Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O Estado de S. Paulo

ELEIÇÕES 2006
Renato Lessa

Não mais que maquiagem e pugilato

‘A coisa andou distante do clima de combate reconstituído por Norman Mailer, na excelente reportagem que escreveu sobre a memorável luta entre Mohammad Ali e George Foreman, no Zaire, em 1974, publicado sob o título descomplicado de The Fight. Tampouco esteve à altura do traço nervoso e expressionista de George Bellows, o homem que transformou o pugilato em um objeto de arte. Mas, convenhamos, Mailer e Bellows – dois gigantes – sugerem um padrão um tanto sublime para tratarmos de um debate entre candidatos à Presidência.

Apesar disso, houve ânimo na coisa. O tão esperado combate entre os candidatos, por fim, aconteceu. O presidente talvez esperasse um tedioso e sonolento encontro com Dr. Jekyll, no qual seria obrigado a considerar os pungentes temas do choque de gestão e do primado da eficiência e da administração sobre a política. Seu contendor, na verdade, esteve mais para Mr. Hyde. O que vimos foi um ‘Geraldo’ furioso, esquecido de que lidava com um presidente da República e, sobretudo, de que a malta, mesmo quando não simpatiza com o réu, não morre de amores pelos algozes.

Mas, mais do que mergulhar em uma cabala Hermenêutica para determinar quem venceu, importa pensar a respeito dos possíveis impactos informacionais do evento e de outros similares que o sucederão. Ou, de modo mais singelo e básico, perguntar: do que, afinal, se trata? Eventos dessa natureza são essenciais para a qualificação da vida pública?

Há um suposto fortemente otimista na obsessão pelos debates entre os candidatos. A expectativa é a de que, postos em confronto, acabarão por contribuir para o esclarecimento público, na medida em que, de forma direta e personalizada, devem falar a respeito do que pretendem e do que pensam da vida. Diante de tal carga de expectativas, um travo cético se faz necessário.

Estão longe de ser evidentes as relações entre esclarecimento e destruição recíproca. O padrão de interações entre governo e oposição no País pouco – se é que algum – espaço preserva para o debate razoável. A subordinação da política ao ‘campo intelectual’ do Direito Penal, por exemplo, faz da divergência uma contenda cuja solução deve ser dada pelos tribunais. É o que dá brincar com metáforas. Estabelecer contrastes, no mundo governado pelas metáforas penais, exige a desqualificação sumária e a criminalização do oponente.

Antes que me tomem por nefelibata, devo fazer algumas ressalvas realistas. Devo dizer que sei que se trata de uma disputa por poder político e, por assim ser, a destruição do adversário não é algo a ser retirado do horizonte do provável. E mais ainda, por se tratar de política, efeitos de esclarecimento só poderão advir se acompanhados de incrementos de politização dos ouvintes. E isso só pode se dar pela via do conflito e de sua explicitação; pela percepção do contraste e da diferença: nesse caso, informação e politização formam um par ímpar.

No entanto, se a política possui tal dinâmica, digamos, natural, é loucura cívica dela exigir mais do que pugilato e ardis mediáticos?

Do modo como são concebidos e realizados, os debates entre candidatos vinculam-se a duas dinâmicas perversas. A primeira já foi acima indicada: a da necessidade de destruição do oponente. A segunda possui efeitos talvez mais graves. Refiro-me à maquiagem política e à invenção dos candidatos, do ponto de vista das estratégias eleitorais. Em outros termos, mesmo se fosse possível superar a perspectiva da destruição recíproca, ainda assim não é certo que ganharíamos em termos de informação. O que os candidatos dizem resulta de uma preparação dita ‘científica’. Não dizem o que escrevem – se é que escrevem algo – e, temo, o que pensam. Os textos que repetem – decorados ou não – resultam de tratamento laboratorial de equipes de marketing, a partir de informações a respeito dos eleitores, colhidas em pesquisas ‘qualitativas’. Grupos focais de eleitores, constituídos segundo critérios amostrais – renda, moradia etc. – dizem aos analistas o que (não) gostariam de ouvir dos candidatos. Cada vez mais essa é a caixa-preta da lógica eleitoral, a da devolução ao ‘eleitor’ daquilo que ele gostaria de ouvir. As campanhas não prefiguram o que será o governo a ser feito. Elas apenas reagem a um meio constituído pelas preferências recolhidas dos eleitores e a eles devolvidas depois de submetidas a tratamento cosmético. Tal como são feitas, as campanhas sustentam-se sobre uma contínua simulação e maquiagem da vontade geral.

O debate de domingo opôs uma invenção mediática – o ‘Geraldo’ furioso (na verdade uma invenção dentro de outra invenção) a um mito igualmente fabricado e materializado na expressão já tediosa do ‘nunca antes nesse país’. É certo que a forma jornalística adotada em muito superou o experimento global de semanas atrás. Assistimos a um debate sem pirotecnias e coreografias e, o que é mais importante, sem exagero de protagonismo dos mediadores, o que nos livrou do espetáculo de exibição histérica de assepsia por parte dos mesmos.

Um dos jornalistas responsáveis pela emissora apresentou como evidência de qualidade do debate o fato de que os candidatos teriam feito 72 intervenções ao longo da coisa. Aí, contudo, reside um grave paradoxo. A televisão, como meio, apesar de indispensável na difusão de informações para o País, constitui-se ao mesmo tempo como um agente que impõe um forte limite informacional. Se é verdade que os candidatos puderam intervir com tal profusão, é igualmente certo que o fizeram por meio de fragmentos de 1 ou 2 minutos, insuficientes para o desenvolvimento de raciocínios mais complexos. A forma adotada impede o belo e longo jogo de fundo de quadra – se me permitem a metáfora do tênis – e impõe a truculência do paradigma saque-voleio, a obsessão por ‘matar o ponto’. As regras pactadas pelos próprios contendores, além das exigências da lingüagem televisiva, acabam por ser determinadas pela estratégia de destruição, materializada em golpes rápidos e desconcertantes. Qualquer ganho informacional será um acidente. Imaginar que disso pode resultar a apresentação do que se pretende com o País é coisa de hebefrênicos.

Não me sinto à vontade em subscrever a suspeita de que a forma é intencional e está inscrita em uma conspiração das elites para manter a condição ignara da malta. Mas é inegável que um padrão de indigência intelectual grassou pelo debate. O anestesista e o metalúrgico seguiram aqui o padrão já presente sob o consulado do sociólogo: ao falar com as massas tudo a ser dito deve ser muito simples e descomplicado. Lula, que acredita na superioridade cognitiva natural das massas e na necessidade de mantê-las nessa condição, desempenha esse papel com espontaneidade. ‘Geraldo’, por ser egresso de uma força política que se supõe fundada em uma espécie de ilustração brasileira, é espantoso nas suas fórmulas de alta sofisticação: ‘Cadê o dinheiro? Vou vender o Aero-Lula. Vou fazer choque de gestão’.

Enfim, mesmo se o meio permitisse avanço informacional, temo não existir informação substantiva a ser transmitida. Os ganhos informacionais dependem de lapsos de espontaneidade e deslizes dos candidatos. Afinal, atos falhos não mentem e com freqüência revelam atributos negativos, mais do que positivos, ainda assim importantes para a escolha eleitoral.

Qual o impacto de debates dessa natureza sobre as escolhas dos eleitores? Impossível saber. Tais escolhas resultam de uma miríade de fatores. Debates poderão aí operar como catalizadores, menos por sua capacidade de esclarecimento e mais pelo reforço de afinidades e aversões, proporcionadas por uma luta entre contendores convictos tanto da desqualificação básica do oponente quanto de sua infalibilidade. Seria uma bênção se antes da contenda ouvissem a voz de Walt Whitman (em tradução livre e memória precária): ‘O mundo é grande e há espaço suficiente para ambos estarmos errados’.

* Professor Titular de Teoria Política do Iuperj e UFF. É autor, entre outros, de Presidencialismo de Animação: Ensaios sobre a Política Brasileira (Vieira&Lent)’




Gaudêncio Torquato

Jogo bruto no segundo tempo

‘Que a eleição é uma oportunidade para se passar um país a limpo, não há dúvida. Da mesma forma, é correta a idéia de que o pleito deve servir para que a sociedade conheça a fundo as idéias dos candidatos. Errado, porém, é transformar o principal em acessório. Pérfido é abusar do princípio maquiavélico – os fins justificam os meios – para chegar à vitória. Por mais que a imprensa abra espaços para a visão dos candidatos a respeito de temas fundamentais – como segurança, saúde, educação, transportes, energia -, até o momento o que se viu foi um mosaico de pontuações, quase sempre superficiais, incrustado na parede da personalização do poder, onde o jogo de cena dos participantes ocupa o centro da arena. Basta ver o desenrolar do segundo turno. Em vez de profunda discussão sobre um projeto estratégico para crescimento do País, o que está em jogo é o desempenho de Luiz Inácio e Geraldo Alckmin na mídia. Quem se saiu melhor ou pior na TV, quais as melhores tiradas, quem foi mais cruel e o mais injustiçado, eis o que interessa. A espetacularização suplanta questões de fundo. O mais contundente confronto dos últimos tempos, se teve o mérito de ferir o tecido nervoso que cobre o ciclo eleitoral, não permitiu distinguir a visão estratégica dos candidatos sobre o futuro da Nação.

