Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Preconceito, discriminação e ressurreição do negro no Brasil

I

No ensaio filosófico intitulado A ressurreição do Jesus judeu, seguindo caminho trilhado por Pierre Nora e seus ‘lugares da memória’ (Lieux de mémoire), Agnes Heller retira de tema recentemente em voga com a descoberta de documentos históricos sobre a vida de Jesus inspiração para avaliar a situação espiritual de nosso tempo. Conclui que poderia ser a de um novo helenismo, agora de confraternização entre as grandes religiões monoteístas. Para esse espírito, inspira-se no diálogo que havia entre os grandes filósofos cristãos, muçulmanos e judeus nos séculos 12 e 13, que liam uns aos outros com capacidade de admirar-se com a verdade do outro, sem que isso signifique relativizar a verdade própria. Essa capacidade pode ser atualizada num verdadeiro Ecumenismo, que não significa Simbiose (Agnes Heller, Die Auferstehung des jüdischen Jesus. Tradução do húngaro por Christina Kunze. Berlim, Viena: Philo, 2002. 118 pp). Lidando com identidades coletivas e com o modo como elas se constroem a partir de processos seletivos de Lembrar e Esquecer, aponta a autora como a Cristologia foi quase completamente esquecendo não só a origem mas o próprio judaísmo de Jesus. O sentido do Lembrar opera aqui como uma espécie de ‘tratamento’ dos traumas – sendo o antijudaísmo, que não é idêntico ao anti-semitismo, o efeito mais expressivo desses traumas – acumulados por essa memória coletiva.

Quero aproveitar sugestões desse processo de lembrar o coletivamente esquecido para discutir assunto que entrou na ordem do dia entre nós a partir de uma campanha lançada pelo Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) com apoio da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Governo Federal, em dezembro de 2004, chamada ‘Onde você guarda o seu racismo?‘. Assim como os Evangelhos – com ou sem interpolações cristológicas que apagassem o judaísmo original de Jesus – funcionaram como cânone em que inscrito o esquecimento, novas interpretações do mesmo texto são os lugares de ressurreição do que foi esquecido. Em nosso caso proponho nova interpretação de texto canônico, ainda que cultural e não religioso, em que se poderia dizer ter sido inscrito o esquecimento coletivo da raça negra no processo de consolidação da identidade nacional.

Não sendo o único, será talvez o mais importante, seja por sua monumentalidade intelectual seja pela autenticidade com que produzido. Refiro-me à Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil, trilogia de Gilberto Freyre iniciada pelo mais conhecido dos três volumes, Casa-grande & senzala, seguido de Sobrados e Mucambos e de Ordem e Progresso, este último provavelmente o menos lido, não só pela dimensão (1.114 pp. na edição de 2004 da Global, que será usada aqui para citações) como pelo título indigesto para tantos que (ainda) não nos conformamos à bandeira adotada pela República de 89 com essa ‘legenda que é uma espécie de recomendação médica’, como escreveu Cecília Meireles (citada por Valéria Lamego, A farpa na lira: Cecília Meireles na Revolução de 30. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1996. pp. 115 e 193).

Espírito ecumênico

O cânone do esquecimento pode ser a semente da ressurreição. Leio Gilberto Freyre evidentemente por força de questões políticas que entraram na ordem do dia, em especial aqui a dimensão preocupante que vem tomando entre nós a cota racial na Universidade. Tem-se repetido à exaustão o jargão da ‘visibilidade’ como medida de combate à discriminação racial, varrida para baixo do tapete pela ‘ideologia da democracia étnica’ (tantas vezes e em algumas de modo tão aleatório que se poderia adivinhar não ter sido lido o cânone criticado) que ler Gilberto Freyre hoje soa quase como subversivo. É como se fosse politicamente incorreto ou perigoso mencionar o nome do pai desse ‘racismo à brasileira’, é como se temessem as políticas de identidade que novas gerações se contaminem dessa doença. Como certa vez se disse em relação a Carl Schmitt, ler os autores perigosos na política é com certeza terapia mais segura contra os perigos que ignorá-los ou temer ser por eles influenciado.

Ao contrário do dogma e das palavras de ordem dos movimentos sociais (e são movimentos precisamente porque se consolidam em torno a grandes palavras de ordem) grandes obras culturais permitem a ressurreição do que através delas foi esquecido porque registram – de modo às vezes claro e lúcido, às vezes deturpado pela lente da ideologia – a história do que foi esquecido. No caso do negro no Brasil, todo o processo de esquecimento coletivo pode ser lido na obra de Freyre, processo que tem um marco decisivo na recém feita República de 89, quando o Governo Provisório cuida de mandar queimar todos os arquivos da escravidão negra no Brasil, por aviso ministerial originário do Ministério da Fazenda, com data de 13 de maio de 1891, depois firmado pelo conselheiro Rui Barbosa, conduta tida por Gilberto Freyre como desses ‘autos-de-fé republicanos’ (C&S, p.384, cito Casa-grande & senzala a partir da 47ª edição, pela Editora Global em 2003. 719pp).

O ânimo dessa nossa ressurreição do coletivamente esquecido será o espírito ecumênico de que fala Agnes Heller. A postura reflexiva aqui buscada não é de tolerância passiva, mas a da ‘tolerância ativa’ que acompanha a verdadeira postura ecumênica (Die Auferstehung ….p.111). Sendo necessário afirma-se como advertência, se um caminho de ressurreição eventualmente é apresentado como panacéia, única ou final solução. A advertência pode ser recebida como veto, que também é, mas pode ser recebida com idêntico espírito ecumênico, como sugestão a que se use aquela imaginação radical de que falara Castoriadis, para que se inventem saídas novas, reinventem-se meios alternativos de alcançar o mesmo fim.

Igualdade, um instrumento

A principal advertência – antecipando um pouco o assunto – vai no sentido de que a legítima e necessária ressurreição social do negro, cujo esquecimento coletivo constitui o grande trauma de infância da consolidação da identidade nacional brasileira, não se converta ela mesma numa patologia de feitio narcisista, já presente em algumas vertentes multiculturalistas que fazem apologia de histórias compensatórias cujo objetivo seja apenas o de reinventar a história para promoção da ‘auto-estima’ dos oprimidos, caminho talvez mais seguro para a criação – agora nem mais de ideologias, que essas sempre têm conteúdos de verdade – mas de falsidades, ilusões e propaganda. Um chauvinismo étnico que seria remédio – amargo – contra a doença do nacionalismo forjado sobre a base do esquecimento da raça.

O ânimo dessa ressurreição também pode ser concebido com espírito terapêutico. O universo da discriminação social é um mundo que pode ser comparado ao inconsciente individual. Qualquer intervenção terapêutica nesse subterrâneo requer cuidado, e o primeiro deles é sabermos que não existe apenas um tratamento mas vários. Tal como na medicina, alguns optam pelo eletrochoque, outros por terapia mais lenta que constrói tijolo por tijolo a sociedade nova sem cultivar células cancerígenas. Isso em política quase atende pelo nome da velha disjuntiva reforma x revolução. Nosso ponto de vista é terapêutico, analítico, reformista. É paciente. Choques ou revoluções ainda hoje se apresentam com a sedução de hiper-eficácia, mas podem revelar-se não só inócuos como destrutivos das poucas defesas do organismo contra a proliferação de células cancerígenas (as que fazem a discriminação, já ruim, tornar-se ódio social, um passo sempre pior).

Quem se interessa por remédios sociais que atenuem o emergir violento desse subterrâneo social (e a analogia com o inconsciente individual conscientemente assume a possibilidade de que esse subterrâneo social violento também seja indestrutível) se interessa por medidas terapêuticas que preferencialmente atenuem os sofrimentos sociais sem destruição das fracas imunidades: acautelando-se contra eventuais ‘ricochetes’ discriminatórios. Nem toda discriminação social é infundada: igualdade, em realidade, é dos mais problemáticos conceitos políticos, e deve-se sempre lembrar que ela é valor instrumental de realização dos valores-fim da modernidade, de vida e liberdade, e não valor final que os possa suprimir sem mais.

Cânone em exame

Poucos temas serão mais complexos e intrincados na política de hoje que a discussão da integração do negro em sociedade ou – para dizê-lo no jargão de hoje, da ‘inclusão’ ou promoção da igualdade racial. Aqui, como nos Estados Unidos, é verdadeira a frase de Arthur Schlesinger Jr.: ‘Quase não se pode falar de raça hoje nos EUA com sinceridade’ (‘Little is harder to talk honestly about in America these days than race.’ (Arthur M. Schlesinger Jr. The disuniting of America – Reflections on a multicultural society. Knoxville: Whittle Books, 1991. p. 40). Perguntar coletivamente onde mora o preconceito, onde guardamos nosso racismo, é sempre postura saudável. Além de elogiar a campanha, quero participar dela buscando em documentos de alta cultura alguma luz sobre o tema.

Remando contra a maré, leio e penso que progrido um pouco no assunto com quem será considerado ‘pai’ do ‘racismo à brasileira’, trazendo, aqui e ali, contribuições externas que ponham em xeque o autor de Casa-grande & senzala, mas também pensando o que ele pensou, internamente à obra, outras vezes contra ela. Necessário é antes de tudo abertura de ânimo: afinal quem quer vencer o preconceito racial deve procurar saber o que pensou quem é acusado de ter atrasado tanto a ascensão da consciência negra no Brasil. Sempre é possível que surjam surpresas nesse processo.

A primeira enorme surpresa é que a pesquisa efetuada pela Fundação Perseu Abramo sobre o racismo no Brasil não tem a novidade proclamada, salvo o ter apurado o fato em estatísticas. Descobriu a Fundação que 87% dos brasileiros acreditam que existe racismo no Brasil, mas apenas 4% admitem que são racistas (cf. Mauricio Santoro, ‘Onde você guarda o seu racismo?’ em Democracia Viva, nº 24, out/dez/2004, publicação disponível no endereço eletrônico www.ibase.org.br). A mesma pesquisa fora feita pelo autor do cânone do esquecimento coletivo do negro no chamado ‘inquérito Gilberto Freyre’ que serviu de base ao autor para escrever a terceira parte de sua obra (Ordem e Progresso, com primeira edição em 1959). Por isso é preciso aprofundar um pouco onde e por que o cânone operou esse esquecimento, porque com certeza não o foi por má-fé ou desonestidade intelectual na leitura dos fatos.

