Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Quando a autorregulação é injustificável

‘É fácil falar mal de entorpecentes, de pedofilia. Mas de cigarro e álcool é difícil, por que todos nós bebemos’, diz o procurador da República no Estado de São Paulo Marcelo Sodré. Falando também como presidente do Conselho Diretor do Greenpeace no Brasil e membro do Conselho Diretor Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Sodré chama atenção para o fato de que a aceitação social dos dois produtos está diretamente relacionada à ideia de que não é necessário estabelecer regras rígidas para sua publicidade.


Sodré e outros especialistas, que se reuniram em São Paulo para participar do seminário Álcool, Tabaco e a Publicidade da Associação Brasileira de Estudos o Álcool e Drogas (Abead), chamaram a atenção para o fato de que, apesar de o assunto parecer batido, o efeito da publicidade desses produtos é evidente: o forte consumo de bebidas alcoólicas e cigarros.


Os palestrantes, críticos aos prejuízos sociais dessas drogas, mostraram que é preciso uma regulação de fato, não a que existe por meio de agências autorreguladoras. No caso, o Conselho Nacional de Autorregualmentação Publicitária (Conar). ‘Temos que reconhecer que, em muitos casos o Conar fez controle importante, mas não é o suficiente, nenhum setor da sociedade deve ficar fora de controle’, afirma Sodré. ‘Não é só porque um produto é legal que ele deve ser anunciado.’


Público suscetível


Uma tática muito usada hoje pelos publicitários é relacionar regulação a censura. Para Sodré, nem mesmo os publicitários acreditam ‘realmente que a liberdade de manifestação e a venda de produtos é a mesma coisa’. No entanto, é assim que tem sido justificada a propaganda de produtos notadamente inimigos da saúde pública.


O debatedor João Lopes Guimarães Jr., procurador da República e também especialista na área de direito do consumidor, lembrou que alcoolismo, tabagismo e obesidade estavam entre os principais fatores de risco à saúde para a Organização Mundial de Saúde, o que é um motivo para que não haja publicidade que leve a esses hábitos. ‘Ninguém tem dúvida que de fato esses três fenômenos da nossa sociedade têm repercussão muito grande sobre a saúde’, afirma.


Não por acaso, lembra Lopes, o Código de Defesa do Consumidor utiliza a palavra saúde 14 vezes, provando que de fato a questão da saúde está muito relacionada com os hábitos de consumo. Além disso, o procurador lembra que a proteção da saúde é um dever constitucional. ‘O Artigo 196 da Constituição, afirma que é dever do Estado promover saúde pública e ações que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos. Se é dever do Estado criar e promover políticas de caráter preventivo, a questão do tabagismo e alcoolismo deve ser pensada.’


Neste raciocínio, a redução de consumo desse tipo de produto constitui parte essencial de qualquer política pública de saúde preventiva. E visto que a publicidade destina-se a estimular o consumo de bens e serviços, exercendo forte influência sobre grandes massas da população, fica claro que esta deve ser regulada. Ainda mais quando é dirigida ao público mais jovem, altamente suscetível aos apelos consumistas, pois sua formação psicológica em desenvolvimento é mais sujeito à manipulação.


Democracia e publicidade


Quanto ao argumento usado à exaustão para defender a publicidade de álcool e tabaco, de que regulá-la é atentar contra a liberdade de expressão, Lopes argumenta: ‘Que democracia é essa, onde o interesse corporativo de um setor impede a implementação de política pública de direito social que é a saúde?’


Para o desembargador Luis Antônio Rizzato Nunes, professor de Direito do Consumidor, a regulamentação está plenamente coberta pela Constituição. Ele lembra que o Inciso 2 do Parágrafo 3º do Artigo 220 estabelece que o estado deve garantir mecanismos para as famílias se protegerem contra anúncios publicitários. O Parágrafo 4º do mesmo artigo cita explicitamente o álcool e o tabaco.


‘Não acredito em autorregulamentação, assim como não acredito em agências reguladoras. Em vez de regularem, [estes órgãos] funcionam como pontos de contato e acertos feitos pelos grandes empreendedores’, afirma Nunes. Para ele, a publicidades no Brasil é abusiva, dentre outras coisas, porque explora o medo, a superstição, se aproveita de crianças, desrespeita valores ambientais, estimula a por em risco a saúde e a vida.


No caso específico da publicidade de bebidas, além da regulação, é necessário educação. ‘Basta ligarmos a TV para assistirmos discriminação odiosa feita pelas propagandas de cerveja contra as mulheres’, lembra o desembargador. Nunes citou o caso da cerveja Devassa como exemplo da ineficácia da autorregulação. Segundo ele, o Conar se vangloriou de ter tirado do ar a propaganda da cerveja, ‘mas todas as outras continuam lá’.


O caso do Brasil é muito específico, acredita Nunes, pois aqui, além das pessoas não conhecerem seus direitos, a sociedade acaba sendo até um entrave a avanços que estão garantidos no sistema judicial. ‘Contra essa indústria que tenta comprar o que temos de mais precioso – nossa consciência –, regulação é necessária, mas também educação para que a consciência não seja comprometida.’


Brigas judiciais


O procurador da República Fernando Lacerda Dias tem acompanhado uma velha e intensa batalha judicial para proibir a publicidade de todas as bebidas alcoólicas. Segundo ele, a questão do consumo do álcool, e a sua publicidade, afeta a sociedade de uma forma abrangente – de um lado, há a questão de ser uma indústria e, como tal, gerar trabalho e renda e, de outro, tem relação direta com prejuízos à saúde e o estímulo à violência. Por esta razão, há um grande número de interesses não congruentes que precisam ser equacionados pelo Estado.


Na questão específica do álcool, o primeiro marco normativo foi estabelecido pela Constituição de 1988, mas apenas em 96 foi aprovada a Lei 9.294, que resolveu parcialmente a questão. Esta lei permite a publicidade apenas das bebidas com graduação alcoólica abaixo de 13 graus.


Para o procurador Lopes Guimarães, o correto seria haver a proibição total. Segundo ele, o marco legal atual deixa de fora bebidas intensamente consumidas como a cerveja, que tem um grande alcance entre os jovens. ‘Não vale nada essa proibição de publicidade excluindo a cerveja. É preciso avançar muito nesse campo’, afirmou.