Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Prisão é notícia; a defesa, nem tanto

A liberdade de imprensa é da mais alta importância para a sociedade e para o indivíduo, e uma de suas funções é nos salvaguardar dos abusos do poder estatal. Assim nos ensina a própria imprensa.

Ora, se há ocasião em que abundam oportunidades de abuso de poder é quando o Estado prende e acusa alguém de um crime. Mas, nesta hora, a imprensa nem é neutra: toma, para todos os efeitos, o lado do Estado. Não examina fatos nem cobra provas: limita-se a alardear o que diz o delegado e o promotor. Afinal a prisão é notícia, as acusações escabrosas também; o que diz a defesa, nem tanto. Quando muito, sai no último parágrafo que o preso ‘alega’ ser inocente.

A imprensa apelidou de Lei da Mordaça a idéia – graças a isso natimorta – de restringir o que a polícia e o Ministério Público podem declarar sem provas. Não parece incomodá-la, no entanto, a mordaça aplicada ao acusado – quer pelo encarceramento, quer pelo desinteresse, quer pela imposição abusiva do sigilo judicial depois que o réu já foi condenado no tribunal da opinião pública.

O maior exemplo disso é o caso Colina do Sol, onde, em dezembro de 2007, numa comunidade naturista do município de Taquara (RS), dois brasileiros e dois americanos foram presos com cobertura maciça da mídia nacional, acusados de abuso de crianças, fabricação de pornografia infantil e tráfico internacional de menores.

Oportunidade de fama

Os americanos, Fritz e Barbara, são aposentados e tinham fundado uma ONG em prol das crianças da vila de Morro da Pedra, patrocinando tratamento médico e dental, times de futebol e aulas de reforço escolar. Os brasileiros são Cleci e seu marido André, dentista e presidente da Federação Brasileira de Naturismo, igualmente envolvidos em ação social em favor da comunidade. Morro da Pedra é um lugar pobre, e muitos meninos vão trabalhar desde criança nas pedreiras, insalubres até para adultos.

Apesar da assombrosa improbabilidade das acusações – um casal de terceira idade (Fritz tem 64 anos e Barbara, 73) teria se dado ao trabalho de criar um extenso e eficaz programa de ajuda à população local para se aproveitar sexualmente de algumas crianças – a imprensa engoliu sofregamente, e regurgitou mundo afora, tudo o que disse o delegado que armou o circo denominado de Operação Predador. Delegado, aliás, que presidia no momento da prisão a Delegacia de Homicídios de Porto Alegre – incongruência que só se torna inteligível quando se descobre que as denúncias contra os acusados foram feitas naquela delegacia por ‘uma corja seguindo atrás de um corno’, nas palavras de alguém que conheceu pessoalmente todos os personagens da novela.

O ‘corno’ e a ‘corja’, todos sócios do Clube Naturista Colina do Sol, mas desafetos dos quatro, vendo que não conseguiam se livrar deles nem mesmo com ameaças de violência, foram fazer denúncias de pedofilia numa delegacia onde tinham amigos. O resto fica por conta de um delegado ambicioso que viu nesta sórdida vingancinha uma oportunidade de fazer fama: inventou liames com uma pretensa rede internacional de pedofilia, tráfico internacional de crianças e muito mais. Os detalhes estão explicados neste site e, particularmente, num relatório (disponível no mesmo site) que escrevi, com a ajuda de Silvio Levy, para a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos.

Agredido com uma cotovelada

Se o parágrafo acima parece polêmico, é porque não há como explicar o ocorrido nos últimos onze meses sob a premissa normal de que a polícia e a justiça estão buscando a verdade. As mesmas pessoas que foram à delegacia fazer acusações de pedofilia limitaram-se, no tribunal, a vagos depoimentos de ‘ouvi dizer’ e ‘tudo levava a crer’, ao passo que as pretensas vítimas negaram ter ocorrido abuso. Esses depoimentos, entretanto, não foram noticiados, pois o processo está sob sigilo judicial. Que quer dizer isso? Que a imprensa está impossibilitada de conhecer, muito menos divulgar, certos documentos que exoneram os réus, ao passo que as acusações continuam a ecoar e surtir efeito.

Pior, quem dá apoio aos réus se vê taxado de criminoso. Três pais de crianças nomeadas como vítimas negaram-se a representar contra os acusados, acreditando nos filhos. Foram denunciados por ‘conivência’. Um pai foi reclamar que seus filhos tinham sido agredidos na delegacia para forçar uma acusação. A promotora se recusou a ouvi-lo, mandando-o dar queixa na Corregedoria. Depois, denunciou-o por ter feito acusações contra a polícia.

Em abril, um contingente de Morro da Pedra, contando com várias ‘vítimas’ e suas famílias e vizinhos, fez passeata em frente ao fórum de Taquara pela soltura dos réus. Foi o mais honrado dos protestos: o povo repudiando a prisão injusta de inocentes. Contribuí chamando a mídia, pois manifestação pública é para ser vista.