‘Arianistas na prática’

O ‘racismo à brasileira’ que se afirma hoje ter sido escondido pela ideologia da democracia étnica com certeza não esteve escondido para Gilberto Freyre. Uma das perguntas formulada por Gilberto Freyre foi exatamente a mesma da campanha de hoje: onde você guarda o seu racismo? Freyre pergunta o que o entrevistado pensa da questão racial no Brasil, em tese, e depois o que ele pensa de algum filho ou filha casar-se com negro ou negra. Sobre o ‘racismo à brasileira’ um dos entrevistados por Gilberto Freyre disse que:

‘Não veria com agrado, confesso, o casamento de um filho ou filha, irmão ou irmã, com pessoa de cor. Há em mim, forças ancestrais invencíveis, que justificam essa atitude. São elas, percebo, mais instintivas do que racionais, como, em geral, soem ser aquelas forças, sedimentadas, há séculos, no subconsciente de sucessivas gerações’ (O&P/595-6).

Gilberto Freyre generaliza a partir de seu inquérito a conclusão de que os brasileiros somos ‘igualitários, em teoria; arianistas, na prática’ (O&P/604). Se não está no desconhecimento da realidade da discriminação racial, temos de buscar adiante o cerne da divergência. Nossa segunda surpresa será descobrir que não só na leitura dos fatos, como também no conceito de democracia étnica – porém neste sob a condição de reinterpretarmos o conceito de Gilberto Freyre contra ele mesmo, como utopia por fazer e não como fato histórico cumprido – a divergência do movimento negro de hoje com o autor do cânone do esquecimento coletivo do negro não será tão grande como parece. Antes, porém, será conveniente discutir um pouco mais sobre preconceito, discriminação e ideologia, já que a principal acusação contra o cânone é de representar uma poderosa ideologia que não permitiu a tomada de consciência, de parte dos negros, da identidade racial, e de parte dos brancos de seu próprio preconceito.

II

Preconceito, discriminação e ideologia

A primeira medida terapêutica para tratar socialmente do preconceito e da discriminação será modificar a pergunta formulada na campanha, do ‘você’ para o ‘nós’ inclusivo. Onde nós guardamos nosso racismo? A pergunta admite desde logo que somos um país onde existe discriminação racial e por via de conseqüência somos todos, em maior ou menor grau, racialmente preconceituosos. A segunda medida será distinguir conceitualmente (com conseqüências no plano prático) preconceito, discriminação e ideologia, que vêm sendo freqüentemente misturados.

Preconceito não é o mesmo que discriminação. Aquele é subjetivo, ainda que existam preconceitos sociais, porque cada um pode adotá-los ou não. A discriminação é preconceito objetivado em ações, ao passo que o ódio é discriminação – elevada à segunda potência – convertendo-se em idéia, idéia que anima movimentos radicais de exclusão do outro. O preconceito pode ser mais ou menos perigoso, mais ou menos inofensivo, pode prejudicar por vezes apenas a pessoa preconceituosa, que diminui o horizonte de seus próprios envolvimentos e empobrece seu mundo social e emocional. O preconceito está enraizado em nosso subterrâneo individual, ao passo que a discriminação e o ódio estão enraizados no subterrâneo social, coletivo.

Uma campanha contra o racismo que faça emergir o preconceito ao plano da consciência social, para que a reflexão pública guarde o preconceito (esse algo esquecido coletivamente) em qualquer lugar menos perigoso do que o inconsciente individual e social, antes que ele se incorpore ou siga incorporando-se em ações (isto é, antes que ele se converta em discriminação) é terapia social construtiva e libertadora.

A identidade nacional

Agnes Heller já distinguia em estudo dos anos 70, sob o influxo do marxismo, o sistema de preconceitos da ‘falsa consciência’ em que se expressam ideologias. Preconceito e ideologia também não são a mesma coisa. Segundo Heller o preconceito é uma categoria do plano cotidiano que implica necessariamente ultra-generalizações. Pertencendo ao plano cotidiano, está imbricado em cargas afetivas. ‘O afeto do preconceito é a fé’ – o que o distingue de outras generalizações em que o afeto predominante é a confiança (confira em Agnes Heller, O cotidiano e a história. Tradução de Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho a partir de texto em alemão Alltag und Geschichte (1970). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. pp. 43-63). A ideologia ou falsa consciência:

‘está tão permeada quanto o próprio sistema de preconceitos por uma ultrageneralização de conteúdo marcadamente emocional. (…mas) a ideologia não tem caráter de preconceito, por mais simplista, tendencioso e deformador que seja o sistema intelectual no qual se expressa. O ato de assumir uma ideologia é habitualmente algo bastante difícil para o indivíduo, porque a ideologia não faz apelo ao particular-individual e freqüentemente exige uma força moral realmente extraordinária, assim como muita iniciativa individual’ (p. 52).

O preconceito relaciona-se à particularidade, seu afeto é a fé, e por isso ele não conhece meios-termos: seus afetos são sempre extremados no par amor-ódio. A ideologia refere-se à universalidade, e por isso quase sempre será a forma ideológica de expressão de um humanismo. As ideologias nacionalistas funcionam em todo lugar com um aspecto positivo de integração, ainda que necessariamente operem a partir de um sistema de preconceitos sociais. Mas a construção das ideologias não se situa no plano cotidiano, e por isso – aqui o aparente paradoxo – a sua construção é feita de modo muito menos preconceituoso do que se imagina. Disso resulta que as ideologias – e Marx já via isso – possuem conteúdos de verdade que estão misturados a conteúdos de falsidade. Nosso racismo, já temos uma ligeira indicação de que foi guardado no próprio cânone do esquecimento coletivo. Nesse sentido, e apenas nesse, a consolidação da identidade nacional operou à base de um sistema de preconceitos arianistas.

Múltiplas identidades

Não é acidental que a ideologia da democracia étnica brasileira surja ao mesmo tempo em que surge a necessidade de consolidação da identidade nacional. Gilberto Freyre aponta que a República foi arianista, contra o excesso de ‘democratização racial’ do Império. Segundo Agnes Heller, é muito freqüente que sistemas de preconceitos sejam socialmente fortes em momentos de fraca coesão, e o momento de passagem da Monarquia para a República foi um desses momentos. Ainda que se reconheça ser praticamente impossível a eliminação do preconceito, é possível socialmente ‘eliminar a organização dos preconceitos em sistema, sua rigidez e – o que é mais essencial – a discriminação efetivada pelos preconceitos’ (Heller, O cotidiano … p. 59).

Isso significa que passados mais de cem anos do momento histórico que consolidou, para bem ou para mal, uma identidade nacional (ainda que ilusória, como uma raça no planeta que seria simpática, cordial e confraternizante, não se pode negar que essa é uma identidade nacional), se essa coesão já não está em aberto risco de fragmentação social, então não haveria mais razão para seguir identificando a função ideológica positiva da ideologia (a consolidação da identidade e integração nacional) com o seu lado negativo de sistema de preconceito racial disfarçado, o chamado ‘racismo à brasileira’. Disso decorre que talvez já possamos socialmente nos libertar do ‘racismo à brasileira’ sem abandonar nossa identidade nacional.

Outra conseqüência é que a ressurreição do negro no Brasil pode ocorrer num cenário liberal em que múltiplas identidades sejam admitidas, em que não haja a super-imposição de uma identidade (étnica) em prejuízo de uma outra identidade (nacional), como se a superação da ideologia só pudesse dar-se de forma revanchista e rancorosa contra a identidade nacional. Até porque esta última não é mal em si a combater, ela ainda é fermento de coesão social, de fortalecimento de uma moldura dentro da qual múltiplas identidades também sejam possíveis.

III

Ilustração e romantismo

A ressurreição do negro no Brasil insere-se num movimento global de retorno do socialmente reprimido pelo universalismo moderno. Nos Estados Unidos, abandona-se a tradicional construção dos ‘muitos em um’ que fundamentou semelhante ideologia de invenção da ‘raça americana’ como resultado do caldeirão de etnias que se fundem em uma nova. Em lugar do ‘melting pot’ proclama-se a ‘salada’ (o que está bem descrito no libreto de Schlesinger Jr., já citado). Essa substituição não pode, porém, ser abraçada de modo absoluto, porque por mais refrescante que seja a idéia de salada, em que todos os alimentos convivem em harmonia sem necessariamente misturarem-se, talvez na metáfora se devesse dizer que civilizadamente come-se a salada num prato, que ordena o alimento, e não sobre a mesa ou sobre o chão. Esse prato é a moldura civilizatória, e essa moldura social só pode ser relativamente íntegra se for construída sobre a herança espiritual da Ilustração despida da pressão assimilatória que a tornou tirânico caldeirão de cozimento do pirão de ontem.

As políticas de identidade, e com elas as chamadas ações afirmativas, aparecem como insurgência romântica contra o ‘excesso de Ilustração’, excesso universalista que acreditou construir a tricolor revolucionária para todos e terminou se esquecendo das raças e nações oprimidas, ou periféricas, ou minoritárias (no sentido do poder, ainda que quase sempre numericamente majoritárias). Nesse sentido, o marxismo é herdeiro do excesso universalista ou radicalismo universalista que também desprezou as diferenças, entre elas as etnias, grupos nacionais, em prol da ‘Internacional dos homens’ (a diferença de gênero não entrava no universo rigorosamente marxista, Marx mesmo nutria preconceitos contra o feminismo de Engels, e seus relacionamentos plebeus).

Levanta-se a política da diferença como bandeira pós-moderna, porém, esquecendo-se de que tanto Ilustração como Romantismo são produtos da mesma modernidade, que foi tão etnocêntrica quanto anti-etnocêntrica, que tanto forjou sua auto-imagem como superioridade civilizada diante de nós, primitivos, quanto considerou a si mesma a escória decadente do mundo diante da nossa natureza desconhecida de ‘bons selvagens’. O que não faz sentido é ser contra todo o novo romantismo ou contra toda a herança ilustrada porque ambas as tendências levadas a extremos não terminam muito bem para todos.

O sentido da ideologia

Talvez seja mais razoável admitir que os direitos das diferenças ressuscitem na moldura de algum modo universalista dos direitos humanos. Para usarmos do jargão atual, o universalismo ilustrado seria culpado pela ‘invisibilidade’ dos esquecidos coletivamente, ao passo que o novo romantismo reclama essa esquecida presença como a sua ‘visibilidade’. Mas ambos são movimentos humanistas, porque a busca pela visibilidade não é senão ‘instrumental’ para a utopia da verdadeira invisibilidade, que é a capacidade de parecer natural diante da diferença dos outros, e não ser por isso negativamente discriminado, mas positivamente reconhecido como algo atraente e rico.

