Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Os trapalhões e o Muro de Berlim

É só um pouquinho de exagero dizer que o Muro de Berlim caiu por causa de uma entrevista coletiva. Mas se não fosse a trapalhada do porta-voz do governo alemão oriental naquela noite histórica vinte anos atrás, o Muro não teria caído. Ou, pelo menos, não em 9 de novembro de 1989, mas talvez semanas ou meses depois, como resultado de forças históricas já em ebulição.

Só que Gunther Shabowski merece o Prêmio Renato Aragão como o trapalhão do comunismo – ou do fim dele – porque divulgou uma informação errada naquela noite fria em que as pessoas em casa o acompanhavam pela televisão, em meio a movimentos populares de rebeldia no mundo comunista como nunca se tinha visto.

Muitos alemães-orientais entenderam as palavras dele como anúncio de que o Muro estava aberto e assim correram para os pontos de travessia oficial – reservados ao privilegiados – e os policiais tiveram de dar passagem mesmo, pois a alternativa era disparar contra uma multidão que crescia sem parar. E, afinal, os guardas também tinham ouvido a mancada de Shabowski em rede nacional.

Notícia quente

Em plena fervura dos protestos de rua sem precedentes em Leipzig, Dresden, Berlim do Leste e outras cidades da então Alemanha Oriental, Shabowski tinha tirado alguns dias de folga. Só um burocrata do mundo comunista fechado e censurado para não perceber a história pegando fogo em volta e sair de férias.

Quando retornou ao batente, ele faltou a um encontro da cúpula do governo, quando se discutiu justamente um plano para autorizar alemães do Leste a viajar ao Ocidente. Eles afinal já estavam fazendo isso de maneira clandestina e atabalhoada, o que deixava as autoridades comunistas em posição embaraçosa para explicar porque tantos fugiam do paraíso proletário.

Milhares de alemães do Leste que tinham ido à Hungria – trajeto permitido, porque o bloco soviético como um todo era fechado à saída para o mundo ocidental – se aproveitaram da recente abertura de fronteira entre Hungria e Áustria e cruzavam para o outro lado, onde pediam asilo na embaixada da Alemanha Federal, a parte não- comunista.

Na tal reunião oficial que Shabowski perdeu, o governo comunista decidiu que iria autorizar saídas – mas com ordem, sob controle, após a emissão de vistos, carimbos lá e cá, cópias em várias vias, até para o guarda de trânsito. Ou seja, pretendiam fingir abertura para baixar a pressão das ruas e controlar as massas, como de hábito.

Redigiu-se um press release com essa ‘decisão’ e uma cópia foi entregue a Shabowski quando ele entrava no prédio horroroso do Centro de Imprensa Internacional, lotado de jornalistas estrangeiros porque os acontecimentos naquele período em Berlim eram quentes, notícia no mundo todo.

Metáfora nebulosa

Não custa lembrar que o secretário-geral do Partido Comunista, Erich Honnecker, tinha caído do poder poucas semanas antes, após duas décadas de comando autoritário. Em outubro, o líder soviético Mikhail Gorbachev tinha passado por Berlim-Leste e deixado claro que não ia usar suas forças baseadas na região para esmagar os movimentos de dissidência que se espalhavam pelo mundo comunista.

Sob este clima politicamente acalorado, a entrevista coletiva de Shabowski se arrastava com informações genéricas, até que um jornalista italiano perguntou sobre os tais planos do governo para autorizar viagens (boatos neste sentido já corriam). O porta-voz mal-informado responde que os planos tinham sido aprovados.

Epa! – anima-se um jornalista britânico. ‘Para efeito quando?’

Shabowski pega o press-release que lhe tinha sido entregue às pressas, olha de um lado e do outro, fiz uma leitura dinâmica e diz: ‘Efeito imediato, me parece’.

‘Em Berlim também?’ – pergunta outro, surpreso, e logo acrescenta: ‘E o Muro?’

Shabowski responde com uma metáfora nebulosa sobre a eventual perda de ‘impermeabilidade’ do Muro, o que ninguém entendeu, mas quando chegou a este ponto das explicações, suficientes para provocar infartos nos outros burocratas sentados a seu lado, quem ouvia de casa concluiu logo: ‘Liberou geral!’

Lição de história

Muitos saíram em direção ao Muro. Quem demorou ainda teve oportunidade de ver em casa o telejornal da emissora alemã-ocidental, captável do lado comunista e mais respeitada por não ser chapa-branca. O veterano locutor anunciou que centenas de pessoas estavam atravessando o Muro de Leste para Oeste (o contrário sempre foi possível). Ainda não era verdade, porque os guardas hesitaram um pouco em abrir as cancelas, mas logo se tornou realidade e milhares atravessaram.

Era noite de quinta para sexta-feira e logo o fim de semana iria permitir um passeio em massa de famílias, amigos, grupos, do setor comunista para o lado ocidental. Não uma mudança definitiva, mas uma visita curta, para rever parentes, conhecer partes do que um dia tinha sido um só país – e que em menos de um ano voltaria a ser. Os visitantes entravam em prédios, museus, cinemas, livrarias, lojas, sem conseguir esconder o choque diante da opulência e da fartura de Berlim Ocidental (superior inclusive ao padrão de outras cidades ricas alemãs). A oferta excessiva ofuscava quem estava acostumado com a austeridade do lado comunista.

Em semanas ou meses, outros países do bloco soviético na Europa passaram por transformações radicais, derrubaram regimes autoritários que duravam desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Dois anos depois, até a União Soviética desapareceu, pouco depois de uma tentativa desesperada da linha-dura para derrubar Gorbachev e suas reformas. Nas palavras de Karl Marx em outro contexto, após 70 anos de prática mal-sucedida, o comunismo na Europa virou cinza. E a abertura do Muro de Berlim serviu como símbolo das mudanças, uma lição de história.

Outra lição, como pode atestar Shabowski, é nunca dar uma entrevista coletiva mal informado.

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Correspondente em Londres desde os anos 1980, cobriu a queda do Muro de Berlim para a Rede Globo, em 1989, e voltou a Berlim agora para preparar especiais para a Globonews, onde ele participa regulamente dos programas Sem Fronteiras e Milênio