A resposta do fórum foi de repressão. Veio um conselheiro tutelar e começou a coletar nomes de crianças e a mandá-las para casa. Perguntei o que ele estava fazendo e fui fisicamente agredido com uma cotovelada. Pouco depois, quando um repórter se preparava para me entrevistar, fui preso. Depois fui solto, mas fui denunciado pelo Ministério Público e estou respondendo a ação criminal.

‘Deu muita repercussão, doutor’

Silvio Levy, sócio da Colina do Sol, escreveu uma matéria defendendo os réus e uma carta aberta aos membros do clube, exortando-os a pensar por conta própria. A promotora aconselhou os acusadores a dar queixa na delegacia local, descartou a determinação do delegado de que escrever não é crime nem contravenção e denunciou Silvio por ‘graves ameaças’. Portanto, somos pelo menos cinco réus satélites, respondendo pelo crime de não acreditar na infalibilidade da autoridade.

O conselheiro que dissolveu a manifestação em Taquara alegou que estava defendendo a dignidade das crianças. Mas em maio, em Alagoas, o Ministério Público estadual organizou uma passeata de 3.000 pessoas, inclusive crianças, contra a exploração infantil. Como se vê, há uma diferença enorme entre a livre manifestação do pensamento e a livre manifestação dos pensamentos aprovados pelo Ministério Público. Da mesma maneira que há uma diferença enorme entre a imprensa relatar os fatos de um caso e relatar só o que lhe foi repassado pela polícia.

Os quatro da Colina continuam presos até hoje. Ora, sabemos que muitas vezes até os acusados de homicídio respondem ao processo em liberdade. No caso Colina do Sol, foi negado habeas corpus em nível estadual e uma liminar em nível federal (o habeas federal ainda não foi julgado). Por quê? ‘Deu muita repercussão, doutor’, é o que os advogados dos réus ouvem em toda parte. O próprio acórdão do tribunal gaúcho cita a ‘repercussão internacional’ do caso como razão para negar o habeas.

A quem beneficia o sigilo?

Não importa que a repercussão se baseie em acusações que em grande parte nem entraram no processo. Quantos leitores não se lembram que os acusados faziam ‘tráfico de crianças’? De fato, já viajaram quatro menores brasileiros aos Estados Unidos, patrocinados pelo casal americano. Dois foram com as respectivas mães para tratamento médico. Outro é o filho adotivo do casal, que foi com os pais conhecer seus novos irmãos e primos. E o quarto foi Cristiano Pinheiro Fedrigo, que há dois anos recebeu em Nova York uma bolsa-prêmio de 15 mil dólares, pelo trabalho que fazia desde muito jovem ajudando as crianças mais pobres – foi ele que começou a obra social que empolgou Fritz e Barbara.

Cristiano ficou dois anos nos EUA estudando inglês e voltou uma semana antes da Operação Predador. Foi ele que abriu a porta quando a polícia chegou à casa dos americanos e sua imagem foi veiculada no país inteiro como um menor vítima de abuso sexual (ele tinha 20 anos). Desde então, ele tem se empenhado em conseguir a liberdade dos réus, luta que tem lhe rendido muitas ameaças e falsas denúncias.

A polícia espalhou que houve tráfico de crianças. Que isso não está na denúncia, a imprensa não ficou sabendo, ou se ficou, achou que não era notícia.

Dois meses depois da prisão, quando o processo entrou na fase judicial, os réus teriam a oportunidade de se defender. Publicamente? Não. Na véspera, o processo foi decretado sigiloso. A polícia disse o que quis, para a imprensa ouvir e ampliar. Mas na hora que a defesa ia argumentar, alguém achou melhor não deixar.

Uma bomba incendiária

Por quê? Para proteger as vítimas? Não é o que parece, tendo em vista que a caravana de imprensa que acompanhou a polícia no dia da prisão sitiou as residências delas, apontadas pelo delegado. Nem tampouco o Judiciário demonstra grandes escrúpulos; a assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul divulgou os nomes dos pais de oito supostas vítimas quando foram denunciados. Um outro menor está num orfanato, mas seu nome consta por inteiro num acórdão também disponível no site do Tribunal. Muitos outros detalhes estão num parecer que obtive, sem subterfúgio nem pistolão, numa repartição pública em Brasília.

Neste caso, o sigilo judicial existe apenas para beneficiar a carreira do delegado, pois o exime da inconveniência de ter que mostrar provas. Aliás, nisso não se pode culpá-lo; crime de pedofilia dá Ibope e crime inventado tem a vantagem de não correr o risco de aparecerem os culpados verdadeiros, como no Bar Bodega, melando tudo. Não, basta lançar cem acusações que o Ministério Público escolhe trinta, repassa na denúncia como ‘fatos’, e pronto: a ‘complexidade do caso’ justifica o insólito de manter um velho de 64 anos no presídio central por onze meses sem qualquer prova.