Agora, porém, a harmonização entre esses contrários terá de ocorrer em cada contexto em que o conflito se apresenta, e nunca de modo teórico, porque não há mais nenhuma lógica que os harmonize. Seguimos a concepção de Agnes Heller de que na modernidade a conciliação entre universalismo e diferença, ‘facilmente reconciliáveis no papel’ (Agnes Heller, A Theory of Modernity, New York: Blackwell, 1999. 313pp. Aqui p. 139), exige na prática uma escolha individual/social que é, como toda escolha, um ‘salto’, pelo qual cada um deve ser responsável. Talvez seja mais autêntico que deixemos de apresentar soluções teóricas do tipo ‘está provado que o universalismo falhou e tornou os oprimidos invisíveis, está na hora de dar-lhes visibilidade e poder’ – versões mais ou menos elaboradas do slogan de luta nas universidades norte-americanas: ‘hei, hei, ho, ho, Western culture’s got to go‘ (em Stanford, p. ex. cf. Schlesinger Jr., op. cit. P. 72), ou simplesmente ‘abaixo o Ocidente’.

Tomando novamente o caso de Gilberto Freyre, considerado como autor que proporcionou às classes dominantes arsenal de dominação mais cruel do que a própria violência racial, porque manteria o dominado para sempre em servidão voluntária, o que podemos fazer é rever o próprio conceito de ideologia. O sentido da ideologia é diferente do de preconceito. Poucas obras são autênticas se os autores não forem relativamente isentos de preconceitos sociais vigentes ao tempo em que criadas, mas o sistema de preconceitos é sempre o horizonte histórico em que toda obra se insere. Gilberto Freyre representa na memória brasileira nosso momento de Ilustração.

Além da palavra de ordem

Desafiando os códigos ideológicos de hoje, que verão eurocentrismo alienado na comparação, eu diria que o autor de Casa-grande & senzala é nosso Montesquieu. Também contra a Ilustração revoltaram-se românticos: ela foi universal demais, branca demais, anônima, invisível. Só não nos ocorre dizer que só restou falsa consciência na Ilustração, porque um núcleo de humanidade está lá para ser separado de sua casca histórica e do sistema de preconceitos de seu tempo.

Ainda aprendemos com Do Espírito das Leis o que seja um sentimento democrático, mesmo achando curioso, ou indignando-nos se for o caso com o autor, que o grande Montesquieu tenha podido acreditar que Deus não poria uma alma num corpo todo preto.

Se juntarmos no mesmo caldo da ideologia como embuste ou grande mentira dos dominantes panfletos políticos e obras de alta cultura, tudo acaba sendo a mesma coisa e a ‘verdade’ revelada é quase simplória: aparece a eternidade da luta de classes (agora como luta racial) e envolve-se em aura de mistério o conteúdo hegemônico dos dominantes, sua própria identidade. Termina-se por alcançar pouca ou nenhuma compreensão histórica e social, mas excelentes frases de efeito e jargões para movimentos de identidade tomarem como bandeiras segregacionistas. Normalmente a política concreta é feita em torno a slogans e palavras de ordem, o que não se espera é que a discussão pública de questões políticas toda ela se resuma a palavras de ordem, como tem ocorrido com a questão racial. A palavra de ordem da ‘visibilidade’, por exemplo, precisa ser bem compreendida e discutida, porque a ‘visibilidade inescapável’ é a própria discriminação.

IV

Visibilidade/Invisibilidade

Quem sofre a discriminação por conta de uma qualidade da qual não pode escapar recebe-a como um ‘estigma’. A estratégia da ação afirmativa é realçar o estigma e afirmá-lo agora como ‘auto-estima e orgulho étnico’. Para isso, prega que a distribuição de oportunidades deve ser reforçada para alcançar resultados igualitários que reforcem essa auto-estima depreciada pelo estigma. O que em primeiro lugar aparece como problema é a superfetação dos ‘papéis sociais’, tradicionalmente envolvidos com o sistema de preconceitos sociais. As identidades étnicas passam a ser o primordial centro de identificação da pessoa, e secundária ou sem nenhum valor a identidade nacional ou quaisquer outras. A lógica é tentadora como toda lógica excessivamente fácil. Ocorre que discriminação social é um negócio ingrato e não obedece a lógicas fáceis como essa aritmética dos ’25 anos’ de cota universitária para criação de uma elite negra.

A Ilustração ergueu o Estado moderno sobre a invisibilidade do fato nascimento. Mais do que isso, a invisibilidade combatia a ‘visibilidade’ absolutista que era a marca registrada da vida na Corte. Como mostra Jacques Revel, era indispensável à ‘política do despotismo’ concentrar num lugar, a Corte, um largo número de pessoas que gravitariam em torno ao poder absoluto. (Jacque Revel, The Court, capítulo 3 de versão em inglês de Lieux de Mémoire. Dirigido por Pierre Nora. Realms of Memory – Tne construction of the French past. II – Traditions. Trad. Arthur Goldhammer. New York: Columbia Um. Press, 1997. p.111).

A ‘visibilidade romântica’ da ressurreição da raça no cenário político pós-moderno só pode ser compreendida como instrumento para a busca da ‘invisibilidade social’, que é o direito de não ser julgado pela cor ou pela qualidade que causa o estigma. Esse direito – que é a utopia de todo movimento contra a discriminação social – sempre foi buscado pelas vítimas da discriminação. O que varia (que se chama hoje de ‘visibilidade’) é o modo pelo qual ele é buscado. Afirma-se a raça, dizendo que ela é diferença que não desapareceu na ‘simbiose’ das formações nacionais e segue sendo um fator de preconceito e discriminação social, de tal modo que a diferença, tornando-se visível, produza o seu exato contrário, que o portador da diferença seja enfim realmente – e não ilusoriamente – invisível.

À espera do favor

Todos os movimentos insurgentes sempre se levantaram contra as ilusões dos progressos sociais supostamente conquistados para sempre. Assim foi quando os proletários levantaram-se contra a ilusão burguesa de ter realizado – para sempre – o reino da razão, dizendo que o que realizavam sem o saberem era o reino de domínio burguês. A política de identidade, que surge com um forte apelo à de-canonização do patrimônio cultural dos ‘dominantes’, na realidade não de-canoniza coisa alguma, ela busca, como todo movimento de afirmação política, a troca do cânone estabelecido e tradicional pelo novo cânone. Ela não aposta no vazio de poder e por isso funciona quase como aquele ‘sobe-desce’ de algumas colunas sociais.

Sobem Malcolm X e Frantz Fanon. Desce Martin Luther King Jr., cuja luta pela causa dos negros discordava do jargão da ‘africanidade’ (dizia: ‘O negro é um americano, não sabemos nada da África’, cf. Schlesinger Jr. op. Cit. P. 46) e afirmava o direito à invisibilidade, quando dizia ‘Sonho com o dia em que meus quatro filhos pequenos não serão mais julgados pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo do seu caráter’ (citado por Richard Bernstein, Dictatorship of Virtue. How the battle over multiculturalism is reshaping our schools, our country, our lives. New York: Vintage, 1995. 379 pp. p. 58).

No que consiste a discriminação social é essa inescapável ‘visibilidade’ que funciona como a permanente exposição ao olhar (e à reprovação) do outro, como se quem pertence ao grupo discriminado passasse a vida numa corte absolutista, à espera do favor do rei. É essa inescapável visibilidade, a dor funda da discriminação, que aparece de modo poético numa parábola de Lima Barreto intitulada ‘Dentes negros, cabelos azuis’, sobre a metáfora do ser estranho, de cabelos azuis, o ‘suplício da minha vida’, e dentes negros.

O passo em falso

‘ – Se, em dia claro e azulado (…) vou por entre as árvores, crendo-me só, e feliz, o miserável rafeiro que passa, deixa a inexorável busca do osso descarnado, para colher as caretas do símio em que me desdobro e ri-se de mim, meio espantado, mas satisfeito. Então, como por encanto o caminho se povoa. Há por toda a parte zumbidos, alaridos, risotas. Do farfalho das árvores ouço: Olá, tingiste a cabeça no céu; mas onde enlameaste a boca? (….)

‘Eu devia fugir, desaparecer, pois mal ando passos, mal me esgueiro numa travessa, das gelosias, dos mendigos, dos cocheiros, da gente mais vil e da mais alta, só uma coisa ouço: lá vai o homem de cabelos azuis, o homem de dentes negros… (…) Se um amigo quer referir-se a mim em conversa de outros, diz: aquele, aquele dos dentes negros…’ (Lima Barreto, ‘Dentes negros, cabelos azuis’, em Contos, edição de José Emilio Major Neto, São Paulo: Landy, 2000. pp 106-107).

Visibilidade é isso, ter de sempre responder à pergunta, ou à troça, sobre origem ou qualidade ‘socialmente infamante’. Invisibilidade, todos os que sofrem a discriminação sempre souberam, é proteção. O que ela não pode ser é ficção, e esse é o passo em falso das grandes ideologias. Como o da ideologia nacional da democracia étnica. Aqui nos aproximamos um pouco mais do conceito, que pode ser – e muito bem – discutido com Gilberto Freyre, ainda que mediante alguns ajustes, contra ele mesmo.

V

A democracia étnica: do mito do já feito à utopia do por fazer

Ainda que seja mesmo uma ‘grande ideologia’, o conceito de ideologia não será o melhor para recebermos hoje a obra de Gilberto Freyre. Ele é um conceito pobre naquilo que omite. O dedo em riste que ‘descobre’ a mentira do outro, sem dizer apresenta-se como portador da ‘Verdade’. Não é à-toa que os movimentos sociais hoje – que seriam pós-ilustrados – incorporam as piores e não as melhores heranças da Ilustração, e a idéia de posse da Verdade pela vanguarda do Proletariado é um desenvolvimento dessa pior herança. O abuso – sem todo o arsenal compreensivo do marxismo – do conceito de ideologia termina por idolatrar movimentos sociais como portadores da nova ‘Verdade’, que no modelo primitivo competia à vanguarda comunista.