Vamos por partes. A pergunta-chave desta fase da campanha – de onde veio o dinheiro para comprar um dossiê contra os tucanos? – deve ser respondida, como, aliás, reza a cartilha de Lula, onde se lê que ‘este governo não coloca a sujeira por baixo do tapete’. Como a resposta balizará o sufrágio, convém que seja dada antes do dia 29. Se aparecer depois, como prega o ministro da Justiça, é porque Maquiavel foi convidado a dar uma ajuda a Lula. Cai por terra a tese de que ‘a lógica da ética é a punição’. Justiça retardada por conveniência é malandragem. Como nenhum petista viu a cor do dinheiro, emerge o cenário futurista da mala com a grana viajando no tempo pelo teletransporte do capitão Kirk da nave estelar Enterprise da Jornada nas Estrelas. Até as orelhas do lógico dr. Spock tremem ante a lógica petista. Mas a questão ética não pode e não deve canibalizar os eixos centrais do discurso. Questões fundamentais aguardam definições claras. Como os presidenciáveis pretendem reformar a Previdência Social, a fim de evitar o gigantesco buraco que ameaça inviabilizar o sistema? Gasta-se cerca de 12% do PIB com aposentadorias, mas apenas 8% da população é de idosos. Um pouco mais adiante, o País estará quebrado.

Onde e como serão feitos os cortes nos gastos públicos sem comprometer investimentos em infra-estrutura, sem reduzir investimentos em programas sociais e, ainda por cima, preservando a estabilidade da moeda e garantindo crescimento em torno de 5% do PIB ao ano? Qual é o projeto estratégico com os alinhamentos necessários para o País crescer, a partir das políticas de indústria, agricultura, energia e transportes, rendas e emprego? O que se lê nos programas dos candidatos é um arrazoado de boas intenções. Nada muito convincente. Os vácuos poderão ser preenchidos com debates sobre a realidade brasileira. Consultores independentes fariam uma avaliação imparcial das propostas, ajudando a qualificar o debate e a visualizar o perfil mais adequado para governar o País.

Como a proposição parece inexeqüível, resta voltar à rota da balbúrdia que atordoará o eleitorado até dia 29. De início, a constatação: a campanha do segundo turno começou sob o império da ilegalidade. Ministros fazem campanha. Recursos são liberados para Estados em troca do apoio de governadores ao candidato à reeleição. Nuca se viu um (ab)uso tão escancarado da máquina governamental. Ademais, o petismo-lulismo ressuscita o terrorismo político. Tenta massificar o ‘risco Alckmin’ com a idéia da ‘privataria’ da Petrobrás, da Caixa Econômica, do Banco do Brasil, dos Correios, em resposta ao ‘risco Brasil’ que, em 2002, foi usado para desestabilizar a candidatura de Lula. A atual artimanha não impacta setores médios, mas tem o condão de espalhar fumaça por todos os lados, com possibilidade de cooptar votos ideológicos como os da base de Heloísa Helena. Se a guerreira de cabelos presos tem ódio ao PT por ter sido expulsa do partido, parcela significativa de seu eleitorado se identifica com a tônica nacionalista que Luiz Inácio incorpora pesadamente à peroração. Esse fato explica a troca do bonde de Alckmin pelo trem de Lula por muitos eleitores psolistas.

A fala contra o ‘entreguismo’ do PSDB objetiva formar ondas concêntricas e mobilizar as bases petistas. A idéia é chamuscar a bandeira ética tucana com o fogo nacionalista. A tática pode ser eficaz. Para consolidar o voto das margens se insiste no ‘social, social, social’, jogando as massas contra o tucano, candidato dos ricos. A imagem de exterminador do futuro, que se tenta colar em Geraldo, amedronta os dependentes do Bolsa-Família ou os eleitores do Norte induzidos a pensar que o candidato fechará a Zona Franca de Manaus. O jogo é bruto.

Para arrematar o perfil de Lula, procura-se lapidá-lo com a imagem de pessoa maltratada e injustiçada. Um presidente da República humilhado pelo opositor em cena aberta. Geraldo Alckmin inseriu semitons acima do que a melodia podia suportar. O conceito de homem público educado pode ter sido levemente corroído, até porque os brasileiros tendem a ficar do lado do mais fraco.

O tom agudo do segundo turno, infelizmente, impedirá uma discussão madura sobre o País. O eleitorado decidirá sob um clima de tensão. Se nenhum fato de impacto ocorrer, não deverá haver mudanças substantivas na decisão de cerca de 90% dos eleitores que já firmaram posição. Cerca de 10% dos eleitores de cada candidato ainda podem mudar o voto, ou seja, 15 milhões a 18 milhões de pessoas definirão o vencedor num julgamento mais emocional que racional. Uma decisão sob o prisma da razão seria melhor para a nossa democracia.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político. E-mail: gautor@gtmarketing.com.br



RESENHA / MURDER IN AMSTERDAN
Mario Vargas Llosa

Assassinato em Amsterdã

‘Uma reportagem pode ser uma obra de arte se o autor escreve com elegância e eficácia, documenta com rigor suas informações e as organiza com a precisão e a astúcia de um bom romancista. É o que fez Ian Buruma em Murder in Amsterdam (Assassinato em Amsterdã), um livro que se lê como um romance de suspense, embora não contenha fantasia, e sim história viva, e finque suas raízes na mais candente atualidade.

O livro é uma investigação sobre o assassinato do cineasta holandês Theo van Gogh, em 2 de novembro de 2004, por um marroquino-holandês de 26 anos, Mohammed Bouyeri, seus antecedentes e repercussões e a problemática da imigração muçulmana na Europa Ocidental. Ian Buruma reconstitui o pavoroso crime com objetividade e minúcia – Bouyeri primeiro atirou, depois degolou o cineasta com uma machetada e por fim lhe cravou no peito um punhal que trazia presa uma nota proclamando a guerra santa contra os infiéis e ameaçando de morte a então deputada somali-holandesa Ayaan Hirsi Ali. E traça vívidos perfis de todas as pessoas direta ou indiretamente envolvidas no incidente e um agitado afresco das tensões, medos, preconceitos, violências e polêmicas que a presença massiva desses ‘novos cidadãos’, sobretudo de origem marroquina, provoca desde então em Amsterdã – uma cidade que, calcula o autor, no ritmo atual de fluxos migratórios, terá em 2015 mais muçulmanos que cristãos.

O livro é desapaixonado, lúcido e rico em sugestões intelectuais, como costumam ser as crônicas e ensaios de Ian Buruma, uma viva mescla de culturas, pois ele nasceu na Holanda, estudou na Inglaterra, morou muitos anos no Japão, cuja língua domina como tantas outras, e vive errante pelo mundo (agora em Nova York). E é também uma peregrinação às fontes, porque, para escrevê-lo, o autor precisou voltar a sua terra natal, depois de muitos anos, e mergulhar novamente numa paisagem natural e humana que mal reconhece, por causa das mudanças formidáveis que esta experimentou graças precisamente a esses fenômenos que seu livro analisa, a partir do assassinato de Theo van Gogh, como numa proveta de laboratório: os sucessos e fracassos do multiculturalismo e da globalização.

Com justiça, os holandeses, até há relativamente pouco tempo, orgulhavam-se de sua política de imigração. A Holanda era o país que abrira as portas aos imigrantes muito mais que qualquer outro Estado europeu e fizera os maiores esforços para respeitar seus costumes, línguas e crenças, de modo que não se sentissem, pelo fato de viver e trabalhar na Holanda, obrigados a renunciar à própria identidade religiosa e cultural. Mohammed Bouyeri era, de certo modo, um produto bem-sucedido daquela política. Seu humilde pai havia avançado do ponto de vista econômico e Mohammed tivera uma infância e uma adolescência infinitamente melhores que as do progenitor, pelas escolas e institutos superiores que freqüentou, graças a subvenções do Estado holandês.

Então, como se explica que este homem, que nos anos de juventude havia sido quase um integrado, um holandês cabal, por sua língua, indumentária, relações, usos e costumes, tenha de repente recusado tudo isso e, com outros filhos de imigrantes como ele, se transformado numa forma particularmente violenta, excludente e fanática do islamismo, pondo-se a odiar, acima de tudo, justamente esta democracia tolerante, aberta à diversidade, que é a Holanda?

