Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Plínio Bortolotti

‘De férias, não acompanhei passo a passo aquela que deverá ser a maior polêmica do ano, ainda que se tenha pela frente um período eleitoral. A performance, brincadeira, intervenção artística – ou seja lá como se queira chamar – de Yuri Firmeza, teve força suficiente para ludibriar a imprensa cearense, que publicou como se fosse verdade uma suposta exposição do fictício artista japonês Souzareta Geijutsuka, só existente na imaginação de seu criador. Para fazer os jornais caírem na, digamos assim, pegadinha, Yuri recebeu apoio oficial da direção do Museu de Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, local onde haveria a duvidosa exposição. Suponho que a fiança do órgão público, autenticando como verdadeiras informações falsas, tenha sido determinante para que o ‘jovem artista contemporâneo’, na descrição (real) de alguns críticos, tivesse sucesso em sua empreitada, com o objetivo aparente de ‘denunciar’ a suposta preferência dos jornais cearenses por artistas ‘de fora’ e um hipotético ‘descaso da mídia em relação às artes plásticas no Ceará’.

Antes de continuar – para evitar confusões e mal-entendidos –, duas coisas: 1) o fato de os jornais publicarem a notícia sem verificar a sua veracidade e, ainda, reproduzirem informações do release (nota distribuída à imprensa pela falsa assessoria de imprensa do artista inventado) como se fosse uma apreciação crítica, produzida pelas próprias redações, ao trabalho do fictício Souzareta, não tem justificativa aceitável. A responsabilidade pelo engano cabe aos jornais; em casos como esse, a atitude mais correta é assumi-lo sem subterfúgios – e nenhum dos argumentos que vou usar abaixo serve como atenuante a esse erro original; 2) não cabe questionar o ‘projeto’ de Yuri Firmeza: uma das funções do artista é provocar incômodos; diferentemente do jornalista, ele não tem compromisso com a objetividade e nem com a ‘realidade’.

Abordagem

Dito isso vou tocar em algumas questões a mereceram ampliação na abordagem: a) a forma diferenciada como os diários cearenses encararam a polêmica; b) o modo como a imprensa ‘nacional’ a noticiou; e c) a participação do Centro Dragão do Mar, por meio do Museu de Arte Contemporânea, no episódio.

Os jornais cearenses reagiram ao trote de forma diferenciada. Enquanto O Povo manteve uma postura aberta, sustentando o debate, tratando do assunto em editorial, entrevistando artistas e publicando artigos com diferentes pontos de vista sobre a questão, o Diário do Nordeste encerrou a polêmica logo que se revelou a farsa. Para o diretor-editor do Diário do Nordeste, Ildefonso Rodrigues, tratou-se de um ‘factóide’ (fato irrelevante, criado com o objetivo de atrair atenção), por isso o jornal ‘preferiu não dar seqüência à polêmica’.

O diretor-geral de Jornalismo do O Povo, Arlen Medina, diz o seguinte: ‘O episódio foi desgastante, mas nos serviu para reorientar uma série de procedimentos internos em relação ao material que recebemos das assessorias de imprensa, principalmente das oficiais. Entendo que uma instituição pública (o Museu de Arte Contemporânea) abusou de nossa confiança e o jornal errou por não ter feito as devidas e necessárias checagens. Lamentei a forma como o caso aconteceu, mas nem por isso O Povo ignorou o fato e suas repercussões’.

Olhando por cima

Os ‘grandes’ jornais do Sudeste trataram o caso com um ligeiro ar de superioridade, preferindo ironizar e tripudiar sobre o erro cometido pela imprensa cearense, abstraindo-se da discussão sobre os procedimentos jornalísticos ou sobre a função da arte. Tais jornais – O Globo, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, para ficar só nesses exemplos – não se deram nem mesmo ao trabalho de consultar editores ou repórteres do O Povo ou do Diário do Nordeste para redigir notícias sobre o assunto. Isto é, cometeram o mesmo pecado apontado nos outros: a falta de verificação, de ‘checagem’, para usar o jargão das redações, desconsiderando a necessidade de ‘ouvir o outro lado’ – medida inscrita em todos os códigos de ética que regem o ofício dos jornalistas e das empresas de comunicação.

Tais deslizes não se circunscrevem à imprensa nordestina. O caso clássico, mas não único, das trapalhadas jornalísticas, é o do ‘boimate’, um suposto cruzamento transgênico do boi com tomate, experiência que permitiria ‘sonhar com um tomateiro do qual já se colha algo parecido com um filé ao molho de tomate’, segundo noticiou a revista Veja em sua edição de 27/4/1983, reproduzindo uma brincadeira tradicional de 1º Abril da revista inglesa New Science. Falamos de casos cômicos, sem maiores conseqüências. Mas o que dizer de erros graves e letais, como o do caso da Escola de Base (em São Paulo) ou o fato de o New York Times ter sustentado a versão do presidente americano George W. Bush de que haveria armas de destruição em massa no Iraque para justificar a invasão ao país?

Dragão

Se os jornais erraram, também não se pode absolver a direção do Museu de Arte Contemporânea, cujo diretor é Ricardo Resende, por ter atestado informações inverídicas para dar ares de veracidade à invenção perpetrada por Yuri Firmeza. Resende se defende dizendo dirigir um museu de arte contemporânea, que ‘tem de estar aberto à experimentação artística’, não podendo nele existir a idéia de ‘censura ou limitação’. Ok, mas é parte indissociável, tradicional e histórica do fazer jornalístico, desenvolver relações de confiança com determinadas fontes – e disso elas têm consciência. Nesse equilíbrio se sustenta boa parte da produção jornalística – e assim é em todos os jornais do mundo. De forma planejada, o diretor do museu rompeu o delicado liame, induzindo os jornais ao erro.

Resende não deixa, porém, de elogiar a maneira como O Povo, conduziu a questão, dando fluência à polêmica: ‘Foi uma postura corretíssima e muito madura, permitindo conversar, levando aos leitores a discussão sobre a arte contemporânea’.’