Gilberto Freyre é um caso curioso de reacionário na política e vanguarda na compreensão da sociedade. O que ele fazia, registrar símbolos e resíduos mnemônicos da sociedade brasileira em jornais (anúncios do tipo classificados de hoje), tipos de arquitetura e outras recordações, é o que hoje Pierre Nora empreende para ‘reconstrução do passado francês’. Em Nora, como já era para Gilberto Freyre, o conceito de ideologia como falsa consciência é lateral, porque ninguém mais pode com autenticidade contrapor à falsidade de consciência inscrita nesses documentos de memória coletiva uma inteira ‘Verdade’, ou é pelo menos substituído com vantagens pelo conceito de ‘lugar de memória’ (lieu de mémoire).

Dentre os inúmeros temas que poderiam ser ‘interpretados’ no Brasil a partir de Gilberto Freyre um deles é com certeza o da democracia racial, tida como sua ‘grande mentira’. A crítica que sempre se fez a Gilberto Freyre, de não concluir suas obras, será seu maior mérito, porque deixa a obra em aberto para que busquemos aprofundar o conceito, problematizá-lo, conversar com o autor. O que com certeza é traço das grandes obras de alta cultura, que são ‘hermeneuticamente inexauríveis’ (no dizer de Agnes Heller) ou pelo menos bastante densas em significados a ponto de permitirem leituras múltiplas e atualizações à luz de fatos e problemas novos.

Do paraíso ao antagonismo

O que é afinal a democracia étnica para Gilberto Freyre?

O conceito é desenvolvido dentro do enredo principal da ‘grande narrativa’: a história da sociedade brasileira como uma sociedade patriarcal que se desintegra.

Na sociedade patriarcal havia um antagonismo social enorme, mas espaços sociais de ‘confraternização’ que formavam um modelo de convivência humano – para o autor de Casa-grande & senzala, ‘uma quase maravilha de acomodação: do escravo ao senhor, do preto ao branco, do filho ao pai, da mulher ao marido’ (Sobrados e mucambos, p. 659, texto citado a partir de edição intitulada Intérpretes do Brasil, 2ª ed., 2002, pela Nova Aguilar). ‘Dentro deste sistema muita comunicação houve entre casas-grandes e senzalas, entre sobrados e mucambos, e não apenas separação ou diferenciação. Síntese e não apenas antítese. Complementação afetiva e não apenas diversificação economicamente antagônica’.

Não obstante venha gradativamente desaparecendo, o sistema patriarcal deixa vestígios de acomodação que caracterizam a sociedade brasileira como uma nova superfície social: ‘nova configuração de cultura, novas formas de sociedade, caraterizadas principalmente por uma convivência entre os homens de sexos, origens, idades e profissões diversas que merece o qualificativo de democrática; e pelo começo de generalização, entre eles, de um tipo de homem e de um tipo de casa, se não único – pois permanecem diferentes certos característicos regionais, de raça e de classe – muito menos diferenciado, do que outrora, em seus extremos de posição ou de situação no espaço social.’ (S&M, 683).

A linha que traça a história dos espaços de confraternização racial, no estudo de Freyre sobre a sociedade patriarcal, é claramente involutiva: do paraíso acomodatício que foi o regime patriarcal puro vão com sua desintegração surgindo espaços de antagonismo maior. É interessante como Freyre apresenta os fatos de modo relativamente livre de seu ‘conceito’ de democracia, para depois arrumá-los conforme sua tese de que a especificidade brasileira é de uma forma plástica, acomodatícia, que forjou uma nova raça a partir de diversos elementos culturais no processo de formação nacional.

Questionamento ao mestre

Vou referir, talvez com algum excesso, alguns trechos de Sobrados e Mucambos em que o processo de desfazimento do modelo patriarcal examinado em Casa-grande e senzala é apresentado já de modo comparativo. A todo instante que apresenta um fato social que leva a uma involução de confraternização, Freyre impõe uma ‘fórmula’ que atenua o fato. A própria construção sintática apresentará sempre uma conjunção adversativa que funciona como o elemento positivo que resta da perda de um espaço social de confraternização. Mas não será difícil separar os fatos e os juízos do autor, situados após essas conjunções:

‘Com a urbanização do País, ganharam tais antagonismos uma intensidade nova; o equilíbrio entre brancos de sobrado e pretos, caboclos e pardos livres dos mucambos não seria o mesmo que entre os brancos das velhas casas-grandes e os negros das senzalas. (MAS) É verdade que ao mesmo tempo que se acentuavam os antagonismos, tornavam-se maiores as oportunidades de ascensão social, nas cidades, para os escravos e para os filhos de escravos, que fossem indivíduos dotados de aptidão artística ou intelectual extraordinária ou de qualidades especiais de atração sexual. E a miscigenação, tão grande nas cidades como nas fazendas, amaciou, a seu modo, antagonismos entre os extremos.’ (S&M,857, o ‘mas’ em maiúscula não é do original).

‘Os donos de alguns sobrados viram-se mesmo obrigados a colocar semicírculos de ferro com espigões, em torno dos umbrais de portões, espigões que completavam os muros ouriçados de cacos de vidro como defesa da casa nobre contra a plebe da rua, da habitação patriarcal contra os desrespeitos ou os rancores do indivíduo sem eira nem beira.

O mulato livre de cidade, geralmente filho de imigrante português ou de imigrante italiano, crescia nesse ambiente de maior antagonismo entre mucambo e casebre de palha e sobrado grande, entre cortiço e casa assobradada de chácara – ambiente que mal chegava a conhecer, na meninice, o mulato de engenho ou de fazenda, tão beneficiado, quando no serviço doméstico, por uma mais doce confraternização entre os dois extremos: os senhores e os escravos.’ (S&M, 1247)

‘De modo que foi ao acentuar-se a predominância, na paisagem brasileira, do contraste entre sobrados com mucambos, que se acentuou, entre nós, a presença de negros e pardos como inimigos de brancos.’ (S&M, 1247)

‘As cidades industrializadas (…) passaram a conservar, dentro delas, no alto dos morros, à sombra dos seus bueiros de fábricas e usinas, mucambarias e favelas profundamente diferenciadas da parte nobre da população. Uma espécie de inimigos à vista: de mouros sempre na costa. Ou nos morros, como no Rio de Janeiro, ou nos mangues, como no Recife. Populações diferenciadas de tal modo da dominante pela diversidade de condições materiais de vida – coincidindo essas condições pelas conseqüências da escravidão, com a diversidade de cor ou de raça – que a configuração de grupo, e não de raça, é que provisoriamente, pelo menos, se mostra mais viva entre os brasileiros: os da área mais europeizada com relação aos das manchas, não tanto de sangue, como de vida mais africana ou, culturalmente, mais elementar. Os da classe explorada com relação aos de classe – e não rigorosamente raça – exploradora.

Mesmo, PORÉM, a essa fase da maior diferenciação social entre sobrados e mucambos, correspondente à maior desintegração do sistema patriarcal entre nós, não têm faltado elementos ou meios de intercomunicação entre os extremos sociais ou de cultura. De modo que os antagonismos que não foram nunca absolutos, não se tornaram absolutos depois daquela desintegração. E um dos elementos mais poderosos de intercomunicação, pelo seu dinamismo de raça e, principalmente, de cultura, tem sido, nessa fase difícil, o mulato.’ (S&M, 1293, grifei com maiúscula o ‘porém’)

De um sistema de acomodação e confraternização afetiva perfeito que se vai desintegrando, como poderia resultar uma sociedade de democracia étnica se a democracia étnica precisa para existir desses espaços sociais de confraternização? Embora saibamos a resposta dada por Freyre a essa pergunta, que hoje é apenas logicamente aceitável (será o ‘enigma’ de Gilberto Freyre, como veremos adiante), ainda insistiríamos no questionamento ao mestre de Casa-grande & senzala, desde que assumimos um ponto de vista ecumênico que não signifique simbiose, e que a democracia étnica desenhada por Freyre é utopia por fazer, e não fato realizado.

Do bonde ao barão

Goste-se ou não do sistema patriarcal, tomemos por assentado que ele representa um sistema acomodatício. Qual seria a condição para que sua desintegração se transformasse em algo positivo para a formação de uma sociedade etnicamente democrática? Essa é a resposta apenas intuída ao longo da trilogia, mas claramente ‘concluída’ na Interpretação do Brasil, edição de conferências de Gilberto Freyre nos Estados Unidos, nos anos 40 do século 20. O negro, enquanto tal, tinha de desaparecer de cena, como também o ameríndio, para que surgisse a ‘raça’ brasileira, que retirasse das culturas (ou raças) originárias o seu caldo de simpatia confraternizante, criando essa raça nova, mais dionisíaca que apolínea, que seria por isso naturalmente democrática.

Agora, se abrirmos mão de conceituar democracia como um fato da ‘natureza’, para ver nela uma construção artificial sempre difícil e nunca assegurada de fato, os problemas não deixam de aparecer. O sistema de perfeição acomodatícia vai mais e mais sumindo, para chegar à República com apenas um ‘lugar’ de confraternização social: o bonde.

‘O bonde foi no Brasil da época estudada no ensaio que se segue uma escola de tolerância: tolerância de idéias e tolerância social. E o conde Charles d’Ursel, no seu Sud Amérique (Paris, 1879) antecipou-se ao português Chagas e ao brasileiro Bilac – outro que fez a apologia do bonde – em destacar ‘l’egalité la plus démocratique’ que vinha sendo favorecida no Brasil por esse tipo de veículo.’ (O&P/147).

