temperado pela democracia em funcionamento pleno; de outro, o que poderia ser considerado positivo, pela opinião contrária, para o desenvolvimento democrático, decorrente da prática plebiscitária do referendo, adotado pelas democracias mais avançadas do mundo. Onde está a visão da mediação do processo histórico, fundamental à formação política dos povos, a ser explorada por uma mídia honesta?

As variantes dessas colocações imparciais por partes dos antagonismos debatendo entre si tese e antítese, em busca de síntese política no espaço da América Latina, no início do século 21, é o que se espera de um jornalismo adulto. Veremos isso? A Globo já deu o início do espetáculo da parcialidade.

Por que não ouviu o outro lado no sábado?

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Jornalista, Brasília, DF