Mohammed Bouyeri, cujo árabe era tão precário que às vezes ele tinha dificuldade para se entender com os amigos e precisava fazê-lo em holandês, integrou-se a um grupo de extremistas islâmicos que costumava, entre outros passatempos, ver vídeos, procedentes do Oriente Médio, da execução de apóstatas e hereges em países onde se implantou a sharia (a lei islâmica). Ian Buruma relata que um dos membros do grupo de Bouyeri passou sua lua-de-mel, no apartamento deste, entregue, com sua flamante esposa, à contemplação destes filmes de degola dos inimigos do Islã.

É verdade que só um grupo reduzido desses ‘novos cidadãos’ seguiu uma trajetória semelhante à de Mohammed Bouyeri e seus fanáticos amigos. Mas a reportagem de Ian Buruma pelas cidades e bairros muçulmanos da Holanda deixa a impressão inequívoca de que, embora a maioria desses ‘novos cidadãos’ rejeite a violência e se empenhe em viver dentro da lei e prosperar com seu esforço, apenas uma minoria muito reduzida chega a sentir-se ‘holandesa’, solidária e parte integrante do país onde nasceu e estudou, cuja língua é também a sua e onde ganha a vida e provavelmente passará o resto de seus dias. Eles continuam sentindo-se estrangeiros e alheios, embora também sintam algo parecido quando visitam as aldeias e comarcas marroquinas de onde saíram seus ancestrais. É esta condição de viver como num limbo que induz alguns deles a refugiar-se na religião, em suas formas mais odiosas e intolerantes, porque deste modo ganham uma identidade e a força moral resultante da sensação de pertencer a uma legião de eleitos, de santos justiceiros.

Será que essa tenaz resistência desses muçulmanos a integrar-se seria explicada pelos preconceitos sociais e raciais, pela discriminação da qual freqüentemente são alvo, pelas zombarias e brincadeiras pesadas de que são vítimas e que, por exemplo, o anárquico Theo van Gogh costumava infligir-lhes em seus programas? Sem dúvida, dizem alguns dos entrevistados – políticos, intelectuais, artistas, trabalhadores sociais – por Ian Buruma. A culpa não é deles, acrescentam, e sim dos holandeses, brancos e cristãos ou livres-pensadores, que olham os novos cidadãos por cima do ombro, ou simplesmente evitam olhá-los. O que a Holanda fez para integrá-los – não confundir esta palavra com ‘assimilá-los’ – é alguma coisa, mas muito menos do que seria necessário para que essa política desse resultados.

Contudo, entre os ‘novos cidadãos’ existem alguns, como o jurista e escritor de origem persa Afshin Ellian e a política Ayaan Hirsi Ali – os personagens mais comoventes do livro -, para quem esta leitura é ingênua, ainda que pareça bastante progressista. Para eles, a essência do problema não reside tanto nos preconceitos e na discriminação – que eles não negam e certamente combatem – quanto no centro mesmo de uma religião e uma tradição incompatíveis com o tipo de coexistência pacífica e amistosa que o multiculturalismo acredita ser possível. Por isso, ambos são odiados pelos fundamentalistas, precisam andar com proteção 24 horas por dia e têm plena consciência, nestes tempos de suicidas sagrados e homens-bomba, de que ainda estão vivos por puro milagre.

Ian Buruma os chama de ‘fundamentalistas do Iluminismo’, por acreditarem que a Europa não pode renunciar aos valores da liberdade de crítica, de crenças, à igualdade de direitos entre homens e mulheres, ao Estado laico, a tudo aquilo que teve tanto trabalho para conseguir a fim de se livrar do obscurantismo religioso e do despotismo político, a melhor contribuição do Ocidente à civilização. Segundo eles, não é a cultura da liberdade que deve se adaptar, recortando-se, a seus novos cidadãos, e sim estes a ela, ainda que isso implique renunciar a crenças, práticas e costumes inveterados, tal como precisaram fazer os cristãos, justamente, a partir do século das luzes.

Isso não significa ter preconceitos nem ser racista. Significa saber com clareza que nenhuma crença religiosa ou política é aceitável quando está em conflito com os direitos humanos e portanto deve, neste caso, ser combatida sem o menor complexo de inferioridade. É o que ambos vêm fazendo durante todos esses anos, na Holanda, entre a população muçulmana – Ayaan Hirsi Ali entre as mulheres, sobretudo. E é por isso que esta última foi expulsa do edifício em que vivia por seus vizinhos e concidadãos holandeses – brancos, cristãos ou agnósticos -, amparados pelos juízes, porque sua presença também os punha em perigo.

O episódio diz muito sobre a coragem e o idealismo de Ayaan Hirsi Ali, sem dúvida, mas também sobre a apatia – quando não covardia, tão disseminada nas sociedades abertas do planeta – de seus beneficiários na defesa das grandes conquistas das quais o Ocidente pode se orgulhar (existem, é claro, outras coisas das quais ele deve se envergonhar). Talvez seja compreensível, embora não desculpável. Eles vivem tão bem, tão protegidos e seguros que, embora os periódicos e a televisão às vezes lhes tragam notícias de como as coisas andam mal lá longe, já se esqueceram de que foi graças a essas instituições que lhes soam como palavras vazias, de políticos – liberdade, direitos humanos, democracia -, que eles alcançaram os altos níveis de vida de que gozam, e também esta segurança de estarem amparados por leis justas e poderes mediatizados. Por isso, permitem-se ser egoístas, complacentes, e irritar-se quando alguém perturba sua comodidade.

Não é estranho concluir daí que, se a cultura da liberdade resistir e vencer o assalto deste novo desafio – o fanatismo religioso -, será sobretudo graças a estes novos cidadãos que por sorte agora pertencem à Europa Ocidental, gente como Afshin Ellian e Ayaan Hirsi Ali, que, por terem sofrido na própria carne os horrores do obscurantismo religioso e da barbárie política, sabem a diferença. E agora defendem esta cultura que fizeram sua com uma convicção que as ameaças e perigos fortalecem, em vez de enfraquecer.

TRADUÇÃO DE ALEXANDRE MOSCHELLA’



TELECOMUNICAÇÕES
Gerusa Marques

Crescem pressões para mudar Lei Geral de Telecomunicações

‘Perto de completar dez anos em vigor, a Lei Geral de Telecomunicações (LGT) já começa a dar sinais de que precisa ser modificada para se adaptar às necessidades do mercado e às inovações tecnológicas. Mesmo sendo considerada a Bíblia do setor de telecomunicações, alguns pontos da LGT têm sido encarados como obstáculos, tanto para projetos do governo de inclusão social como para a expansão das empresas. Dois exemplos claros dessas amarras dizem respeito à criação do telefone social e à utilização dos recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust).

Há ainda um movimento no mercado, mais discreto, porém sempre recorrente, para mudar cláusulas ‘pétreas’ da lei, como a regra que, para preservar a competição no mercado, proíbe as concessionárias de telefonia fixa e suas coligadas de assumir o controle em outra concessionária. Seria o caso de permitir, por exemplo, que a Telemar comprasse a Telefônica, ou a CTBC Telecom, do Triângulo, adquirisse uma parte na Brasil Telecom.

O ministro das Comunicações, Hélio Costa, assegura que por enquanto só pretende propor modificações pontuais na LGT, que não alterem os critérios de fusões e aquisições entre empresas de telefonia. Mas ele concorda que a lei está defasada, já que foi aprovada em julho de 1997, quando não se imaginava tanta evolução da tecnologia. ‘A LGT está no mínimo ultrapassada à luz das novas ferramentas tecnológicas que existem no mundo’, afirmou.

A primeira mudança, que já está no Congresso na forma de projeto de lei, é para permitir que o telefone social possa ser adquirido apenas por famílias que recebam até três mínimos. A LGT fala em isonomia de serviços, ou seja, eles devem estar disponíveis para todos.

A segunda modificação é para que os recursos do Fust, de cerca de R$ 4,6 bilhões, sejam usados em projetos que utilizam internet de banda larga e para que sua aplicação não fique restrita às concessionárias. ‘Nós estamos buscando caminhos para flexibilizar a LGT’, disse o ministro.

Para defender mudança das regras de fusões, técnicos do setor se valem de uma interpretação do artigo 202 da LGT, que permitiria à Anatel, a partir de julho de 2003, propor mudanças no Plano Geral de Outorgas. É esse plano que estabelece a área onde cada empresa pode prestar o serviço de telefonia fixa local, limitando a entrada de outra concessionária na região.

O ministro até admite discutir o assunto para o futuro, mas repele a idéia de que a proposta parta da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). ‘Quem faz a política de comunicação é o governo, não é a agência’, disse Costa, que não perde uma chance para reafirmar sua atitude de confronto com o órgão regulador. ‘Cumpre à agência, por lei, implementar a política de comunicação do governo. Que ela entenda isso de uma vez por todas’, completou.

Investidores no setor de telefonia sempre quiseram se livrar das amarras da LGT na delimitação das áreas de atuação das empresas. No ano passado, por causa disso, Hélio Costa fez um pronunciamento no Palácio do Planalto para negar mudanças na LGT. Na época, eram fortes os boatos de que a Telemar estava negociando a compra da fatia da Telecom Italia na Brasil Telecom.