Agora que os espaços sociais de confraternização desaparecem (fácil é imaginar que uma vez que entrasse em circulação o automóvel, veículo privatizável, logo se fecharia esse universo de confraternização do bonde, deixado o transporte público aos socialmente inferiores) é mais problemática a formação de uma identidade nacional sobre bases conscientemente arianistas, para ‘os olhos do estrangeiro’ verem que o Brasil possuía elites compatíveis com a dignidade da dinastia deposta. Exemplifica esse arianismo a política exterior/educacional, fundidas na mesma figura do barão do Rio Branco (‘homem atento a pormenores de ordem eugênica, estática e étnica’ (O&P, 585)

‘Do barão poderia escrever-se hoje, um tanto à maneira do que Shakespeare escreveu de César e do seu gosto ou afã de cercar-se de homens gordos, que procurou, quando senhor quase absoluto do Itamaraty, cercar-se de homens não só inteligentes, cultos e políticos como altos, belos e eugênicos: homens que, completados por esposas formosas, elegantes e bem-vestidas, dessem ao estrangeiro a idéia de ser o Brasil – pelo menos sua elite – país de gente sã e bem-conformada. Daí seu particular apreço pelos Joaquim Nabuco, pelos Graça Aranha (…) Os feios, os franzinos, os cacogênicos, se dependesse dele, não ocupariam sequer postos que obrigassem o Itamaraty a convidá-los a seus jantares ou banquetes; muito menos posições de relevo na representação do Brasil na Europa e nos Estados Unidos. Sua aversão aos cacogênicos estendia-se, de algum modo, a brasileiros de cor. Só quando de valor excepcional – o caso do cacogênico Santos Dumont – pareciam-lhe os indivíduos feios, pálidos, franzinos, utilizáveis ou toleráveis por um sistema mais que diplomático, como o Itamaraty, de organização e de definição de valores superiormente nacionais: sistema a que o barão comunicou sua imagem de superprotetor de uma pátria a seu ver necessitada do respeito dos europeus e dos anglo-saxões, para crescente afirmação do seu prestígio. (O&P/177)

Educandas polidas

A escola tivera no sistema patriarcal um estímulo confraternizante com o sistema de ensino dos padres, onde eram alunos ‘mamelucos, caboclos, bastardos, órfãos – dos muitos órfãos que a caridade dos religiosos recolhia ou a sabedoria do Estado português dos tempos coloniais, antecipando-se a idéias moderníssimas, distribuía entre famílias de homens de bem. Famílias a quem as Câmaras pagavam um tanto de subvenção para criar os meninos’ (S&M 789). Locais de confraternização sócio-racial, ainda que deles excluído o elemento totalmente negro, esses colégios foram formadores de alunos que seriam ‘elementos de urbanização e de universalização, num meio influenciado poderosamente pelos autocratas das casas-grandes e até dos sobrados mais patriarcais das cidades ou vilas do interior, no sentido da estagnação rural e da extrema diferenciação regional.’ (S&M, 789).

Tais colégios representavam ‘algo de sutilmente urbano, eclesiástico e universal – a Igreja, o latim, os clássicos, a Europa, o sentido de outra vida, além da dominada pelo olhar dos senhores, do alto de suas casas-grandes.’ (S&M, 790). São espaços que vão desaparecendo com a República de 89, feita mais por antigos senhores de escravos do que por aspirações populares, de modo que foi, na insuspeita expressão de Gilberto Freyre, uma ‘revolução conservadora’.

As forças republicanas que combateram a ‘Guarda Negra’ defensora do regime monárquico, Freyre as qualifica como:

‘quase uma espécie de Klu-Klux-Klan’ com o que se comprometeu, durante o movimento republicano, muito do que, como confraternização entre brancos e homens de cor, havia se conseguido durante a campanha paraguaia. (…) a Guerra do Paraguai fizera que numerosos negros, como soldados, convivessem com os brancos, não havendo hierarquia social e rígida ‘diante da morte’, e criara para negros e sobretudo mestiços bravos oportunidades novas de ‘elevação social’’ (O&P, 211).

A escola da República de 89, arianista e estimuladora de características eugênicas, era uma escola de bons modos: ‘Nos colégios elegantes para moças, vistos com particular simpatia pelo barão, desenvolveu-se um ensino tendente mais a acentuar nas educandas as graças sociais e até mundanas, o chique no vestir-se, no pentear-se, no comer, no andar, no conversar, o apuro na pronúncia do francês, que virtudes propriamente intelectuais’ (O&P, 177).

O ‘enigma’ da sobrevivência

Mas se a leitura dos fatos é honesta, o que está errado com Gilberto Freyre? Esse o ‘enigma’. O que provavelmente cause mais revolta aos negros brasileiros não será tanto o modo de Gilberto Freyre contar a história do patriarcalismo brasileiro, mas os juízos que o autor empresta a esta história. Nesse sentido é que Gilberto Freyre não faz apenas história ou ciência social, mas também filosofia. Ao contar o que passou, não se limita a dizer: isso ocorreu e ponto. Mas diz: isso ocorreu, e foi bom. Esse o toque teológico de Gilberto Freyre, como o do criador que a cada etapa de sua criação julga ‘isso bom’.

Se considerarmos a obra monumental de Gilberto Freyre quase uma grande narrativa no modelo hegeliano, poderemos compreender por que e o que nela hoje nos parece quase como uma ‘mentira’. Hegel não se limitou a descrever fatos históricos, esse palco de horrores e morticínios, mas deu a cada etapa da História a idéia de que tinha sido necessária, quase como se julgasse: isso ocorreu, e foi bom, porque afinal o que se desenrolava sem que soubéssemos era a ordem da Providência. Esse tipo de história é que o olhar pós-moderno capta como ‘grande narrativa’ e já não admite, porque instrumentaliza o passado em nome do futuro. Freyre conta a história da família patriarcal brasileira quase como história individual de um de seus prototípicos senhores.

Aliás, a certo ponto reconhece essa história como uma espécie de grande ‘romance vrai’ (romance verídico) que estende sua biografia pessoal (Introdução a Sobrados & Mucambos). Nessa história, os senhores sobrevivem, os outros já deram sua ‘contribuição’. Por isso, o ‘enigma’ de Gilberto Freyre, a sobrevivência do negro após ter encerrado sua ‘missão’ histórica na formação nacional, é semelhante ao enigma de Hegel com relação à sobrevivência dos judeus depois de cumprirem sua missão histórica universal (sobre o ‘enigma de Hegel’, baseio-me em interessante estudo de Yirmiyahu Yovel (Dark Riddle. Hegel, Nietzsche, and the Jews. Oxford: Polity Press, 1998).

O exemplo do Brasil

A comparação com Hegel é apropriada também no sentido de que não será por ter a filosofia hegeliana idéias que nossa consciência pós-moderna já não aceita que deixaremos de buscar nela – como faz Heller em sua Teoria da Modernidade – a primeira grande interpretação da modernidade. Não será porque divergimos da idéia de Gilberto Freyre de que as acomodações entre as classes e raças tenham gerado naturalmente a democracia racial que deixaremos de considerar que ele é o grande intérprete do Brasil. Intérprete que foi autêntico a ponto de vencer seus próprios preconceitos anticomunistas e antimarxistas e ver na União Soviética stalinista a realização do seu mesmo ideal: a revolução antropológica.

Não é casual que na Interpretação do Brasil encontremos uma semelhança traçada pelo próprio Gilberto Freyre com outros modelos autoritários de antropologia, como a do ‘homem novo soviético’, saudado como um tipo ‘vitorioso’ de engenharia social:

‘Outro povo de transição entre Europa e outro continente de população de cor é o russo, que revela hoje ao mundo um tipo novo, sob certos aspectos, já vitorioso, de organização social e que inclui a miscigenação, especialmente a mistura de raças conhecida por euro-asiática, entre suas soluções para os problemas sociais do homem. Em mais de um aspecto da sua situação étnica e social, o Brasil lembra a Rússia. A experiência de bicontinentalismo étnico e cultural começada há séculos em Portugal tomou nova dimensão no Brasil: três raças e três culturas se fundem em condições que, de modo geral, são socialmente democráticas, ainda que até agora permitindo apenas um tipo ainda imperfeito de democracia social; imperfeito tanto na base econômica como nas suas formas políticas de expressão. Mas com todas as suas imperfeições, de base econômica e de formas políticas de convivência democrática, o Brasil impõe-se hoje como uma comunidade cuja experiência social pode servir de exemplo ou estímulo a outras comunidades modernas’ (Gilberto Freyre, Interpretação do Brasil – Aspectos da formação social brasileira como processo de amalgamento de raças e culturas. Introdução e tradução de Olívio Montenegro. São Paulo: José Olympio, 1947. pp. 189-190).

Visita libertadora

Pode-se criticar o exagerado ufanismo (que nossa democracia será modelo para o mundo) ou a ingenuidade no elogio da vitória stalinista. Hoje sabemos que sua política foi a mesma da Coroa portuguesa na importação de negros africanos – a regra imperial romana de dividir para imperar, conforme a descreve Freyre: ‘Essa política foi não permitir que se juntasse em uma capitania número preponderante da mesma nação ou estoque’ (C&S/384).

Que Gilberto Freyre tenha visto na ‘solução’ soviética de revolução antropológica e criação do ‘homem novo’ semelhança com a criação da ‘raça’ (ou metarraça, como afirma o autor em trabalho posterior) brasileira é signo de que ele afinal era ‘filho de seu tempo’, o século 20. Hoje percebemos que o sonho sublime de uma tal ‘revolução antropológica’ é totalitário e só se realiza historicamente com traumas que não tardam em emergir como um ‘retorno do socialmente reprimido’. Contrariamente à premonição de Gilberto Freyre, nos anos 40 do século 20, de que ‘os negros estão agora desaparecendo rapidamente do Brasil, fundindo-se com os brancos‘ (Interpretação…p. 187), a raça negra não desapareceu na ‘simbiose’ da nova raça brasileira, e nem essa nova raça é antídoto natural ou eficaz contra o preconceito.

Ainda assim evidencia-se do pouco que podemos discutir e transcrever aqui que visitar a obra monumental do pai do ‘racismo à brasileira’ não contamina ninguém de racismo. Ao contrário disso, ela é libertadora e vai construindo uma base sólida para que pensemos o nosso próprio tempo e nossos dilemas, como um pós-escrito à mesma história.

VI

Pós-escrito à história da sociedade patriarcal? Ecumenismo, sim, simbiose, não.

Só não há mais quem faça sozinho – nem mesmo os ‘lugares da memória’ dirigidos por Pierre Nora para reconstrução do passado francês nos anos 90 são já obra de um único autor – um pós-escrito à trilogia dos lugares da memória de Gilberto Freyre. O autor mesmo planejara continuá-la no volume que trataria dos locais de sepultamento como locais de memória (Jazigos e covas rasas), mas talvez essa continuidade não desse conta dos dilemas de uma sociedade nacional pós-patriarcal que em linha involutiva de desaparecimento de lugares sociais de confraternização sócio-racial atinge ponto próximo ao absoluto, com a falência da escola pública de qualidade, obrigatória e sócio-racialmente misturada, que ainda existia na geração deste autor, mas não existe mais para a dos nossos filhos.

É possível que alguém já tenha especulado nesse sentido – desconheço a literatura secundária sobre o autor de Casa-grande & senzala – mas sem pretender nenhuma originalidade perguntaria qual seria o nome de um pós-escrito a essa trilogia? Seria Shopping-center e favela? É certo que a favela de morro carioca não é o mesmo lugar social do mucambo estudado por Gilberto Freyre, fato expressamente reconhecido em Sobrados e mucambos.

