Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

O projeto de poder das milícias

Seis anos após a morte do jornalista Tim Lopes por traficantes do Rio de Janeiro, o Observatório da Imprensa na TV, exibido na terça-feira (3/6), voltou a discutir os limites do jornalismo na busca pela denúncia, pelo furo de reportagem. Até que ponto o profissional de imprensa deve arriscar-se para cumprir o papel de manter a sociedade informada?


O programa da TV Brasil debateu o seqüestro e tortura sofridos por uma equipe do jornal O Dia, ocorridos em meados de maio e divulgados no sábado (31/05). A atitude dos criminosos revoltou associações de classe e de defesa dos direitos humanos. O grupo passou 15 dias infiltrado na favela do Batan, no Rio, para produzir uma reportagem investigativa sobre a atuação das milícias na comunidade. Descobertos, repórter, fotógrafo e motorista ficaram cerca de sete horas em poder da milícia.


Participaram do debate ao vivo, no Rio de Janeiro, o diretor de Redação de O Dia, Alexandre Freeland; Maurício Azedo, presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e Angelina Nunes, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). O convidado de São Paulo foi o coronel José Vicente da Silva, ex-secretário Nacional de Segurança Pública.




Alexandre Freeland, jornalista, diretor de redação do jornal O Dia, formou-se pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em Colônia (Alemanha, trabalhou no serviço brasileiro da rádio pública Deutsche Welle.


Angelina Nunes, jornalista, é presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). É editora-assistente da Editoria Rio, do jornal O Globo, onde trabalha há mais de 15 anos.


Maurício Azêdo, jornalista há mais de 50 anos, é presidente da Associação Brasileira de Imprensa. Advogado formado pela Faculdade de Direito da antiga Universidade do Estado da Guanabara, foi conselheiro do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro.


José Vicente da Silva Filho é coronel da reserva da PM de São Paulo e ex- Secretário Nacional de Segurança Pública. É mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP.


Alberto Dines abriu o programa comentando os assuntos de destaque da semana. A atividade do jornalista Armênio Guedes, que completou 90 anos de idade, foi o primeiro tópico. Para Dines, o elixir da longevidade de Armênio é a liberdade. O outro tema da seção foi a iniciativa da família do repórter político Carlos Castello Branco de colocar as oito mil edições da coluna do jornalista disponíveis em um site.


O tema desta edição do Observatório na TV desta semana seria o bicentenário do jornal Correio Braziliense, o primeiro periódico brasileiro, mas o assunto foi adiado para a próxima edição (10/6) devido à urgência em tratar do ataque aos jornalistas no Rio de Janeiro. Dines criticou a pouca cobertura dos 200 anos do Correio. O jornalista afirmou no editorial que a agressão sofrida pela equipe de O Dia confronta a Constituição e cria no Rio de Janeiro um foco de subversão da ordem pública.


O jornalista como investigador


A reportagem exibida antes do debate ao vivo mostrou opiniões de autoridades e entidades de classe. Para Wadih Damous, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro, é preciso apurar o paradeiro do morador da comunidade que foi capturado junto com a equipe e que ainda está desaparecido. O jornalista Aziz Filho afirmou que as milícias impedem a circulação da imprensa nas comunidades para esconder o drama que estas vivem.


José Mariano Beltrame, secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, avaliou que a reportagem que o jornal produzia era, no mínimo, arriscada. O chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Gilberto Ribeiro, disse que o jornalista é, por excelência, um investigador, mas que não se pode negligenciar a segurança dos profissionais que se infiltram em áreas de risco.


Suzana Blass, presidente do Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro, contou que o órgão solicitou a formação de comissões de segurança dentro das redações, mas que encontra resistências. A proposta estaria sendo caracterizada como uma ‘intromissão no trabalho’. Para ela, é necessário impor limites à atuação da imprensa em áreas de risco. As vidas de jornalistas não poderiam ser colocadas em risco. Ali Kamel, diretor-executivo da Central Globo de Jornalismo, relatou, em entrevista concedida em 2002, uma das frases do jornalista Cláudio Abramo que Tim Lopes tinha em sua mesa de trabalho: ‘Nenhuma notícia vale uma vida’.