Agora oficialmente à venda, a participação da empresa italiana na BrT vem atraindo interesse dos investidores do setor, principalmente o Grupo Algar, que controla a CTBC. Empresários do grupo já teriam manifestado ao governo disposição de fazer o negócio. O entendimento de técnicos do setor é de que um planejamento societário poderia permitir a compra.

O presidente da Associação Brasileira das Concessionárias do Serviço Telefônico Fixo Comutado (Abrafix), José Fernandes Pauletti, acha que a revisão das regras virá logo. ‘Acho que vai acontecer, não sei se é agora’, afirmou. Hélio Costa acha que o tema pode render uma boa discussão, mas defende que o debate seja feito no Congresso.

O ex-ministro das Comunicações Juarez Quadros concorda que a lei precisa de ajustes, mas alerta para a necessidade de manter algumas conquistas. ‘Eu tenho receio de que, ao ser tentado o ajuste na lei, nós percamos aquilo que a sociedade conquistou quando a LGT foi elaborada’, afirmou, citando a proibição de uma concessionária adquirir outra.’

Ethevaldo Siqueira

Tecnologia cria abismo entre duas gerações

‘Nunca duas gerações foram tão diferentes em gostos, comportamento e visão do mundo quanto a minha e a dos que nasceram depois de 1980.

Há um abismo entre nós e os jovens de hoje, em especial no campo da tecnologia. Garotos e adolescentes de hoje têm fascínio pelo mundo digital. Meninos de 8 ou 10 anos apanham um novo celular, iPod, PDA, smartphone, videogame, laptop ou DVD player e descobrem todas as suas funções em minutos. Usam todos os recursos do telefone móvel: torpedos (mensagens de texto), e-mails, câmera digital, ringtones, games. Têm loucura pela internet, cibercafés e lan houses.

Em sua visão, os pais e quase todos os adultos são semi-analfabetos digitais. Ou, como costumo dizer, analfabits. Meus amigos mais idosos protestam: ‘Você deveria ter pena dos mais velhos que não tiveram a oportunidade ou o privilégio de se familiarizar com o mundo digital’.

Num futuro próximo, esse analfabetismo tende a reduzir-se gradativamente, pois não deverão ocorrer quebras de paradigmas tão dramáticas. As crianças crescerão cercadas de tecnologia e estudarão em escolas mais informatizadas.

A situação atual, no entanto, é grave e exige, a meu ver, um programa nacional de erradicação do analfabetismo digital, a exemplo de outros países, que atualizam seus professores, modernizam currículos e preparam milhões de usuários para o futuro.

Sei que o Brasil tem carências e prioridades mais urgentes. É verdade. Eu citaria, por exemplo, o empobrecimento cultural. Sim, embora inundados por um oceano de informação, vivemos um período de profunda decadência, que atinge não apenas os jovens, mas os adultos de todas as idades. O quadro tende a agravar-se com o desprestígio crescente da cultura humanística, da língua e das artes.

Como enfrentar esse desafio? Com duas armas poderosas. A primeira é a revolução da educação. Embora já defendesse essa tese há muito tempo, confesso que fiquei sensibilizado com a pregação quase evangélica de Cristovam Buarque em favor da educação. Temos que continuar essa luta.

A segunda arma é assegurar o acesso à cultura ao maior número possível de famílias, pois é no lar que adquirimos os melhores hábitos, que nos seguirão por toda a vida, como ler mais, falar melhor, ouvir boa música, gostar de arte e criar as bases de uma cultura geral mais sólida.

Dos 60 milhões de domicílios brasileiros, apenas 20% têm alguma forma de acesso significativo à cultura, além da televisão. O grande esforço, portanto, deve ser feito em favor dos 80% restantes, para os quais tudo é difícil ou quase impossível, seja o acesso à educação, à informação, ao conhecimento, à escola, ao livro ou à tecnologia. Só alguns raros abnegados dessa maioria marginalizada conseguem, com esforço sobre-humano, vencer as barreiras à exclusão.

E quanto ao comportamento cultural? Outro dia tive uma pequena amostra dessa outra área. Fui a uma festa em casa de amigos. A música era uma pancadaria só. Ninguém conseguia conversar sem berrar. Quase todos bebiam além da conta. A atmosfera era uma nuvem de fumaça de cigarro. Depois de meia hora, alguém teve a idéia de me apresentar um DJ famoso, responsável por aquele inferno de 110 decibéis. ‘Olha, Ethevaldo, este é o Tom Best, o famoso DJ. Que está achando da música dele?’ Minto cinicamente: ‘Sua música é ótima. Parabéns!’

Como sou otimista, espero que, num futuro próximo, os jovens de hoje, mais amadurecidos, acabem por descobrir a beleza do silêncio, da boa música, da leitura, da história, da arte, do esporte, da filosofia, da astronomia, do bom vinho bebido com moderação.

Sei que devo ser indulgente com todas as limitações culturais. O único ponto que não consigo perdoar é a degradação de nossa língua. Lembro-me do saudoso professor Napoleão Mendes de Almeida: ‘Um povo que não cultiva sua língua empobrece sua cultura e perde sua identidade’.

Por isso a escola deve ter como primeira missão o ensino da língua. É claro que, além dessa, deve ter outras missões essenciais, como proporcionar condições para que o aluno: 1) aprenda a estudar, 2) aprenda a pensar, 3) aprenda a raciocinar cientificamente e 4) aprenda a reciclar conhecimentos. Nos níveis mais avançados, a escola deve ajudar o aluno a desenvolver espírito crítico e considerar as razões éticas em primeiro lugar.

O Brasil é um país de duras contradições. Uma delas é não valorizar devidamente a educação nem a cultura. Imagine, leitor, qual seria a resposta mais provável de um menino a um pai que lhe sugerisse: ‘Estude, meu filho, para um dia ser presidente da República’.

Mais irônico seria insistir que o filho estudasse português, diante do presidente que confessa na TV seu orgulho por ter sido ‘filho de mãe analfabeta’. Alguns dirão que, como metalúrgico, coitado, ele não teve tempo para estudar. Não é uma boa justificativa, pois sabemos que ele passou mais de 30 anos, sustentado pelo sindicato, fazendo agitação. Vocês não acham que ele poderia ter dedicado, ao longo dessas décadas, pelo menos duas horas semanais para aprender a língua-pátria?’



JORNALISMO LITERÁRIO
Daniel Piza

Vidas controversas

‘O jornalista americano David Remnick, de 48 anos, é repórter da revista semanal The New Yorker desde 1992, quando foi correspondente na Rússia, e seu editor desde 1998. Como editor, comemorou com gala os aniversários de 75 e de 80 anos da revista – fundada em 1925 -, selecionando os melhores textos de cada gênero em livros e lançando a caixa The Complete New Yorker com oito DVD-ROMs. Também fez a revista alcançar a tiragem inédita de 1 milhão de exemplares. Como autor, fez uma série de reportagens e perfis de muita qualidade – e são estes os publicados no Brasil sob o título Dentro da Floresta (coleção Jornalismo Literário, Companhia das Letras, 576 págs., R$ 62).

Os perfis de Remnick não têm as grandes frases sintéticas de Kenneth Tynan, nem o ritmo ficcional dos escritos por Truman Capote ou Lillian Ross, nem as aberturas inesquecíveis de Gay Talese. Mas mesclam informação e opinião de forma direta e transparente e dizem coisas novas sobre seus entrevistados, quase todos pessoas envolvidas em tramas políticas. Na entrevista a seguir, feita por telefone, Remnick fala sobre jornalismo, sobre os escritores Philip Roth e Don DeLillo e sobre a invasão americana ao Iraque. ‘Acho que é dever do jornalismo estar engajado com o mundo, abordar as controvérsias’, diz ele, que tem feito na New Yorker uma mescla de assuntos atuais com outros leves e culturais.

O jornalismo americano é muito forte em perfis. Sua própria seleção da revista The New Yorker (o livro Life Stories, 2001) tem autores como Joseph Mitchell, A.J. Liebling, Lillian Ross e Truman Capote, além do inglês Kenneth Tynan. Qual o motivo?

Essa tradição começa com os ingleses. Penso em Eminent Victorians, o livro de Lytton Strachey, por exemplo. Ou no polonês Ryszard Kapuscinski, autor de O Imperador. Mas, de fato, é algo forte na América. A New Yorker é a maior responsável por isso, mas existem outras correntes. Talvez seja por essa cultura de revistas que existe aqui, se bem que os jornais diários cada vez mais publicam perfis.

O que acha dos perfis do chamado ‘novo jornalismo’ de Gay Talese e de Tom Wolfe? E de Norman Mailer, que em seu livro sobre Muhammad Ali aparece com um comportamento tão narcisista?