É certo também que essa nova imaginação social do centro de compras reproduz a idéia de que a ‘rua’ é o lugar do perigo de onde se ausenta de modo quase (e esse quase é otimista) absoluto a função social confraternizante – a mais interessante utopia de Gilberto Freyre. A praça agora é ‘de alimentação’, local de lazer a que teoricamente todos têm acesso, não fosse o fato de que tais centros de compras vão-se especializando mais e mais conforme avança a ‘invasão’ das classes perigosas, não sendo suficiente apenas a vigilância que opera com critérios discriminatórios para os que não pertençam a esse local saibam de modos sutis (e nem sempre sutis) que aquele lugar não é para eles. O shoppingcenter é a casa patriarcal pós-moderna, modelo de imaginação dos proprietários da sociedade contemporânea.

Lá fora, a favela no morro, debruçada sobre nós como ameaça, da qual temos de nos precaver com o aparato policial-militar do Estado, faz com que seja melancólico mas não absurdo que se tenha falado no Rio de Janeiro em fechar ou conter a expansão da favela com um ‘muro’. A utopia de Gilberto Freyre não deu errado porque seja impossível, ela só não estava feita como ele imaginou que estivesse. E o que era relativo vai ficando absoluto.

É importante aqui retomar a idéia de que o preconceito é categoria da vida cotidiana (não do pensamento, não da teoria e nem da práxis social) e por isso carregada de afetos de amor-ódio que não conhecem meio termo. Entre adultos vencer o preconceito é uma luta enorme, que precisa lançar mão de ‘esclarecimentos’ de ordem racional, e por isso a campanha que pergunta onde guardamos nosso racismo é tão significativa. Mas ela não pode fazer com que tenhamos muita ilusão racionalista, como tiveram alguns ilustrados que achavam que se vence o preconceito apenas com esclarecimentos de razão. Preconceitos são cultivados como afetos, e respondem com amor-ódio principalmente diante de situações de medo (a fraqueza de coesão social é uma espécie de medo coletivo). Por isso o espaço primordial de atenuação do preconceito racial é a base formadora, e não o topo universitário; a escola fundamental, e não a pós-graduação. O lugar social da educação fundamental não é menor no cultivo do preconceito.

O sonho da escola-nova, laica e universalista, a oferecer caminhos e oportunidades para todos indistintamente, funcionando também como espaço de confraternização sociorracial, que se queria realizar pela Revolução de 30, é quase mais um ‘sonho que acabou’ (no propósito generalista que adoto é suficiente referir-me a esse capítulo da história da educação no Brasil em texto já citado, de Valéria Lamego, sobre a obra jornalística engajada de Cecília Meireles na Revolução de 30).

Adereços desprezíveis

A revolução no ensino é mais uma revolução traída no rol de tantas outras com que construímos o século 20. A escola pública social e racialmente confraternizante já é desde os anos 80 do século 20 um lieu de mémoire. Se a percepção da memória coletiva é legítima como extensão da memória individual, como pensava com legitimidade Gilberto Freyre, é lícito aqui especular um pouco acerca dessa memória. Essa geração que nasce pela década de 60 ainda conheceu escolas públicas-modelo em que se fazia ‘exame de admissão’, assim como os grupos escolares de bairro onde todos naturalmente seriam matriculados. É a geração de Joaquim Benedito Barbosa Gomes, negro que chega ao Supremo Tribunal Federal pela mão de presidente da classe operária, não a do ‘príncipe-sociólogo’ de ontem.

‘Fui beneficiado por um fato que não existe mais hoje em dia: a escola pública de boa qualidade’ – depõe o hoje ministro (citação de Miriam Leitão e Débora Thomé, ‘Passar a barreira’, em jornal eletrônico Página 20, 5/5/2003: www2.uol.com.br/pagina20/5maio2003).

Mas, se vale uma adversativa, será interessante que a idéia chegou a incorporar-se de algum modo ao mesmo século 20, pelo menos até a geração que nasceu pela década de 60. Com exageros como em toda generalização, o conflito entre gerações é visível. A geração da ‘brizoleta’ – utopia universalista do primeiro Leonel Brizola – possivelmente forma o núcleo dos que pendemos mais para a Ilustração, dos que somos tidos por ‘reacionários’ por insistir em valores universalistas, soberania popular, representatividade, e outros adereços hoje desprezíveis da democracia-liberal. A nova elite que a ela se contrapõe chega romântica, antimeritocrática, de-canonizadora. A diferença é que os ilustrados de hoje recusam os excessos iluministas, precisamente a dialética da liberdade e qualquer tutela da Verdade por indivíduo ou grupo social, como a tradição de vanguarda do Proletariado. Já os novos românticos abraçam o pior da Ilustração, a idéia de que a liberdade é tão sublime que se pode (ou deve) obrigar o outro a ser livre (e feliz), hoje traduzida na idéia de que se uma identidade é possível ela é também obrigatória, e assimilar-se (integrar-se) ainda que por ilusão, é signo de covardia e traição ou marca infame do parvenu.

VII

Do cativeiro à diáspora como párias: negros e judeus

O olhar de Lima Barreto sobre a questão racial na Primeira República já identificava a analogia da questão do negro com a questão judaica. Mulato e pária que não combinava com a Academia ou com o modelo de sucesso do poderoso editor Garnier, Afonso Henriques anotava em seu diário, com preocupação como:

‘Vai-se estendendo, pelo mundo, a noção de que há umas certas raças superiores e umas outras inferiores, e que essa inferioridade, longe de ser transitória, é eterna e intrínseca à própria estrutura da raça. (…)

Urge ver o perigo dessas idéias, para nossa felicidade individual e para nossa dignidade superior de homens. Atualmente, ainda não saíram dos gabinetes e laboratórios, mas, amanhã, espalhar-se-ão, ficarão à mão dos políticos, cairão sobre as rudes cabeças da massa, e talvez tenhamos que sofrer matanças, afastamentos humilhantes, e os nossos liberalíssimos tempos verão uns novos judeus.

Os séculos que passaram não tiveram opinião diversa a nosso respeito – é verdade; mas, desprovidas de qualquer base séria não ofereciam o mínimo perigo. Era o preconceito; hoje é o conceito’ (Lima Barreto, Afonso Henriques de. Um longo sonho do futuro: diários, cartas, entrevistas e confissões dispersas. Edição de Bernardo de Mendonça, com título do editor. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1993. 405pp. Aqui P. 71).

A analogia com a questão judaica faz parte do enredo da ressurreição social do negro de modo quase natural. Não será mero acaso que – no silêncio que envolve a questão racial, na qual em público só se ouvem vozes favoráveis à cota universitária, por exemplo, as raras vozes que surjam em oposição ou pelo menos discussão um pouco mais crítica de alguns excessos antidemocráticos e anti-liberais dessa ressurreição se fundamentem no paradigma judaico.

Realidades e dilemas

Durante todo o ano de 2004, por exemplo, em que estive atento à questão racial no discurso público, só encontrei em geral vozes de oposição no espaço de cartas dos jornais e um único texto de oposição, fundado na experiência judaica, que é o de Luis Milman, no Observatório da Imprensa (Luis Milman. ‘Lei 8.470, Porto Alegre – Racialismo legal e indiferença da imprensa’, em Observatório da Imprensa, Caderno da Cidadania, 21 de setembro de 2004) [ver remissão abaixo para textos do OI]. Algum excesso de pânico precisa ser criticado no ponto de vista judaico, de horror à simples menção da palavra ‘raça’ na política contemporânea. É lamentável, de outro lado, que lideranças afrocêntricas divulguem propaganda antijudaica sob o equivocado slogan de que rigor científico, critério historiográfico, fidelidade às fontes, ausência de interesse particular na busca da verdade, são coisas de branco que pertencem ao museu de antiguidades do eurocentrismo e que a nova Verdade é que judeus são brancos e ricos em imemorial conchavo contra a raça negra (cf. Schlesinger Jr. op. Cit. P.34).

Ainda que seja lugar comum afirmar que os judeus sejam hiper-sensíveis ao retorno da entidade denominada Raça, esta não é uma sensibilidade descabida, e quem se interesse pelo futuro comum de pessoas associadas em modos democráticos de vida não deixará de examinar o caso paradigmático da assimilação judaica no século 19 na Europa Central. Que não foi por acaso situado por Hannah Arendt de modo tão apropriado nas origens do sistema totalitário, não se devendo ver no termo ‘origens’, aqui, sentido apenas histórico, mas algo que está nas sociedades como germe e que pode atualizar-se sob formas novas, algo como o subterrâneo social vingativo e rancoroso de que estamos falando, com algum abuso do vocabulário freudiano.

Ainda que eu concorde com o argumento central de Milman, fundado na idéia de que a aceitação individual ou coletiva de uma identidade étnica é direito de alguém, mas não é um dever, não sendo legítimo que um funcionário da Municipalidade olhe para o indivíduo e o rotule como branco, pardo ou negro, quase-branco ou quase-negro, penso que não será possível cristalizar a discussão em torno à absoluta recusa à reaparição da Raça no cenário político. Na política, o primeiro passo é aceitar as realidades e os dilemas que o momento histórico nos propõe.

O dilema da assimilação

A raça ressuscitou e precisamos entrar em diálogo com ela. Será saudável um diálogo aberto, e para esse diálogo é sempre interessante a lembrança do paradigma judaico e sua história social. Tal como Gilberto Freyre, Hannah Arendt via na biografia representativa também uma fonte de inspiração para a construção de tipos-ideais. A biografia representativa aqui será a de Rahel Varnhagen, que tipifica uma geração de judeus que enfrentou o dilema da assimilação, muitas vezes pagando o preço do ‘batismo’ como ‘bilhete de ingresso’ em sociedade, para terminar percebendo que esse bilhete não assegurava ‘aceitação’ plena. Rahel teria dito em seu leito de morte:

‘Que história. Fugitiva do Egito e da Palestina… (…) As maiores distâncias de tempo e de espaço se encurtam. A coisa que em toda minha vida parecia a maior das vergonhas, que era a miséria e o infortúnio da minha vida – ter nascido judia – esta eu hoje de jeito nenhum gostaria que me faltasse’ (traduzo a partir do inglês, Hannah Arendt, Rahel Varnhagen – The life of a Jewish woman. Translated by Richard and Clara Winston. San Diego, New York, London: Harcourt Brace Jovanovich, 1974. 236pp. Aqui p. 3).

