Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os tipógrafos esquecidos

Eu convivi e trabalhei com tipógrafos ou gráficos no mesmo ambiente como revisor de jornal. Ficava impressionado com o tipo físico de alguns. Corpos frágeis, olhos atentos e com certa melancolia, muitas vezes perdidos em nada. No pensamento, certamente não tinham esperança em melhorar a vida. Demonstravam-se preocupados com a família, em particular, ao dia seguinte, na hora do pão nosso de cada dia e a comida à mesa. A barba, nem sempre feita. Vestiam roupas simples, manchadas de tinta e calçavam chinelos. As unhas, por mais que limpassem com gasolina, permaneciam sujas de graxa. Uns com os olhos sonolentos. Fizeram um extra na véspera ou durante a noite, nela mergulharam no ócio numa mesa de bar, pela Rua 28 de Julho.

O que me comovia nesses operários era a alegria com que desenvolviam as atividades. Sempre prontos para rir de uma piada. Principalmente quando o personagem era o dono do jornal, o chefe da redação ou um repórter novato, que cometiam equívocos nos textos e no outro dia, a ordem: ‘Chamem os revisores’ – eram dois, um lia e o outro corrigia, de acordo com o original. Nos dias atuais o erro sai por conta do corretor ortográfico do computador (será?), apesar de corrigir muita besteira de gente metida a redator.

O local de trabalho era pequeno. Respirava-se a chumbo derretido, antimônio e tinta. Alguns desses espaços pareciam um porão. O banheiro se assemelhava àqueles de bar de subúrbio, sem higiene. Tínhamos ainda que agüentar a zoada incômoda de um prelo velho e cheio de manha, pelas paradas. Só bons impressores conheciam a malandragem. O chão tremia.

Paginadores e impressores

É dessa gente humilde e boa que quero lembrar, considerando-se as comemorações do bicentenário da chegada e implantação da tipografia, em 1808. Falaram da máquina e se esqueceram do homem, do tipógrafo, sem o qual, o jornal até a década de 70 do último século, não funcionava. Ninguém falou deles. Foram duplamente injustiçados: com a chegada do offset e do computador perderam o emprego ou tiveram que fazer serviços fora da sua competência. Adeus, tipos móveis de Gutenberg. Adeus, jornal feito artesanalmente e com salários e vales recebidos por amor à camisa e necessidade.

Na história do jornalismo, escreveu-se pouco ou nada sobre esses operários que ocupavam as funções de tipógrafo ou gráfico, como seguidores da arte de Gutenberg; havia os auxiliares ou aprendizes para uma das tarefas; os paginadores e os impressores. Recordo-me de todos, mas citarei o nome de alguns, com os quais trabalhei, como revisor: Ferraz, Codó, Lobão, Ferdinand, Louro, Manezinho, Raimundo (grande figura), Ruberval, Raça, Nonato, Chico, Assis, Mário Camelo e Mário Carneiro (hoje advogado).

Ainda há tempo…

Apesar das dificuldades econômicas, muitos investiram na educação dos filhos e alguns freqüentaram universidades, formando-se. O saudoso e bom-papo Ferraz tem um filho que pertence à alta direção de uma multinacional. É a vitória de quem acreditou na educação como meio de abrir outros caminhos aos herdeiros. Houve muita gente importante, aqui, e lá fora, que exerceu uma daquelas atividades e se deu bem. Vejam: o ex-presidente dos EUA Benjamin Franklin (1706-1790), o grande poeta americano Walt Whitman; no Brasil, Machado de Assis é o representante maior; em São Luís, Aureliano (promotor de Justiça), Baty, Bogéa; Odorico Mendes e Miécio Jorge entendiam do riscado. O Maranhão foi um celeiro de grandes operários nessa área, a começar pelo maior deles, Belarmino de Matos e José Maria Corrêa de Frias.

No século 19, na hora dos castigos e perseguições por parte do governo, geralmente a culpa recaía nos tipógrafos. Quase sempre escapavam os jornalistas e donos de jornais. Por diversas vezes foi pedido, através de subscrição pública, ajuda aos gráficos, que se achavam presos, incorporados na marra à Guarda Nacional ou escondidos, com as famílias passando fome. Pelo trabalho indispensável no jornal e outras publicações, pelo sacrifício e merecimento, há, sim, tempo, em 2008, de convidá-los para a festa dos 200 anos da imprensa no Brasil.

Eles merecem e sem eles não leríamos os jornais para nos informarmos a respeito dos principais acontecimentos que nos ajudam nas decisões e a seguir os rumos da humanidade.

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Jornalista