Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Questões sociais como casos de polícia

Jean Valjean é um personagem lapidar da literatura universal, extraído da vida pela pena poderosa de Victor Hugo e a ela sempre voltando, pois a era capitalista se caracteriza pelos mais cruéis abusos e pelas injustiças mais chocantes.

Para as novas gerações, vítimas da faina incessante da indústria cultural no sentido de obnubilar as consciências, explico: personagem principal da obra-prima Os Miseráveis, Valjean perde os pais ainda criança, é criado pela irmã mais velha e, quando esta enviúva com sete filhos para criar, vai à luta para sustentar sua família. Num inverno em que não consegue emprego, o desespero o leva a roubar um pão. Preso e condenado a cinco anos de trabalhos forçados, acaba cumprindo 19, em função das várias tentativas de fuga.

Magníficos atores, como Friedric March, Jean Gabin, Gerard Depardieu e Liam Neeson, interpretaram Valjean nas versões cinematográficas de Os Miseráveis – que somam, pelo menos, 12. Para mim, ele sempre terá a forte imagem de Lino Ventura, protagonista da minissérie de TV dirigida em 1982 por Robert Hossein e depois condensada para o cinema. Talvez porque este carismático ator italiano, mais lembrado por suas interpretações de gangsteres e delegados na grande fase dos filmes policiais franceses (anos 60 e 70), fosse parecidíssimo com um tio-avô meu…

Vale a pena mobilizarmo-nos

Já os pobres coitados que revivem o drama de Valjean por caírem em armadilhas do destino são incontáveis – porque o capitalismo, no que tem de essencial, em nada melhorou desde o século 19 nem será redimido jamais; vai continuar tangendo o homem a ser o lobo do homem, enquanto perdurar. Valjean aparece no noticiário da última 2ª feira (9/8) em versão feminina: Juíza manda prender desempregada, mãe de 10 filhos, por calote de fiança:

‘Uma diarista desempregada, mãe de dez filhos, moradora de uma favela em Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo, corre o risco de ser presa a qualquer momento se não pagar R$ 300,00 à Justiça.

A cobrança se refere à fiança por ela ter sido presa em flagrante e depois libertada ao tentar furtar roupas de um supermercado. O crime aconteceu no dia 30 de julho.

Claudinéia Freitas Santos, 38, foi até um supermercado Carrefour e tentou furtar dez bermudas e dois sapatos para os filhos. Um segurança a flagrou e chamou a polícia. Acabou presa em flagrante.’

É óbvio que casos assim pipocarão enquanto estivermos submetidos a uma forma de organização econômica-política-social que privilegia a ganância, o privilégio e a competição autofágica entre os homens, ao invés do atendimento das necessidades humanas, da igualdade de oportunidades e da solidariedade universal. Mesmo assim, vale sempre mobilizarmo-nos para que as ocorrências escabrosas noticiadas tenham um desfecho justo – pois, além de evitar-se o pior para as vítimas em questão, o exemplo poderá beneficiar a outros(as) coitadezas, em circunstâncias semelhantes.

Empresa perdeu oportunidade de exibir face humana

Então, escrevi um artigo chamando a atenção dos companheiros para o caso, tão logo a imprensa o noticiou. E os estimulei a mandarem e-mails de protesto à rede Carrefour. O sempre combativo Carlos Lungarzo, da Anistia Internacional, entrou de imediato na cruzada. E houve expressivo número de internautas que manifestaram seu inconformismo às profissionais de comunicação social do Carrefour. A todos chegou a mesmíssima resposta, palavra por palavra:

‘A empresa não prestou queixa, mas tomou as providências cabíveis para casos de furto, que é a de acionar as autoridades policiais.’

E entregou o destino de Claudinéia nas mãos do Estado, que ‘assume a posição de acusador’ porque ‘o caso foi definido como crime de ação penal incondicionada’. Ou seja, a empresa lavou as mãos, escorada nos formalismos: ‘Em outras palavras, o Carrefour não tem legitimidade para autorizar a revogação da fiança decretada pela Justiça.’ Então, estamos conversados.

Assim como em Os Miseráveis, cada vez que um Valjean qualquer surrupiar um pão do Carrefour, a empresa o entregará à polícia e vai dar suas responsabilidades por encerradas. Não terá o mínimo interesse em verificar se o furto foi motivado pela falta de dinheiro para comprar drogas ou pela falta de alimento para evitar que uma criança morresse de fome. Dá tudo no mesmo. Porque questão social e caso de polícia são a mesma coisa, na ótica que se depreende das afirmações dos porta-vozes do Carrefour.

E, para não desembolsar 300 reais numa fiança nem entregar alguns vestuários e cestas básicas para uma pobre coitada, a empresa perdeu a oportunidade de exibir uma face humana – aquela que seu gerente deveria ter mostrado, liberando Claudinéia, já que não houvera prejuízo.

Imprensa e blogueiros evitam o pior

Profissionalmente, embora detestasse tal trabalho, já tive de zelar pela imagem de muitas companhias. Cheguei a conquistar prêmios nacionais e internacionais por meu desempenho. Pois bem, em minha atividade de relações públicas, eu avaliaria como catastróficos os danos causados à imagem do meu cliente num caso como este. Pode-se até compreender que um gerente mais realista do que o rei corra a chamar a polícia em episódio na qual não havia a mínima necessidade disso.

Mas é ao rei que compete dar a última palavra. Então, um diretor do Carrefour deveria vir a público para deixar claro que, embora a rede tenha sido fundada na França, não aprova nem repete a inclemência face aos miseráveis que Victor Hugo criticava nas autoridades francesas do século 19. Pois há sempre a chance de uma queixa dessas, que não fere a letra da Lei mas estupra o espírito da Justiça, ser recebida por autoridades brasileiras igualmente insensíveis. E de uma mãe de 10 filhos acabar na prisão por causa de dez bermudas e dois sapatos, assim como Jean Valjean passou 19 anos em trabalhos forçados por causa de um pão. Com a diferença de que Claudinéia é uma senhora de carne e osso, levando vida das mais sofridas, e não um personagem literário.

Felizmente, a Justiça paulista voltou atrás na própria 2ª feira, revogando o mandado de prisão que expedira quatro dias antes, de forma que a diarista responderá ao processo em liberdade. A péssima repercussão junto à opinião pública fez com que começassem a corrigir uma situação de iniquidade extrema. Espanta, no entanto, que o caso tenha ido tão longe. E que, antes da intervenção da imprensa e dos blogueiros, tendesse a reeditar a desumanidade do capitalismo selvagem, supostamente deixado para trás.

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Jornalista e escritor; seu blog