Os riscos da proximidade com o crime


No debate ao vivo, Dines perguntou ao diretor de Redação de O Dia se os riscos da infiltração na comunidade foram bem avaliados. Alexandre Freeland prestou solidariedade à equipe do jornal e explicou que a idéia inicial não era uma infiltração na milícia, mas sim mostrar como vivem os moradores de áreas pobres dominadas por bandidos.


O jornalista contou que houve um levantamento inicial e uma aproximação com a comunidade. Destacou os momentos da descoberta da equipe na favela e da captura do grupo como essenciais para que se defina o que aconteceu de errado na operação. E comenta que o caso não teve um desfecho pior porque envolvia jornalistas. ‘Mesmo a milícia teve medo da reação da opinião pública e não foi até o fim.’


O coronel José Vicente da Silva considera que a polícia deve preservar a integridade física dos jornalistas que acompanham as operações de segurança pública e até impedir que profissionais de imprensa participem de situações de confronto. Para ele, foi arriscado a equipe inflitrar-se na comunidade. O coronel afirmou que antes de a imprensa ser intimidada e agredida, a população já vinha sofrendo nas mãos dos milicianos.


O ex-secretário nacional de Segurança alertou que as autoridades policiais devem presidir todas as áreas onde a sociedade está instalada. ‘Essa situação mostra como está desarticulada a estratégia de segurança do governo porque não está assegurando uma vida decente a essas populações, inclusive criando dificuldades para a imprensa poder entrar. Onde a imprensa não pode entrar, alguma coisa ruim está acontecendo’, avaliou.


Desde a morte de Tim Lopes as redações estão traumatizadas, na opinião da presidente da Abraji. Por meio de cursos e treinamentos, a associação orienta jornalistas a antecipar-se ao perigo e ter sempre um ‘plano B’ para situações de confronto. Angelina Nunes comentou que a estratégia de O Globo para produzir matérias sobre milícias é conversar com os moradores fora da comunidade. Para ela, é preciso ‘desglamourizar’ a profissão: ‘O repórter não é herói, não é Super-homem, não é um Sherlock (Holmes). Ele precisa relatar o que viu e para relatar ele precisa estar vivo’.


Segurança em primeiro lugar?


O presidente da ABI rememorou a advertência de Assis Chateaubriand, proprietário dos Diários Associados, ao jornalista Joel Silveira ao enviá-lo para cobrir a participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial: ‘Você está proibido de morrer’. Para Azêdo, jornalista não deve morrer na cobertura de áreas de risco mas, por outro lado, não deve ‘capitular’.


Cursos de segurança e outros mecanismos de proteção são necessários para este tipo de reportagem. ‘O jornalista não pode colocar em primeiro plano, como um valor absoluto que se sobrepõe aos demais, a questão da segurança’, disse. Azedo discordou da posição defendida pela presidente do Sindicado dos Jornalistas: ‘Ela é a advogada da capitulação em relação à obrigação dos jornalistas de procurar a verdade e noticiá-la onde quer que ela se encontre’.


Dines questionou Freeland sobre o motivo de os milicianos terem reagido de forma tão violenta à reportagem. O jornalista explicou que além da cobrança de impostos para segurança clandestina, fornecimento de gás e de TV a cabo pirata, a reportagem deveria relatar o projeto de poder das milícias. Por isso a matéria tinha como título ‘Política do Terror’; segundo ele, o envolvimento entre parlamentares e milicianos é uma constante.


Para Angelina Nunes, está cada vez mais claro que as milícias estão trabalhando em favor de políticos. A jornalista comentou que alguns nomes de parlamentares envolvidos já vieram a público e nada foi feito. O perfil dos milicianos já foi traçado (em geral ex-agentes da segurança pública), as atrocidades que cometem foram divulgadas. O problema teria começado há cerca de quatro anos, crescido a partir de então e, até agora, poucas providências foram tomadas.


A presença da imprensa na favela e no asfalto foi avaliada no programa. Para Angelina Nunes, a mídia cobre todas as áreas da cidade mesmo após o caso Tim Lopes: ‘Nós continuamos cobrindo todas as áreas, principalmente as de maior conflito’. Os veículos de comunicação cobrem de áreas de risco a condomínios de luxo, com as precauções necessárias.