O ‘novo jornalismo’ não é novo, no sentido de que muitos fizeram uso de técnicas de ficção no jornalismo antes. A.J. Liebling e Joseph Mitchell fizeram muito isso na New Yorker. Mas há grandes perfis escritos por eles, principalmente Gay Talese, já que Tom Wolfe às vezes é egocêntrico demais. Quanto a Norman Mailer, apesar de sua auto-referência, alguns de seus livros fizeram uma contribuição inigualável à não-ficção. Me pergunto se nos últimos 30 anos alguém escreveu algo tão bom quanto A Canção do Carrasco ou Exércitos da Noite.

Como foi a entrevista com Philip Roth? Há quem diga que ele é difícil.

Na verdade, ele me procurou, não sei por que a mim. Estava divulgando A Marca Humana, seu romance sobre os anos Clinton. Nas entrevistas ele se comporta com muita seriedade. Mas, se você tiver a sorte de conhecê-lo melhor, como eu conheci, verá que ele não só é profundamente inteligente, mas também muito engraçado. É a melhor companhia que se pode ter para um jantar. E ele está ficando cada vez mais forte com a idade, ao contrário do que costuma acontecer. Se existem dois escritores americanos que eu gostaria de ver ganhar um Nobel, são John Updike e ele.

Sua conversa com Don DeLillo trata da abertura de Submundo, em que ele descreve um jogo de beisebol. Por que é tão difícil encontrar grande ficção sobre esporte? E o sr. gosta de futebol?

No caso de Don DeLillo, talvez seja porque ele usa aquela partida para sintetizar todo o espetáculo da vida americana. É como a América num só ambiente. Acho que aquelas primeiras 75 páginas são a melhor coisa que DeLillo já escreveu. Gosto de futebol e estive na final da Copa do Mundo em Berlim. Mas não vi a cabeçada (de Zidane em Materazzi). Encontrei depois Bill Clinton no corredor e ele perguntou: ‘Você viu o que aconteceu?’ Foi constrangedor…

Por que tantos intelectuais desprezam escrever sobre esportes?

Por besteira. Não é um tema menos apropriado do que sexo, comida ou política. Aliás, por que privilegiar a política? Os esportes podem ser tratados de forma inteligente. E há a beleza, digamos, de um jogo de futebol.

Li que o sr. escreve muito rápido. Para quem produz matérias tão longas para uma revista como a New Yorker, isso é bom ou ruim? Como não deixar a ansiedade atrapalhar?

Não tenho opção. Tenho um emprego de tempo integral, tenho três filhos. Não acredito em escrever um pouco e ir passear, voltar, fazer mais algumas linhas e sair de novo… Acredito em sentar na cadeira e trabalhar. Sou muito rápido, mas isso não significa que sou melhor. Trollope (romancista inglês, autor de ‘As Torres de Barchester’) escrevia milhares de palavras antes do café da manhã! E escrevia coisas maravilhosas. Eu tento me controlar, não ser descuidado com minhas intenções.

É essencial para seu trabalho escrever sobre assuntos variados, do boxe à política e à literatura?

Eu não conseguiria ficar num assunto só. Não sou um grande especialista em nada, nem mesmo em Rússia. Mas são meus interesses. É um privilégio pegar um tema, aprender, conversar com as pessoas e escrever sobre ele. Não dou opiniões em astrofísica, por exemplo. Mas não sou monotemático.

O sr. reconheceu que estava errado ao apoiar a invasão do Iraque. Por quê?

É importante dizer que eu não estava tranqüilamente a favor, apesar da solidariedade pelas vítimas do terrorismo. Eu não era um Christopher Hitchens (jornalista inglês, autor de ‘Amor, Pobreza e Guerra’). Tinha muitas dúvidas. Quando se confirmou que a posse de armas de destruição em massa por Saddam Hussein era uma mentira, fui obrigado a aceitar a realidade. E ver que o governo Bush é manipulador.

Logo a revista passou a dar matérias reveladoras sobre o assunto, como as de Seymour Hersh e Lawrence Wright. É importante essa presença de reportagens sobre temas atuais, ‘quentes’? Em que medida ajudam no sucesso da revista, que hoje vende 1 milhão de exemplares, ainda que a chamem de elitista?

Sem dúvida que é importante. Eu até poderia fazer uma revista só sobre temas leves ou curiosos. Mas acho que é dever do jornalismo estar engajado com o mundo, abordar as controvérsias. Enquanto puder fazer isso, farei. É uma mistura. A New Yorker nunca foi monocromática e esse é um de seus segredos. Se 3 milhões de pessoas a lêem (considerando média de 3 leitores por exemplar), ela não pode ser chamada de elitista. Qualidade não exclui quantidade.’




Gilles Lapouge

Henri Levy e a vertigem americana

‘Bernard-Henri Levy é um intelectual francês famoso nos cinco continentes. Há 30 anos ele irradia, ilumina, desbrava. Ele nos explica o que é preciso refletir. Ele viaja por nós, de preferência a países onde a história retumba – de Bangladesh ao Iraque, passando pelo Afeganistão, a Bósnia ou a Argélia, como uma espécie de Malraux póstumo.

Com a idade e a ilustração, Malraux já não lhe é mais suficiente. Precisa de outros modelos e ele encontra um, Alexis de Tocqueville, outro gênio francês que há dois séculos escreveu De la Démocratie en Amérique (Sobre a Democracia na América), um livro que não perdeu atualidade, tanto pelo poder da análise como pela pureza do estilo.

Dito e feito. Bernard-Henri Levy embarcou para os Estados Unidos, inflamou toda a sua rede de contatos, agitou seus amigos, passou uma longa temporada passando por Boston e o Arizona, Guantánamo, Nova York, Sharon Stones, Woody Allen, Los Angeles, Norman Mailer e alguns neoconservadores. Viajou durante um ano. E escreveu um livro, uma espécie de reportagem, um ensaio na primeira pessoa. Um texto muito bem escrito. Um pouco leve, certamente, se comparado aos de Tocqueville (na verdade, Tocqueville trabalhou 10 anos redigindo a sua súmula).

E essa longa reportagem foi chamada American Vertigo (vertigem americana). Um título bem imaginado. Há 40 anos Jean-Paul Sartre, no auge da guerra fria, exclamou ‘L’Amérique à la rage’, o que não queria dizer nada já que era uma frase muito exagerada. Levy se contenta com ‘vertigem’ e a imagem é melhor. Ela fala.

A idéia é a seguinte: se os Estados Unidos estão doentes, a sua doença é a ‘vertigem’. O país flutua sem encontrar limites claros aos quais se agarrar. O crescimento do país – cujo símbolo seria a imensa Los Angeles – foi tão fulgurante que já não pode mais ser controlado. Sente-se sempre ameaçado de ‘cair’, à força de projetar o seu ‘hard power’ (poder extremo)sobre a vasta ópera do planeta. Esse veredicto descreve mais exatamente o país americano após 11 de setembro de 2001. Preso ao ‘medo do vazio’. Essa é a sua vertigem.

Essas deduções são expressas tanto sob forma filosófica, como deve convir a um autor francês, e em imagens simples, quase rústicas, que demonstram que Levy não é só um filósofo mas também um bom repórter. Por exemplo, a imagem da obesidade: com certeza os cidadãos americanos são prazerosamente obesos. Mas, na verdade, é o próprio país que é obeso. Parece estar permanentemente à procura de uma nova fronteira, com espaços difíceis de serem encontrados. Seria este um libelo ‘antiamericano’, como se poderia esperar de um antigo ‘esquerdista’ como Levy? Na realidade, ele denuncia a conduta americana. Grande coisa. ‘Como poderia ser diferente, quando trata, por exemplo, da guerra no Iraque?’

‘Não consigo não deixar de sonhar sempre que essa guerra iraquiana, para além do seu custo político e humana, dos seus mortos civis e da nova volta que não deixará de dar à roda funesta da guerra das civilizações, será testemunha de um absurdo e trágico erro de cálculo histórico.’

Bem. Não se trata de um achado. Hoje quem conseguiria analisar a catástrofe iraquiana sem se apavorar? Mas, quanto ao resto, se constata, com um certo alívio, que Levy faz uma clara distinção entre os Estados Unidos e os seus governantes atuais. Esse é o grande mérito de American Vertigo. Levy não demoniza os Estados Unidos. Não os santifica. Faz uma pintura com muitas nuanças. Destaca a ‘paixão pela identidade’, o dilema entre a aspiração à unidade e a ‘vertigem’ da divisão.

Traça um país dilacerado entre um passado terrivelmente jovem (se comparado à Europa) e um futuro pleno de indecisão. De passagem, usa alguns estereótipos que geralmente circulam. Por exemplo, adverte que os neoconservadores, mesmo se preocupantes, são bem mais sutis do que se fala na Europa.