Do cativeiro à diáspora, como párias, é também a história social da raça negra, conforme a percepção dos negros. O Black Media Congress, realizado em Berlim em 2004, teve por tema a ‘Diáspora negra global’ (Paulo Rogério Nunes, ‘Berlim debate presença afro na imprensa’. Em Caderno da Cidadania, Observatório da Imprensa, 14 de dezembro de 2004). Referi rapidamente – e a dimensão já demasiado longa deste esboço de compreensão não permite repetir – alguns traços dos conceitos existenciais de pária e parvenu, com que Arendt retrata o dilema da assimilação judaica, em texto a que me reporto (‘Censura togada – Para que serve um jornalista?’ Em Caderno da Cidadania, Observatório da Imprensa, 12 de outubro de 2004).

‘Objetos’ redentores

Agora, comparando o dilema judeu com o tema da ressurreição social do negro no Brasil, veremos como o judeu de Corte, o parvenu por excelência, é, pelo movimento negro, associado ao negro que triunfou no antigo regime (da invisibilidade ou de mérito) e considerado o pior traidor da causa negra. O militante (por vezes até o excesso do narcisismo) por seu turno é associado ao judeu que fazia apologia do sofrimento como um fator positivo de unidade e consciência na figura do pária.

É evidente que os extremos são caricaturas, e que as pessoas reais raramente incorporam essas figuras caricatas, estamos todos sempre no meio termo, ora mais para o pária, ora mais para o parvenu. Mas o que parece claro é que um radicalismo segregacionista pode estar, consciente ou inconscientemente, trilhando o rumo da apologia da violência racial branca como fortalecimento da ‘unidade’ e conscientização dos negros que ainda não alcançaram a ‘consciência correta’, e que superaram o ‘banzo’ (saudade da África) submergindo na mentira de uma democracia racial que permitiria sucesso a ‘quem trabalha e estuda’. Socialmente, porém, esse pária consciente pode ter a auto-estima de um parvenu, que deverá o sucesso social na nova elite à figura do ‘padrinho’.

Esse é um imaginário de opressão que já foi poderoso no Brasil monárquico e retorna de mansinho, com ares de revolução. Lideranças abrem mão da condição dos negros de hoje de sujeitos de sua história, para realçar neles a condição de ‘objetos’ redentores da identidade racial de amanhã. A identidade racial para algumas lideranças é autoritária porque é avenida de mão única: ela concede benefícios, mas ela não permite que depois o beneficiário ‘desapareça’ novamente no universo invisível dos ‘quase-brancos’ e por isso é apenas natural que minimize o perigo de ricochete discriminatório de algumas políticas de identidade.

Cotas, política de alto risco

A história social dos judeus será sempre paradigma esclarecedor para a ressurreição social do negro, que pode seguir rumos diversos, dependendo do que for realçado nesse processo. Pode ser que a influência – ou a imaginação que fazemos da questão racial na América do Norte – sirva de foco e produza um movimento mais agressivo e segregacionista, anti-liberal e quase-fundamentalista, retorno patológico do socialmente-reprimido, mas também pode que seja uma ressurreição terapêutica do trauma de infância da sociedade brasileira. A dificuldade envolverá ambos os lados do conflito racial.

Da parte branca (ou quase-branca, ou socialmente branca, como se queira) exigirá que acolha com legitimidade essa ressurreição, sem deixar-se intimidar pelo argumento de que têm se valido algumas lideranças, de que o que o movimento exige deve ser cumprido sob pena de … o dedo em riste apontar a verdade de um racista mascarado, desmascarando-o para sempre. Da parte negra, exigirá que ressurja no contexto democrático de direitos humanos, e que assuma que sua ressurreição é mais legítima se for também uma utopia moderna que acolha a legitimidade de indivíduos e grupos de recusarem essa identidade particular em nome de uma – ilusória, alienada ou seja o que for – outra identidade social. Mesmo que seja a de quase-branco, de branco social ou de negro de exceção, que não deverá ser visto desdenhosamente como um parvenu. Terá de reconhecer também que a estratégia ofensiva do ‘quanto pior, melhor’ é, em última instância, uma aposta de fé na capacidade redentora da violência que pode ser apenas um preconceito. Algumas políticas de identidade são mais facilmente incentivadoras da violência racial no Brasil do que soluções milagrosas da questão racial, como as que se fundamentam na injustiça (formal) do duplo-padrão (double standard).

A cota universitária é uma dessas políticas de alto risco. Pode falhar como germe da nova elite multirracial, mas pode ser infalível como germe da elevação à segunda potência da discriminação racial, verdadeira fábrica de skinheads. Entre nós já aparecem sites na internet dedicados à atualização e prática dos ensinamentos de Hitler que, pela literal associação e crítica aos movimentos negros, dão conta de que a sensibilidade judaica não é exagero de branco rico que é ‘do contra’ e ‘estraga-festa’. É urgente abrir um discurso público aberto sobre esse tema tão difícil e polêmico e tão ausente dos poucos locais de discussão política que temos.

VIII

A cota racial na universidade e seus ‘ricochetes’

O debate público disponível sobre a cota racial na Universidade é o mesmo no universo social ou no mais restrito discurso jurídico. De um lado, os defensores da cota com discurso moldado quase que na mesma fôrma. Começa com a lógica fetichista segundo a qual ‘se as ações afirmativas são positivas, progressistas e constitucionais, e se as cotas raciais universitárias são tipos de ação afirmativa, logo, as cotas raciais são tudo o que as ações afirmativas são’. Inventa um nome (positivo) para determinadas políticas, decreta que tal ou qual medida concreta é uma forma de aplicação desse Nome e a partir de então o nome consagra e legitima aquela política. Depois seguem alguma referência histórica, quase sempre simplista e apressada, muita estatística e o ‘recorte’ de um artigo da Constituição de direitos fundamentais que se concretizam do jeito que o autor quiser. Ressuscita entre brancos o tom condescendente e sentimentalista da campanha abolicionista.

O discurso da cota entre os brancos assume por vezes um tom quase-teológico de salvação, em que o ‘remédio’ torna o adepto da cota adquirente de uma ‘indulgência’ que o habilita a ter trânsito livre entre os movimentos sociais como alguém que ‘não sofre de racismo’. Desde que ‘vale tudo’ pela cota, alguns não têm maior pudor em analogias, como a que equipara a negritude à condição de hipossuficiência do deficiente físico, ou se autodeprecia como ‘branquelo que já dominou demais e quer dar a vez para o irmão de cor’. Lima Barreto – que deu forma a esse sentimento na já referida parábola dos ‘Dentes negros, cabelos azuis’ – diria ser preferível o preconceito porque, agora, veja-se no que deu o ‘conceito’: sentimentalismo que trata o negro como objeto da expiação da culpa branca e não como sujeito que construa a sua história e participe (também) de uma história nacional que não deixará de existir.

De outro lado, silêncio, porque as pessoas normalmente justas não querem ser racistas e de tanta acusação de racismo a quem é ‘do contra’ já nem sabem se ou até onde são racistas. Dentre os argumentos que solidificam esse silêncio, há um discurso lateral e autoritário de apoio à cota que é preciso refutar. Afirma que ‘os brancos não podemos saber o que é preconceito’, ou que ‘se somos contra a solução proposta pelas lideranças temos o ônus de resolver o problema da discriminação racial’. Sobre este último basta dizer que democraticamente uma proposta socialmente vetada impõe a seu autor e mais ninguém o ônus de apresentar alternativa. Senão seria sempre muito fácil ‘governar’. Quanto ao primeiro, é preciso dizer que o sofrimento é uma experiência cultural e culturalmente compreensível e traduzível. O argumento de que a experiência (o sofrimento) é sempre intraduzível é autoritário por natureza. A idolatria da representatividade dos movimentos sociais é outro aspecto autoritário que ronda as políticas de identidade.

A questão racial no STF

A liderança desses movimentos não é representativa no sentido democrático-liberal da palavra (não é eleita), mas autoproclamada e pode (ainda que nem sempre seja assim) funcionar como minoria fundamentalista que oprima a própria identidade social que representa. Nos Estados Unidos, os slogans do africanismo, segundo Schlesinger Jr., têm maior impacto ‘sobre a culpa dos brancos do que no senso comum da comunidade negra’ (op. Cit. p. 47). No Brasil é possível que nem todos os negros pensem que por reduzida auto-estima não podem aprender a pescar, precisando receber o peixe por 25 anos. Podem pensar que essa é uma ressurreição de um tipo conhecido de ‘negro de exceção’ do Império, protegido (ou oprimido) pelo padrinho.

Eu não entraria no debate ‘constitucional’, se não fosse pela necessidade de lembrar que a crise de identidade norte-americana pelo menos se abranda lá por uma cultura de ‘afeição constitucional’ que não possuímos. Aqui o tempo é sempre ‘legiferante’ (expressão de Lima Barreto) e o Judiciário importa-se muito pouco, desde sempre, com a soberania popular.

Seja como for, o intérprete institucionalmente normativo da Constituição é o Supremo Tribunal Federal e o supremo intérprete que temos é aquele com que temos de nos conformar, ainda que às vezes a contragosto. O que não se admite é um pacto ideológico de constrangimento social para que não se leve a questão racial ao STF porque supostamente esse tribunal ainda não estaria preparado para esse ‘avanço’. Para não omitir-me nesse aspecto relevante, participo do debate com minha ‘opiniãozinha’.

No baú de malvadezas

Penso que o pacto de sociedade de 1988 viu na Universidade uma instituição cuja finalidade primordial (ainda que secundariamente ela também cumpra o papel) não é de realizar justiça social. Se o ensino superior pudesse ser tido apenas como compensação para alguém que teve má sorte no seu nascimento, isso implicaria (1) a privatização do espírito da Universidade, e (2) a bancarrota do ensino superior, que não sobrevive se for desassociado de (algum) critério de mérito. A cota na Universidade altera de modo tão radical esse acordo de sociedade que só poderia ser criada na própria Constituição ou emenda posterior, para que ela corresponda à vontade nacional. Registrando telegraficamente essa opinião, quero concentrar-me nos aspectos socialmente perigosos da medida, no calcanhar de Aquiles da cota universitária que é o duplo padrão, recebido socialmente como uma injustiça. O frei David R. Santos, Diretor da ONG Educafro, ao comentar pesquisa realizada entre alunos da UERJ segundo a qual 79,9 dos alunos entrevistados consideram a lei da cota ‘injusta porque os alunos deveriam ser selecionados pelo mérito e não pela escola que freqüentaram no segundo grau’, exclama:

‘Que mérito absurdo e corrupto é este que me dá vantagens para ganhar de graça uma vaga na Universidade obrigando os pobres a ficarem mais pobres?’ (para adiante afirmar que) ‘a concorrência entre os alunos de escolas particulares aumentará com a Lei dos 50%, mas é necessário sublinhar que esta concorrência aumentará entre esses próprios alunos, de forma que a Lei do mérito continuará valendo para eles’ [o itálico é do original] (em Ministério Público Federal & Escola Superior do Ministério Público da União. Discriminação & Ações Afirmativas: o Ministério Público Federal promovendo o debate…São Paulo, 2004. Pp. 93/94).

