Monday, 18 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Que capitalismo é esse?

Alguns me perguntam se eu gostaria de viver num regime socialista, pois eu daria a entender que prefiro o socialismo. Já perdi a conta de quantas vezes me ‘expulsaram’ do país, ‘mandando-me’ ir viver em Cuba por eu dizer aquilo que não sou eu quem diz, mas os números do IDH, entre outros, que mostram que, na média da população, é muito melhor viver na ilha do mar Caribe do que no Brasil.

Convenhamos que, para pessoas como nós, de classe média, pensando rapidamente não há escolha possível entre o socialismo e capitalismo. É claro que nenhum cubano tem os bens de consumo que temos. O máximo que todos têm, naquele país, é dignidade social, um ‘bem’ que não falta a pessoas como nós.

Ninguém aqui passou fome, ao menos nos anos mais recentes – espero. Nenhum de nós padeceu de dores insuportáveis esperando por horas no corredor de um hospital público, ou foi recusado em algum trabalho por não ter ‘boa aparência’, ou foi barrado ao tentar ingressar em algum clube, ou vive em barraco em região sem sequer saneamento básico. O mesmo não vale para dezenas de milhões de brasileiros, mas vale para todos os cubanos. Você não verá crianças mendigando ou se prostituindo em Cuba. Famílias não vivem sob os viadutos cubanos e não há notícias de pessoas comendo ratos ou cactos naquele país por falta de dinheiro para comprar comida.

Benesses do socialismo

O socialismo é bom para os pobres e, sobretudo, para os miseráveis, mas uma perda de qualidade de vida paras os estratos sociais superiores, menos no que diz respeito à segurança, pois, como se sabe, o índice de criminalidade em Cuba é extremamente baixo, mais baixo, inclusive, que em países ricos como os Estados Unidos ou os países da Europa Central.

Então, prefiro viver no capitalismo, pois gosto do meu carro, do meu bem localizado e confortável apartamento, dos confortos capitalistas todos de que desfrutam os brasileiros de classe média para cima. E, aliás, acho que o capitalismo de verdade, como há nos Estados Unidos, seria uma solução quase suportável para um país como este.

O problema é que, no Brasil, não temos capitalismo de verdade, como nos EUA. O que vige aqui é capitalismo para as classes B, C, D e E, e socialismo para a classe A.

As grandes empresas brasileiras, por exemplo, desfrutam das benesses do socialismo, pois o dinheiro de todos é usado para alimentá-las. O BNDES, por exemplo, ainda destina mais recursos para grandes grupos econômicos. Mesmo com Lula, um presidente supostamente de esquerda, ainda se vê, no Brasil, uma pequena empresa ter muito mais dificuldade de conseguir recursos do Banco de Desenvolvimento Econômico e Social do que uma grande.

Uma inverossímil ‘imparcialidade’

Um dos fatos que comprovam esse fenômeno é o de que, no Brasil, não temos, por exemplo, grandes jornais de esquerda. É uma situação muito diferente da que há em países como França, Itália ou Estados Unidos. Na França, há grandes jornais de esquerda como o Libération ou L’Humanité; na Itália, L’Unità, ligado ao ex-Partido Comunista, circula desde o fim da Guerra, e há o independente Il Manifesto; nos Estados Unidos, há o socialista The Nation e na Grã-Bretanha, The Independent. Mas, e no Brasil, o que temos?

Para não me estender demais, fiquemos só no Brasil, apesar de que em praticamente toda América Latina a grande imprensa é conservadora de direita, como aqui. Neste país, os três maiores jornais (Folha, Globo e Estadão), que são responsáveis por uma tiragem diária de menos de um milhão de exemplares, obedecem a uma linha político-ideológica uníssona, o que torna suas coberturas jornalísticas e espaços de opinião monocordicamente alinhados com o ideário dos partidos que se apoderaram do consevadorismo direitista – o PSDB e o DEM (PFL).

Por mais que neguem, esses grandes jornais adotam todas as teses da oposição de direita. De vez em quando, numa tentativa vã de ‘comprovar’ uma inverossímil ‘imparcialidade’, esses veículos soltam alguma crítica fugaz à direita demo-tucana e a Folha arrisca até algumas denúncias fugazes – que são formuladas e logo depois abandonadas.

Entre o consumo e a dignidade

E o que tem o capitalismo a ver com tudo isso? Ora, todos estão carecas de saber que há uma demanda reprimida por jornais de esquerda. Num país verdadeiramente capitalista, essa demanda deveria provocar uma corrida empresarial-jornalística para supri-la, pois um jornal de esquerda teria mercado certo entre o expressivo contingente de leitores que têm que engolir o reacionarismo de Folhas, Globos, Estadões, Vejas, Épocas e congêneres.

Que capitalismo é esse no qual nem a promessa certa de ganhar dinheiro a rodo – por falta de concorrência – com o leitorado em potencial de jornais de esquerda atrai os capitalistas? Por que não se financia um jornal de esquerda num país em que esse tipo de jornal tem uma demanda enorme e reprimida?

Quem disser concentração de renda, acertará a resposta. Essa concentração é tão grande no Brasil, esse reduzido universo social de cima tem tanto dinheiro, que pode se dar ao luxo de desprezar um ‘negócio da China’ para não contrariar a própria ideologia ou seus prepostos (demo-tucanos) que atuam no cenário político.

Então, esse capitalismo que temos aqui, socialista para os de cima, não me agrada. Concentra as mazelas de ambos os regimes sem conter as benesses de cada um.

Conclusão: viver no Brasil, com meus bens de consumo comprados a prestação, mas correndo risco de vida em cada esquina de um país em guerra civil, talvez seja pior do que viver em Cuba com o mínimo indispensável à dignidade, mas podendo ter boa dose de confiança de que não tombarei sob as balas de um garoto de 13 anos em algum semáforo.

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Comerciante, coordenador do Movimento dos Sem Mídia, São Paulo,SP