Beneficiam-se também os inimigos pessoais dos réus. Barbara está em prisão domiciliar dentro da Colina do Sol e as ameaças são constantes. Insultos à porta da casa, tiros à noite, carros passando a caminho de lugar nenhum. Quando ela foi a uma audiência em agosto, alguém de dentro da Colina (que tem cerca e porteira controlada) subiu no seu telhado e plantou uma bomba incendiária na chaminé, que apenas por sorte não consumiu a casa quando detonou dias depois. O registro disso também ficou sob sigilo! Felizmente, um jornal local teve a coragem de publicar o acontecido quando recebeu cópia dos boletins de ocorrência.

‘A polícia mentiu?’

Nedy, mãe de Cristiano, cuidava de Barbara em casa. Foi avisada pelo médico de que se não se afastasse do estresse, da hostilidade constante dos acusadores, poderia morrer. Não deu ouvidos e, em setembro, morreu, depois de três ataques cardíacos.

Logo que os acusados foram presos, três adolescentes, de 13, 14, e 15 anos, foram levados a Porto Alegre falar com uma psiquiatra. As manchetes do dia seguinte disseram que, conforme a psiquiatra, os jovens tinham sofrido abuso. No corpo da notícia estava escondida a verdade: os jovens negavam e nem a psiquiatra afirmava que o abuso tinha a ver com o presente caso.

É o velho erro da imprensa: repetir em vez de averiguar. Ah, mas como iríamos desconfiar de uma ‘psiquiatra forense’ e ‘especialista em violência familiar’? Bastaria ter ido ao banco de currículos do CNPq para ver que de ‘forense’ ela tinha dez meses como estagiária no ambulatório do Instituto Psiquiátrico Forense. No site do Conselho Regional de Medicina não consta que seja especialista em nada. Até a faculdade onde teria feito sua especialização não era credenciada na época.

Sim, há a pressa de jornalismo diário. Mas se ela estivesse contestando as acusações, alguém teria achado tempo para verificar seus títulos. Ou dito que ela era paga pela defesa.

Eis outro problema de jornalismo, como praticado. No dia em que uma autoridade afirma que tem provas, isso é manchete, quer a prova exista ou não. Dois repórteres que entrevistei afirmaram que no começo o delegado prometeu várias vezes que as provas cabais estavam para aparecer. Quando é que chega a hora de dizer: ‘A polícia mentiu?’ Sabemos quando – no dia de São Nunca.

Laudos sonegados

Uma das extravagâncias propaladas pelo delegado é que os réus tinham no computador fotos de atos sexuais com bebês de meses. Entende-se que tais fotos não sejam divulgadas. Mas certamente alguém as viu e documentou? Não. Há três laudos do Instituto de Criminalística do RS sobre os cinco micros apreendidos no caso, datados de dezembro de 2007, 9 de março e 19 de maio. Nenhum descreve pornografia infantil. Aliás, se dissessem o contrário, já teriam aparecido no processo e nos jornais há muitos meses.

Há também uma carta do delegado, afirmando que micro do Fritz está criptografado e seu conteúdo inacessível. Esta afirmação é cabalmente falsa, e fruto de má-fé ou incompetência grosseira, mas tem servido para prolongar o processo.

Várias vezes a juíza solicitou cópias dos laudos e foi informada que não estavam prontos. Finalmente, em 10 de julho, a polícia mandou os laudos ao fórum – junto com uma afirmação de que há um sexto micro. Aparentemente, durante mais de seis meses tinham se esquecido de informar este detalhe à Justiça e à defesa!

O presente relato sobre o conteúdo dos laudos está coberto pela liberdade de imprensa. Sem dúvida, alguém vai querer saber como tive acesso às informações. Eu fiz meu trabalho de jornalista e cumpri minhas obrigações. Em vez de gastar mais dinheiro público me perseguindo, deviam procurar saber quem foi que não fez seu trabalho de policial e sonegou estes laudos à Justiça, durante meses, estando quatro pessoas presas.

Competência e coragem

Há quem ache que a liberdade da imprensa vale qualquer preço – contanto que seja pago por outrem. Reputações destruídas, inocentes presos por um ano porque ‘deu muita repercussão, doutor’… Bem, é o ‘preço da democracia’.

Não é. É o preço da preguiça e da covardia. É cômodo acusar quem está algemado. Não convém enfezar quem fornecerá a manchete de amanhã e, além disso, costuma andar armado.

Mas a imprensa também conta com muitos repórteres e editores corajosos. Por um lado, o caso Colina do Sol será um marco de referência no Brasil, um paradigma de como a prática do jornalismo fica muito aquém da teoria. Mas por outro, para derrubar um castelo de cartas, é preciso só um pouco de vento. A cura do mau jornalismo é o bom jornalismo, e a cura da mentira e da censura é a verdade.

Há muitas informações no site que mencionei. O sigilo do fórum não vige nos morros. As crianças e o povo de Morro da Pedra estão dispostos a falar com quem tenha ouvidos. Com competência, coragem, e um pouco de esforço, chegaremos lá.

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Formado em Filosofia pela Universidade de Yale e consultor empresarial