O duplo padrão (double standard) da cota para uns e mérito para outros é socialmente odioso, principalmente porque silencia qual será o padrão de cooptação de quem será beneficiário da cota (havendo mais candidatos do que vagas, algum padrão tem de haver; havendo menos, também, porque algum mínimo requisito de excelência deve ser exigível para ingresso no ensino superior). Quanto à de-canonização do mérito, a citação acima é significativa e representa que ela não é autêntica. Ela talvez seja reflexo desesperado da monotonia do cenário de antagonismo quase-absoluto de hoje, que é ambiente social, desde a educação infantil até a superior, racial e socialmente imóvel, desespero que retorna como ressentiment. Afinal, quem realmente se acostuma às diferenças encara com mais naturalidade que alguns possam ser campeões por seus próprios méritos.

Mérito é algo que não pode ser enterrado no baú de malvadezas iluministas. Um sistema de educação que não julgue méritos talvez esteja nutrindo pessoas que terão enorme dificuldade em reconhecer outras virtudes sociais relevantes para harmonia das diferenças, entre elas a virtude da justiça, porque reconhecimento de mérito é uma atividade de justiça. Se todas as virtudes sociais deverão dar lugar à promoção da auto-estima dos excluídos ou bem poderemos todos participar de uma grande hipocrisia ou bem podemos perder socialmente a noção de justiça. Sem falar que a promoção da auto-estima de excluídos por ouvirem aquilo que querem ouvir pode ser uma promoção de neurose social que teria no indivíduo paralelo com o narcisismo.

Fácil, mas autoritário

A cota racial na universidade teria em vista uma elite multirracial. É possível que atualize o pior Gilberto Freyre, aquele intelectual reacionário na política que acreditava que os ditadores que admirava, como Salazar, fossem escutar suas receitas de ‘revolução conservadora’. Entre essas receitas estava justamente a recomendação para que Salazar não tardasse em ‘suprir jovens luso-angolanos de estudos universitários, nessas Áfricas, que evitasse – sobretudo em Moçambique – o êxodo de tais jovens para a União Sul-Africana, de onde tantos deles pude constatar estarem então voltando às suas Áfricas contaminados pelo racismo sul-africano, desaportuguesados, assimilados aos preconceitos norte-europeus contra gentes de cor’ (Insurgências e Ressurgências atuais. Cruzamentos de sins e nãos num mundo em transição. Porto Alegre, Rio de Janeiro: Globo, 1983. 281 pp. Aqui p. 30).

Não sendo socialmente discutido o critério de cooptação da elite do futuro, é possível (não necessário) que essa escolha seja socialmente recebida como ‘favor real’, de modo que o benefício funcione como uma forma disfarçada de opressão que poderia configurar uma idéia de democracia racial semelhante à que Gilberto Freyre viu na Monarquia brasileira. O que primeiro se retira disso é que se privatizou a Universidade, como se ela fosse algo que serve apenas para garantir a alguém um status social. É também isso, mas não é só. Ela é coisa pública, reserva de tecnologia, repositório de autoridade para que o mundo social se reproduza com segurança. Por isso a opção ‘ilustrada’ da Constituição por qualificar a igualdade, no art. 208, VI, na garantia de ‘acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um’, inclusive porque o ensino superior tem por meta, além de formação para o trabalho, a ‘promoção humanística, científica e tecnológica do País’. Por isso a cota universitária engloba uma radical e complexa modificação da utopia nacional.

Há quem aposte que o preconceito deva subir à superfície social como discriminação para ser curado. Mas este pode não ser o melhor remédio. Até porque preconceito e discriminação, como vimos, são coisas diferentes e o primeiro pode ser mais ou menos inofensivo, ao passo que a segunda já é uma doença social que sempre pode piorar. Com Aristóteles aprendemos que o ato de uma pessoa injusta – com disposição permanente à injustiça – difere do mesmo ato injusto praticado pela pessoa justa que eventualmente incorre em injustiça. É saudável apropriar a diferença quando lidamos com o preconceito, que se exterioriza em atos de injustiça. Uma pessoa com disposição permanente ao preconceito racial pode ser considerada, com justiça, racista. Agora, uma pessoa que não tenha essa disposição permanente, ainda assim incorrerá, eventualmente, em preconceito. O discurso acusatório, que pretende sempre ‘vencer’ apontando, por vezes até mesmo no plano semiconsciente ou inconsciente como o ato falho verbal, a ‘verdadeira natureza racista do opositor’ é mais fácil, mas não é legítimo e não esconde que é autoritário.

A advertência que quero registrar a respeito da cota universitária é que ela envolve necessariamente uma grave ‘injustiça formal’ porque trata a sociedade com padrões duplos de justiça num ambiente que não pode ser completamente dissociado de alguma forma de mérito. Qualquer medida de luta contra a discriminação que faça isso terá de reconhecer que é de risco enorme: pode falhar na construção da elite multirracial de amanhã e pode ser infalível como fábrica de skinheads, entre os adolescentes que – numa etapa de vida em que sempre é difícil assimilar fracassos – sejam barrados do sonho universitário, por décimos na competição ‘entre eles, os brancos’, para que eles os brancos paguem a dívida histórica com os negros que ingressarão na Universidade ninguém ainda sabe por quais critérios.

A cota é panacéia e signo evidente de desesperança: conjugação que faz dela a mais nova encarnação do autoritarismo nacional. Os oprimidos da Terra sempre foram ‘objeto’ de experiências da nossa parte, seus senhores, que hoje – por condescendência ou porque simplesmente entrou ‘na moda’ – tentamos mais uma experiência. Também porque – da parte de governos – a facilidade de abrir a porta da universidade é a mesma que a de mudar o currículo: não lhes custa absolutamente nada, nenhum investimento, nenhum problema orçamentário.

Diante do pacto ideológico de silêncio em torno ao critério de cooptação dos beneficiários da cota racial na universidade com certeza pode entrar em vigor a nunca revogada lei brasileira do ‘pistolão’. Lima Barreto talvez não seja ícone de políticas de identidade. Era humano-humano demais para isso. No seu lúcido e profundo humanismo, resolvia a política dos que tudo resolviam com a ironia. No seu Isaías Caminha, Lima Barreto retratou uma redação de jornal que é o microcosmo da sociedade brasileira, dominada por um ‘parvenu’ que aprendeu a crescer na profissão à conta de simular que se revolta contra a injustiça. Até que denunciaram O Globo por ser ‘inimigo da colônia portuguesa, tanto assim que não tinha um português na redação de sua gazeta’ (p. 109). Lima Barreto faz graça. Encomenda-se um redator a Portugal e se resolve o problema…

IX

Conclusão

Admitindo-se como coisa natural que novas reivindicações sociais surjam com excessos, como o caracterizado pela cota universitária, a ressurreição social do negro no Brasil é um fato a celebrar.

A idéia do ‘nada a comemorar’ de Marilena Chauí (Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. 103 pp. Aqui p. 95) seria trágica se fosse completamente verdadeira. Mas ela talvez resulte do exagero na categoria da ‘ideologia’ que redunda em desesperança e soma um argumento mais ou menos erudito ao ressurgimento do ‘mito da violência’ nos movimentos românticos de negação da herança ilustrada, porque fala de uma história fatalista e eterna luta sociorracial entre dominantes e dominados, sem progressos, sem retrocessos, sem muito futuro para quem não confiar na Verdade dos movimentos sociais, herdeiros da Verdade antes encarnada na vanguarda do Proletariado.

Enfrentamos com a virada do 2000 uma segunda grande crise de identidade coletiva. A primeira se deu pela virada do 1900. É interessante notar como os mesmos preconceitos são recorrentes. Nossa relação com os Estados Unidos da América é formulada quase sempre como um preconceito, um afeto que ora é amor, ora é ódio, sem meio-termo. Não é à-toa que surge reeditado – pelo selo da Alfa-ômega que sempre editou bibliografia de esquerda – o célebre panfleto antiamericano de Eduardo Prado, A ilusão americana, que se contrapunha no 1900 ao americanismo exagerado e algo ingênuo de um Joaquim Nabuco (cf. O&P/ 87). O preconceito antiamericano é o mesmo, o favorável é que mudou e hoje é reciclado na importação sem crítica do slogan da salada mista multicultural, segregacionista e de elogio da violência como parteira da solução de problemas sociais.

‘Lugares de memória’

Dentre as esperanças, apostamos em que a crise de identidade por que passamos no 2000 não será igual à do 1900. Aquela primeira crise era mais angustiante porque tinha-se consciência da ‘ignorância’ social, da ausência de ‘lugares de memória’ onde fosse escrita uma identidade coletiva: ‘a ignorância dos brasileiros do fim do Segundo Reinado e dos primeiros decênios da República, acerca de si próprios e dos demais povos tropicais e mestiços, se desenvolvera em quase psicose caracteristicamente nacional em sua configuração cultural’ (O&P/917).

Cem anos depois, podemos submeter nossa crise de identidade ao debate público a partir da interpretação de alguns monumentos culturais. O 2000, mesmo ano de publicação do libreto de Chauí, do nada a comemorar, é o ano em que a Nova Aguilar publica três volumes de ensaios sobre a identidade nacional, chamados pelo editor de ‘Intérpretes do Brasil’.

Culturalmente, há muito a comemorar, uma vez que em nossa tradição já existe um corpo de textos de alta cultura com os quais possamos entrar em diálogo sobre nossos problemas de identidade. A democracia – étnica ou política – precisa de ‘lugares de memória’ para poder sobreviver, abusando outra vez da expressão de Ágnes Heller, à ‘marcha triunfal do ressentiment‘.

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Procurador da República, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e em Filosofia pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA, autor de Democracia ou fundamentalismo? Esboços de compreensão política. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004