Em resumo, uma reportagem que poderíamos achar interessante e até razoável, às vezes excelente, se não tivesse sido precedida, tanto nos Estados Unidos como na França, por uma ‘campanha publicitária’ tão estrondosa a ponto de nos deixar quase surdos.

TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK’

Caio Blinder

Bin Laden com toque de romance de espionagem

‘Até pouco mais de cinco anos, as imponentes e horrendas torres do World Trade Center se aproximavam quando eu e milhares de motoristas, vindos de Nova Jersey, cruzávamos a ponte George Washington para entrar na ilha de Manhattan. O título em inglês do livro de Lawrence Wright (The Looming Tower, Knopf, 469 págs., US$ 27,95) é referência a uma aproximação fatalista. Após os atentados do 11 de setembro, a polícia alemã encontrou em um computador, na célula de Hamburgo dos seqüestradores suicidas, um pronunciamento de Osama Bin Laden em que ele três vezes menciona uma passagem do Alcorão: ‘A morte o encontrará, mesmo na torre que se aproxima.’

Jornalista da revista New Yorker, Wright escreveu um livro exaustivo que não exaure o leitor. Na sua narrativa sobre a rede terrorista Al-Qaeda e o caminho para o 11 de setembro existem as minúcias, os insights e o contexto.

Há minúcias como a fascinação de Bin Laden com o seriado de televisão Bonanza ou um breve período no Sudão em 1992, em que ele se declarou um homem de paz – e pensar que o terrorista número um chegou a se inspirar em Gandhi – e visualizou a Al-Qaeda como uma organização agrária e não semeadora de destruição. O bucolismo terminou quando Bin Laden se enfureceu com a contínua presença de soldados (e soldadas) dos EUA na Arábia Saudita, a partir da primeira guerra do golfo Pérsico.

Há insights como a entrevista que Wright conseguiu com uma das amigas de uma das filhas de Bin Laden (prole de 17 filhos), dizendo que como pai até que ele era liberal. Não se intrometia com a seleção musical da adolescente (e tampouco fazia objeções ao gosto de uma de suas quatro mulheres por caríssimos cosméticos americanos).

E há o contexto: Wright traça a origem da Al-Qaeda a um brilhante e radical acadêmico egípcio, Sayyid Qutb, cuja influência cresceu quando ele foi executado pelo regime secular de Gamal Abdel Nasser em 1966. Wright, aliás, começa o livro contando a chegada de Qutb a Nova York em 1948, aquela mistura da torre de Babel e Sodoma. Mártir e inspirador do moderno movimento jihadista, Qutb deu aos muçulmanos contemporâneos o princípio de ‘takfir’, que passa ao largo da proibição do Alcorão para o assassinato de outros muçulmanos, sem contar, obviamente, infiéis, cruzados e judeus.

Em um livro detalhista, a tese de Wright é direta: ‘Será que o 11 de setembro ou tragédia similar poderia acontecer sem Bin Laden para dirigi-la?’ Wright responde que as ‘placas tectônicas da história estavam se movimentando, promovendo um período de conflito entre o Ocidente e o mundo árabe-cristão, mas o carisma e visão de alguns indivíduos forjaram a natureza desta competição’.

Não compensa aqui discutir metodologia da história. Nos desviaríamos do caminho que Wright tomou para chegar às suas conclusões. Durante cinco anos, ele percorreu o Oriente Médio, a Europa e os EUA para entrevistar 550 pessoas – jihadistas, agentes secretos, políticos e acadêmicos, além de fuçar milhares de documentos, para montar um quebra-cabeça com 86 peças fundamentais.

Há quatro homens dominantes neste trágico épico: o saudita, filho de bilionário, carismático e delirante Osama Bin Laden, fundador da Al-Qaeda; Ayman al-Zawahiri, o médico egípcio radical que sonhava com um golpe de Estado no seu país e terminou cerrando fileiras com Bin Laden para empreender a jihad global; o príncipe Turki al-Faisal, ex-chefe da inteligência da ambivalente Arábia Saudita; e John O’ Neill, que após abandonar desiludido o comando da divisão de contraterrorismo do FBI, foi uma das quase três mil vítimas dos atentados às torres do World Trade Center.

Wright, de fato, gosta de individualizar a história. Para ele, a jihad global é fruto amargo da fusão do talento organizacional e disciplina de Zawahiri com o carisma e appeal de Bin Laden. Do outro lado, Wright também individualiza. Os americanos tiveram múltiplas oportunidades para impedir a tragédia do 11 de setembro, mas isso não aconteceu devido às rixas pessoais entre John O’Neill, do FBI, e Michael Scheuer, que chefiava a Alec Station, a unidade da CIA encarregada de caçar Bin Laden e seus principais associados.

Aqui há exageros e simplismos da parte de Lawrence Wright. Mas sua narrativa jornalística com pitadas de um romance de espionagem de John Le Carré é simplesmente estupenda. As torres – das quais eu me aproximava até o começo da manhã de 11 de setembro de 2001- desapareceram e daquele marco zero emergiu um nada admirável mundo novo.

‘Galã é monocórdio’

Mas Thiago Fragoso, o Profeta da novela homônima que estréia amanhã na Globo, garante que seu primeiro galã tem nuances capazes de passar longe do estereótipo

Quadragésima quarta novela a ganhar remake na televisão brasileira, O Profeta, que Ivani Ribeiro levou à tela da TV Tupi em 24 de outubro de 1977, volta amanhã ao ar em nova versão, pela Globo. Há três décadas, era um folhetim para a faixa das 8. Agora, sem a inocência de outros tempos, irá ao ar às 6, substituindo outro remake da Globo, Sinhá Moça. Na troca de uma novela pela outra, a emissora aproveita para tirar de cena o filtro de alta definição que deu à história de Benedito Ruy Barbosa, desde a estréia, uma estética mais apurada, de alta definição, mas rejeitada pela audiência.

O ator que deu voz ao Profeta na versão original foi Carlos Augusto Strazzer. Agora, o diretor Roberto Talma e o novelista Walcyr Carrasco, supervisor do texto, queriam um ator bonito que diz mais do que fala. Por isso, escolheram Thiago Fragoso. Aos 25 anos, a serem completados em 1º de novembro, ele já fez sete novelas e três filmes que estréiam em breve. É mais bonito pessoalmente do que na tela e, debaixo dos caracóis dos seus cabelos, há um rapaz inteligente que programa a carreira com objetividade e emoção. Abaixo, um resumo de sua conversa com o Estado.

Como foi o convite para ser protagonista?

O Roberto Talma e o Walcyr Carrasco precisavam de um ator que dissesse mais do que falava e pensaram em mim. Achei a definição bacana (risos) porque ator deve se expressar além da aparência. Duas semanas antes, eu tinha conversado com a direção da casa porque queria mais responsabilidade, estava preparado para novos desafios e tal. E aí foi bacana porque o teste foi aprovado de cara.

Essa conversa aconteceu porque seu personagem anterior, o Alberto de ‘Senhora do Destino’, foi pouco aproveitado?

Não. O mais difícil em ser protagonista não é a questão artística. Esta não é fácil, mas o importante é estar preparado pessoalmente e dentro da empresa. Sempre conversei muito na Globo, me envolvi em projetos como Criança Esperança. Então, a questão não era o Alberto, mas a minha vontade de ser o porta-voz do lado social da Globo, de assumir novas responsabilidades.

O Walcyr falou que precisava de um ator bonito e com cara de anjo?

(risos) A exigência de um ator com semblante angelical e suave já diz que o personagem é diferente da primeira versão da novela. Como ele não deve ser frágil, me pediram para ser visceral nos conflitos, na raiva e no medo que Marcos sente do poder que não sabe de onde vem, de não conseguir impedir o que prevê. É um personagem muito complexo porque também é o galã.

É mais difícil ser um galã do que ser Nando, o drogado de ‘O Clone’?

É mais difícil ser um galã interessante que um drogado interessante. Porque o drogado automaticamente tem algo que o difere da multidão. O galã é monocórdio, apresenta um conflito no início e se mantém nele até o fim. O Marcos não tem isso, se modifica o tempo todo. Começa puro, se vende, fica até cínico e tem a redenção no fim. Não é óbvio. Ele junta o Nando e o herói.

Você é espiritualista como o Marcos e os autores de ‘O Profeta’?

Eu prefiro não dizer no que eu acredito porque o Marcos não defende uma bandeira, está sempre em conflito. Se eu falar parece que aponto para um lado, não necessariamente o do Marcos, e isso diminui a força do personagem.

Seus colegas de elenco se inspiraram em atores dos anos 50 para compor os personagens. Você seguiu algum modelo?

Não, porque não existe uma referência cinematográfica para o Marcos. Ou é Jesus, o maior profeta que já existiu, ou filme de terror. No máximo me inspiro em Dr. Jeckyll, de O Médico e o Monstro, que descobre muito tarde que não controla mais o corrompido Mr. Hyde. Ou Darth Vader, de Guerra nas Estrelas, que tem o maior poder do mundo, quer o bem, mas começa fazendo o mal e emburaca.