A presença da imprensa nas áreas de risco


Alexandre Freeland discorda e propôs que a imprensa faça mea culpa. Ele avalia que a mídia não está presente em boa parte das áreas conflagradas e da periferia, apesar do impulso de cobrir essas regiões. Para Freeland, a imprensa não tem uma presença tão eficaz quanto poderia ter. ‘O que não significa que nós não estamos presentes. Nós não deixamos de entrar nessas áreas mas, se instalar, é uma outra discussão’, rebateu Angelina.


Para o diretor de redação de O Dia, a posição da mídia não foi contundente o suficiente para promover uma transformação e levar a sociedade a pressionar as autoridades. Alberto Dines cobrou maior participação de jornais como a Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo: ‘Esse não é um caso local, é um caso nacional’.


Freeland comentou a coluna da jornalista Míriam Leitão sobre o caso, publicada na segunda-feira (2/6), no Globo. Num dos trechos, a jornalista diz que ‘não se pode defender que fiquemos longe dos fatos. Se o jornalismo capitular, eles (criminosos) terão tido uma vitória decisiva’. O jornalista comentou que algumas das outras considerações sobre o fato veiculadas recentemente não têm ‘um viés bem intencionado’. Ele criticou órgãos de imprensa que permitem que jornalistas testemunhem julgamentos do ‘tribunal do tráfico’ e enviam repórteres disfarçados a comunidades dominadas pelo crime, que garantem ter mecanismos de segurança. ‘Se aí tem mecanismo de segurança então me explica qual é. Não tem. Se o traficante quiser, se estiver mais ou menos cheirado, mete bala na cabeça do repórter’, disse.


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Paramilitares contra o Estado


Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV, exibido em 3/6/2008


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


Estamos todos de parabéns: nossa imprensa completou no domingo (1/6) dois séculos de existência. Este que chamamos de quarto poder é mais antigo do que os outros três (Executivo, Legislativo e Judiciário). É um aniversário ainda mais importante do que a criação da Impressão Régia, porque nada teve a ver com chegada da Família Real portuguesa ao Brasil. Para circular livremente na colônia, o Correio Braziliense precisou ser escrito e impresso em Londres, onde o longo braço da Inquisição não alcançaria pela segunda vez nosso primeiro jornalista, Hipólito da Costa.


Acontece que este aniversário não foi comemorado. Nossos jornais e revistas, que deveriam comemorar um passado memorável, colocaram a festa na clandestinidade. Apenas a Folha de S.Paulo teve a ousadia de lembrar a data, mas não conseguiu esmiuçar as razões do nosso atraso na entrada da Era Gutenberg. Para não lembrar que a censura religiosa foi a responsável pelo nosso atraso cultural, preferiu-se ignorar a festa e assim não nomear os culpados pelo longo período de trevas.


Este embargo noticioso deixa nossa imprensa muito mal. A próxima edição do Observatório da Imprensa vai tratar da festa que não aconteceu. Deveríamos fazê-lo hoje, mas a agressão das milícias ao jornalismo carioca impõe este adiamento. Nosso patrono, Hipólito da Costa, agiria da mesma maneira.


O seqüestro e tortura de uma equipe do jornal O Dia, que foi investigar as atividades das milícias, não é um caso local ou estadual. Estamos diante de um motim de paramilitares contra o Estado brasileiro.


O ministro da Justiça está em férias, tem todo o direito, mas o Estado brasileiro não pode tirar férias. A agressão das milícias aos jornalistas que cumpriam seu compromisso social confronta a Constituição que garante a liberdade, confronta os poderes constituídos e cria no Rio de Janeiro um foco intolerável de subversão da ordem.


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A mídia na semana


** Ele completou 90 anos, tem 67 anos de profissão e todos os dias vai à Imprensa Oficial do Estado de S.Paulo, onde trabalha como redator. Armênio Guedes, decano do nosso jornalismo, foi membro do Comitê Central do Partido Comunista, durante a ditadura exilou-se no Chile e na França. Foi um dos líderes da ala euro-comunista, democrática. O elixir da longa vida de Armênio Guedes é a liberdade.


** Descendentes de celebridades gostam de faturar as obras que herdaram. Não é o caso dos filhos e netos do nosso mais famoso repórter político, Carlos Castello Branco. As oito mil edições da ‘Coluna do Castello’ estão agora disponíveis num site, patrimônio dos seus leitores.

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Jornalista