Nunca te chamaram para viver Jesus Cristo?

Já fiz em São Paulo e foi muito gostoso. Representei no Autódromo, para 20 mil pessoas. Ao andar no meio delas, imaginei como foi para Ele estar aqui. Tem gente que te chama de gostoso e quer tirar foto junto, outros querem te arranhar, outros ainda, pensam na questão religiosa e acham que você é o cara. É incrível.

Além da novela, você faz outra coisa atualmente?

Como, respiro e durmo, não dá para fazer mais nada. O Marcos toma 24 horas do meu tempo, precisa ser assim e estou muito feliz de dar esse espaço todo para ele. É o personagem mais importante que já fiz e o momento mais importante de minha carreira. É o mais desafiador e não posso deixar essa bola cair.’



INTERNET

Flávia Tavares e Mônica Manir

Enfim, uma internet de mão dupla

‘Silvio Meira tem várias janelas abertas ao mesmo tempo na cabeça. ‘E quem não tem?’, diria você. Acontece que Meira faz conexões futuristas com elas. Ao acompanhar o desenvolvimento das retinas artificiais, já vislumbra uma melhor que a do olho humano – com zoom inclusive. Ao seguir de perto a compra do YouTube pelo Google nesta semana, percebe um terceiro ciclo da internet, a dos grandes conglomerados. Mas vai além. Imagina celulares mandando imagens diretamente para um site de compartilhamento de vídeo, como o YouTube. ‘Isso só não acontece agora porque as operadoras pensam apenas em conta telefônica’, ressalva.

Professor da Universidade Federal de Pernambuco, consultor do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (C.E.S.A.R), colaborador periódico de ‘coisas’ de tecnologia, mentor e feitor de um blog e de um site, Meira se indigna com quem pensa pequeno. Ou melhor, com quem pensa minúsculo, porque é assim que entende o investimento do Brasil em tecnologia de informação. ‘Se o cara não tem o que comer, acham que não precisa de internet. Pois eu digo que ele talvez não tenha o que comer justamente porque não tem internet.’

Com a janela aberta para o bairro da Casa Amarela, no Recife, ‘mais uma população excluída digitalmente’, este paraibano de 51 anos deu entrevista para o Aliás antecipando o que pode sobre a fusão dos líderes Google/YouTube e criticando o que deve aos que se mantêm na rabeira dos novos tempos.

O YouTube vale US$ 1,65 bilhão?

Tem algo que Google não conseguiu fazer, apesar de toda a proficiência tecnológica de seus laboratórios: criar comunidade, marca e reputação na área de vídeo. Cada vez mais gente vai para o lugar onde já tem muita gente. Isso também explica o fracasso do Orkut fora do Brasil. YouTube é a maior comunidade de vídeo do planeta, tem cerca de 50% do tráfego de vídeo do mundo, enquanto MySpace fica com 25% e Google Video, 10%. Vale lembrar que Yahoo!, Microsoft, talvez eBay, mas principalmente MySpace poderiam comprar o site de vídeo. Google, que vale US$ 140 bilhões na bolsa de Nova York, gastou 1% disso no negócio. Eu não pagaria US$ 1,65 bilhão, mas para Google é uma compra defensiva.

Antes de fechar o negócio, o YouTube acertou com a Universal, e o Google com a Warner e a Sony. A fusão vai monopolizar a exibição de vídeos comerciais?

A qualidade dos vídeos do YouTube não é exatamente alta para transmissão de filmes inteiros. Mas pode-se usá-lo como canal privilegiado de distribuição de trailers, animações curtas, making ofs, o escambau. Agora, se não está claro como YouTube vai ganhar dinheiro, muita gente sabe como vai perder. Deve queimar, neste ano, US$ 100 milhões em banda e tecnologia para suportar a quantidade absurda de vídeos que trafegam no site. E um número considerável deles está sujeito a disputa sobre a propriedade daquela coisa. Um dos departamentos mais agitados do YouTube será o legal.

Como ficam os processos com relação à invasão de privacidade?

O YouTube é mais um sinal de que a privacidade acabou. Quando vemos uma pessoa com um celular, não sabemos se estamos sendo filmados… Essa produção precisa vazar para algum lugar, e o YouTube é uma via de escoamento. Por quanto tempo terá sucesso? Ninguém sabe. Daqui a algum tempo, posso filmar alguém com o meu celular, apertar um botão e esse negócio vira imediatamente um vídeo numa comunidade de compartilhamento acessível pela internet. Isso não acontece tão rápido porque a cabeça das operadoras só pensa em conta telefônica. Se lembrassem que há uma convergência digital aí…

Além das operadoras, que outras mídias podem se aproveitar de conteúdos gerados pelo usuário?

Os blogs. Há 50 milhões de blogueiros só nos EUA. Como os americanos são sempre metade do mercado do mundo em qualquer coisa, podemos assumir que existem de 100 a 200 milhões de pessoas na internet fazendo algo mais do que ler site e mandar e-mail. Dez anos depois de ter sido disponibilizada como um paradigma de interação humana, a internet começa a servir para o que foi criada, ou seja, como infra-estrutura de um mecanismo de expressão pessoal e social. Quando alguém cria um blog ou um fotoblog ou compartilha sua música em sites de troca, ainda que pirata, há uma economia, uma cultura e, conseqüentemente, uma sociologia se movimentando nesse ambiente de expressão.

Com essa transação, o YouTube corre o risco de sofrer a censura que o Google aplica no seu site?

Entre suas metas, Google planeja acordos com governos não necessariamente amigáveis. Só espero que não ocorra autocensura, como já acontece nas operações na China. Parece também um mecanismo de competição inteligente dos chineses. Dizem para o Google não responder a certas coisas, mas autorizam o Baidu, seu site de busca, a fazê-lo. Baidu, que significa Google em chinês, tem 60% dos usuários no país. Com os mecanismos de geração de riqueza de que dispõe, em 20 anos a China será mais importante na internet do que os EUA. É bom olhar qual é o site chinês de compartilhamento de vídeo.

O usuário do YouTube deixará de fazer parte de uma comunidade independente para se juntar a um negócio milionário como o Google. Isso pode afastá-lo?

Há algum tempo, Rupert Murdoch, da Sky/Direct TV, comprou o MySpace. De lá para cá, o site só aumentou seus usuários com uma performance cada vez maior. Existe alguma pessoa mais odiável do que o Rupert Murdoch? No entanto, a compra do MySpace não foi interpretada como ‘vou dominar esse negócio’. Em alguma hora, essas infra-estruturas da rede vão sendo absorvidas por megaconglomerados como parte das suas operações. Não devemos ter a ingenuidade de pensar que um negócio criado por dois caras independentes e que se transforma num mega-sucesso precisa continuar a ser como foi no começo porque, sem remuneração, deixa de servir a todo mundo.

O desafio do YouTube, hoje, seria se tornar imprescindível?

Para qualquer negócio intermediário, como YouTube, a coisa é se tornar tão importante que as comunidades de uso e de prática ao seu redor não precisam estar contentes, mas resignadas a perder alguma coisa por causa dele. Se olhar para a comunidade formal dos produtores de vídeo, ela está resignada a perder uma parte da receita que tinha porque YouTube tem 150 milhões de usuários registrados.

Google é uma ferramenta de pesquisa imprescindível?

O melhor engenho de busca de blogs é Sphere, não Google. De busca científica é o Scirus, que tem milhões de resultados. Google domina não o nicho, mas o mercado de busca genérica. Não se pode ser especialista no todo. Então, existe aquele que domina 60% do grande público e existem os especialistas, que talvez sejam, olhando numa proporção pelo tráfego, mais bem remunerados do que os mega-sites.

A ascensão do YouTube reflete uma ascensão do apelo visual?

O ser humano é áudio-visual desde sempre. O problema é que não havia a capacidade de exprimir e apreciar a curiosidade pelo outro em rede, porque não havia infra-estrutura. O YouTube é o que é por causa da banda larga. Já imaginou YouTube com linha discada? A banda larga é um fenômeno dos últimos quatro anos. Nos EUA, entre os 70% que têm internet em casa, 60% possuem banda larga. No Brasil, há 3 ou 4 milhões de conectados a ela, o que é patético.

O Brasil é tão ruim de inovação?

Não temos a cadeia de valor para pegar resultados em ciência e tecnologia, combinar com a capacidade de botar no mercado e criar novos produtos, processos e serviços. Pouquíssimos inovadores brasileiros estão no mercado internacional. O mercado de inovação é global. As soluções são de classe mundial, buscam resolver o problema independentemente da geografia. E assumir riscos no Brasil, onde a dívida pública bota os juros na estratosfera e transforma qualquer outra operação de remuneração de dinheiro na mais arriscada do planeta, não é razoável.

A união do Google com o YouTube diz o quê para o brasileiro?

Do ponto de vista da realidade geral do brasileiro, a exposição que esse evento vem recebendo é completamente desproporcional ao problema do Brasil digital. Quem são as pessoas incluídas aqui? Dados do Comitê Gestor da Internet mostram que, no último mês, menos de 10% da população brasileira usou a internet. Desses 10%, cerca de 20% usa banda larga. Somos excluídos digitalmente. Veja o bairro da Casa Amarela, onde moram 200 mil pessoas numas 50 mil casas. Não deve ter internet em 5 mil delas. Não resolvemos o problema do acesso à internet, porque deixamos que as pessoas tentem resolver sozinhas. Mas elas não têm renda pra isso. E também não resolvemos a questão do acesso à internet comunitária. As escolas deveriam ser centros de inclusão digital para toda a população.

As imagens do debate para presidente de República presentes no YouTube farão diferença para os rumos da eleição?

Não. Eu vou ver, vou achar engraçado ou não, vou criticar ou não, vou mandar o link para 10 pessoas que já se decidiram em quem vão votar. Mas, quando observamos a campanha eleitoral em qualquer país, temos de olhar para as classes C, D e E. Para essas pessoas, a utilidade do YouTube é zero. O mesmo ocorre com os blogs, eles não atingem a vasta massa de indecisos.

Quem atinge é a TV.

Sim, ela atinge mais de 90% da população.

É por isso que o Boni (da Rede Globo) disse, num encontro na MaxiMídia, que nada vai mudar na TV nos próximos 30 anos no Brasil?

Ele está exagerando. Quando se olha para frente num certo período de tempo, deve-se duplicar esse tempo e olhar para trás. Há 60 anos, não havia TV no Brasil. Daqui a 30, poderemos ter todos os celulares com televisão. O mundo mudará completamente. Vou ver clipes no ônibus, no carro, no metrô, etc. O celular é um bicho perigoso porque tem um teclado que permite interação. E, se houver televisão no celular, também haverá internet. Combinaremos uma máquina que manda coisas pra mim e eu posso mandá-las de volta ou redirecionar para outros lugares. Televisão digital já tem o potencial de mudar muito.

No Brasil, as pessoas têm mais acesso ao celular do que à internet. Se ele for o veículo para esse tipo de informação, temos uma perspectiva bem mais otimista?

Sim, mais, muito mais.

Qual é o seu prognóstico quanto à TV digital no Brasil?

O que está planejado é cobertura nacional até 2013. Ter TV digital significa trocar transmissores, antenas, receptores. A maior parte da produção que está sendo feita dentro dos estúdios de TV já é em formato digital. Mas a estrutura precisa ser totalmente trocada. E tem a questão da interação. Eu poderia sobrepor numa novela, por exemplo, um desenho qualquer que destaque uma camisa vestida pelo ator. Aí apertaria o botão para comprar aquela camisa numa loja qualquer que patrocine a novela. Quando isso chegará ao bairro da Casa Amarela? Sim, vai acabar acontecendo, mas levará muito tempo. Se a evolução da TV digital der certo como interação, será uma revolução. A TV será o mecanismo de inclusão digital.’



TELEVISÃO
Leila Reis

Polarização dá ibope

‘Alguma coisa de novo está acontecendo no território da TV nestas eleições. Depois da modorrenta campanha do primeiro turno – marcada por uma propaganda eleitoral pífia e debates sonolentos – a sensação é de que o Brasil acordou para a disputa presidencial e que só agora está interessado nos argumentos de Alckmin e Lula para captar o voto do eleitor.

Com exceção da RedeTV!, as emissoras abertas estão se envolvendo até o pescoço nesta fase. Além da Rede Bandeirantes, que conseguiu sua melhor audiência dos últimos anos com a exibição do debate entre Lula e Alckmin em horário nobre no domingo, abriram lugar na programação para contendas entre os candidatos a Gazeta (dia 17, se Lula confirmar), SBT (19), Record (23) e Globo (27 de outubro). A Cultura programou um Roda Viva com Lula amanhã e com Geraldo Alckmin na outra segunda-feira.

Está certo que dentro da missão dos veículos de comunicação está o acompanhamento dos fatos relevantes para a vida do País e o empenho em ajudar o público a tomar decisões acertadas. Mas todo esse entusiasmo das emissoras também tem a ver com a resposta do telespectador.

A Bandeirantes está uma alegria só. O debate entre Lula e Alckmin deu à emissora um ibope excepcional: 16 pontos de média na Grande São Paulo. Isto quer dizer que só na grande metrópole perto de 1 milhão de lares estiveram sintonizados na Band das 20 às 23 horas, no domingo. No Brasil, segundo o Ibope (que mede a audiência em 11 praças que representam pouco mais de 55 milhões de pessoas, especialmente das principais capitais e cidades com boa capacidade de consumo), o debate registrou 13 pontos de média, o que significa que foi visto por mais de 7 milhões de telespectadores, no mínimo.

Há algumas hipóteses para esse interesse pela política. A primeira (e a mais óbvia) é a polarização. A luta entre dois contendores é mais forte do que uma disputa entre cinco. Especialmente, quando o mais forte deles deixa de entrar na arena, como ocorreu no primeiro turno. E aqui entre nós, quem estava interessado no que um candidato sem a menor chance de se eleger (como Luciano Bivar, do PSL) tinha a dizer?

Na disputa entre dois configura-se a luta dos antagônicos: esquerda contra a direita, mal contra o bem, certo contra o errado, claro, com a torcida de cada lado enxergando seu candidato no melhor papel. E aquele que não torce para lado algum pode apreciar as performances e tirar suas conclusões.

Por outro lado, não se pode descartar a suspeita de o eleitor brasileiro ter mudado de atitude. A caravana do Jornal Nacional, que saiu a campo para mapear os desejos do Brasil nos recantos mais remotos, pode não ter servido para o eleitor escolher com mais consciência em que votar, mas fez diferença. Não há dúvidas de que, ao instalar nos grotões distantes sua parafernália acompanhada de figuras famosas como Pedro Bial e William Bonner, a Globo armou um espetáculo muito maior do que qualquer comício.

Pode apostar que, por si só, essa movimentação pirotécnica deve ter levado uma porção do povo brasileiro a prestar um pouco mais de atenção na política. Se isso realmente aconteceu, a caravana JN fez melhor do que se propôs inicialmente.’



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Em busca da atmosfera dos anos 50

‘Um herói que foge à sua missão, sucumbe, mas se redime. Numa frase, esta é a história de O Profeta, nova novela das 6 na Rede Globo. É o remake do sucesso de Ivani Ribeiro nos anos 70, com elenco que mistura jovens estrelas e galãs da emissora com veteranos consagrados. O personagem do título é Marcos (Thiago Fragoso), vidente que usa comercialmente seu dom.

Em torno dele circulam Sônia (Paola de Oliveira), mocinha para ninguém botar defeito; Ruth (Carol de Castro), vilã linda e malvada; e Camilo (Malvino Salvador, no seu primeiro vilão). Nos vários núcleos de personagens, há Esther (Vera Zimmerman), mulher separada e mal falada; Rúbia (Rosi Campos), a falsa vidente; Lia (Nívea Maria), a mãe ambiciosa, e Carola (Fernanda Souza), a filha feiosa e rejeitada; Piragibe (Luiz Gustavo), o velho rabugento; e Dedé (Zezeh Barboza). Todos circulam em torno de Marcos, menino que nasce com o dom da premonição, sofre porque não consegue evitar os desastres que prevê, usa o dom comercialmente e… Aí é melhor acompanhar a novela.

Tudo acontece nos anos 50, no bairro paulistano da Barra Funda, reproduzido numa cidade cenográfica no Projac. ‘A história original tinha uma ingenuidade que se perdeu nos dias de hoje’, explica o supervisor da novela, Walcyr Carrasco, mestre em misturar ingenuidade e perversão em tramas de época (Chocolate com Pimenta, O Cravo e A Rosa, Chica da Silva, etc). Ele escreveu os primeiros capítulos e passa a bola para suas auxiliares, Duca Rachid e Thelma Guedes. ‘Elas já estão amadurecidas como autoras, podem seguir adiante sozinhas.’

A reconstituição de época remete ao cinema dos anos 50 e 60, como Bonequinha de Luxo, Quanto Mais Quente Melhor, Gata em Teto de Zinco Quente e os filmes de James Dean, mas a história é brasileiríssima e, em meio a saias rodadas, um pouquinho de rock ingênuo e gírias de meio século atrás, o público de hoje se reconhecerá.

‘Essa trama do herói está presente na filosofia, na literatura e em toda a dramaturgia’, avisa Carrasco. ‘E nós escrevemos para o público de hoje’, conclui Thelma. ‘Os temas de que tratamos são universais e atemporais, mesmo que hoje adquiram aspectos diferentes de antigamente.’’



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Folha de S. Paulo – 1

Folha de S. Paulo – 2

O Estado de S. Paulo – 1

O Estado de S. Paulo – 2

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