Wednesday, 17 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Rachel Bertol

‘Foi buscando inspiração em diferentes fontes, como o Orkut, que os diretores da Encma, empresa paulista de marketing de relacionamento, começaram um ano atrás a elaborar o Portal do Leitor (www.portaldoleitor.com.br), que começa a funcionar no próximo 16 de novembro. O objetivo é fornecer informações sobre todos os livros em catálogo no Brasil – cerca de 250 mil -, além de permitir a interação entre os próprios leitores. De acordo com Yara Levy Ruscio, uma das idealizadoras do projeto, pretende-se obter a adesão de pelo menos um milhão de pessoas em dois anos, com base no potencial apontado em pesquisas de mercado da Câmara Brasileira dos Livros (CBL), segundo a qual há 11 milhões de leitores no país com acesso à internet e sete milhões de internautas que se dizem não leitores.

Em vez de disputar espaço com as livrarias digitais, que hoje fornecem cada vez mais informações sobre os livros disponíveis no mercado, o Portal, explica Yara, quer se tornar o ponto de encontro de livrarias, editoras e escritores com os leitores. No novo espaço virtual, os associados poderão, a exemplo do que acontece no Orkut, preencher cadastros individualizados sobre suas preferências literárias, criar comunidades de debate sobre temas de seu interesse ou até se aventurar em blogs pessoais. Mas a liberdade não será total: o olho do big brother estará atento a excessos.

– Haverá um gerenciador de conteúdo para impedir a criação de comunidades que não sejam ligadas ao livro. Vamos monitorar o Portal – avisa Yara.

Associado fiel terá descontos em livrarias

Em dois anos, a idéia é ter no mínimo 300 editoras associadas. Quanto mais o leitor usar o Portal, mais pontos ganhará e, como benefício, obterá descontos na compra de livros. Haverá informações sobre as livrarias (‘físicas’) mais próximas da casa do internauta e o link para as lojas virtuais que possam atendê-lo. O objetivo é ter 500 pontos de venda associados em dois anos. Mas a meta da Encma, que está investindo R$ 5 milhões no projeto em três anos, é ainda mais abrangente: além do Brasil, o Portal terá versões em espanhol e deverá começar a funcionar já em 2006 no México, na Argentina e no Chile. Numa segunda etapa, não se descartam atividades em toda a América Latina e em Portugal.

– O México tem, aliás, um mercado editorial com perfil parecido com o do Brasil – diz Yara, que há 20 anos trabalha no segmento editorial, com experiências em áreas variadas, da edição à impressão.

A poucos dias de entrar oficialmente no ar, quatro mil pessoas, conta a diretora, já estão pedindo para se cadastrar. A partir de janeiro haverá cadastros de perfis diferenciados, para atender, por exemplo, professores de ensino fundamental, profissionais da área jurídica, pais em busca de obras didáticas.

Na hora de comprar, o leitor poderá pesquisar o melhor preço oferecido no mercado. No pedido de cotação, bastará indicar a região onde quer receber o livro e o título procurado e, em poucos dias, promete-se uma mensagem com preços e formas de pagamento. A divulgação das obras também será sofisticada, com a possibilidade de chat com escritores ou até trailers das obras, como diz Yara, em que se exibiria uma entrevista com o autor ou com algum especialista no assunto ou, ainda, com um dos personagens retratados, como muitas vezes é possível na não-ficção.

Segundo Yara, sebos também estão estudando a possibilidade de se associar ao Portal, que deverá evoluir à medida que surgirem novas possibilidades digitais no mundo dos livros.

– Temos recebido muitas mensagens de escritores independentes que gostariam de mostrar seu livro na internet. Poderemos abrir espaço para eles também – afirma ela.

Ferramenta para conhecer os hábitos dos leitores

Outra possibilidade é tornar disponíveis para download obras que estejam em domínio público. O Portal, entretanto, não será apenas uma ferramenta para informar e orientar o consumo. No espaço ‘Boa ação de livros’, haverá a indicação de ONGs, associações e bibliotecas que aceitam doações.

– O Portal do Leitor não terá banners . Estamos preocupados com ética e qualidade. É um espaço purista, para o leitor – afirma Yara.

Para o mercado, além de ser mais um canal de divulgação, o Portal, com o tempo, poderá se transformar em rica ferramenta que permita conhecer mais a fundo hábitos e demandas do leitor brasileiro.’



MEMÓRIAS DO ESQUECIMENTO
Patrícia Villalba

‘A tortura, em lembranças dilacerantes ‘, copyright O Estado de S. Paulo, 6/11/05

‘Do período militar, muito se fala sobre dados históricos, mas pouco se compreende das sensações. Os machucados são expostos em fotos de época e em reconstituições cinematográficas, mas a dor está ainda presa na garganta dos que passaram pela tortura. O jornalista e escritor Flávio Tavares dedicou-se justamente a isso, a abrir suas memórias da maneira mais dilacerante possível. Em Memórias do Esquecimento (Record, 302 páginas, R$ 39,90) que depois do lançamento em 1999 sai agora em edição ampliada, ele narra o famoso episódio do seqüestro do embaixador dos EUA Charles Elbrick, em 1969, no Rio. Tavares foi um dos 15 presos políticos que foram ‘trocados’ pelo embaixador e, então, exilados no México. Levou 30 anos para pôr suas impressões no papel – um pouco porque, é incrível, só recentemente se pôde tocar neste assunto sem medo de represálias; e muito porque era extremamente doloroso escrever sobre aquela experiência. ‘Este livro foi a minha catarse ou minha salvação e libertação interior. Relatei o Brasil da ditadura e da luta armada sem nada ocultar, nem deles (os da ditadura), nem de nós (os que se opunham à ditadura)’, diz ele, em entrevista ao Estado. ‘Só enfrentando a memória pude vencer os fantasmas e viver em paz.’

A epígrafe do livro, logo de cara, já chama a atenção – ‘O passado não é aquilo que passa, é aquilo que fica do que passou’. Dito isso, como você lida com seu passado? E remetendo à epígrafe, o que ficou dele?

Ficou tudo e, mais do que tudo, a dor. Mas não com o sentido de sofrimento nem de ressentimento, mas a dor por não conseguir me libertar daquela visão de horror que a prisão, a tortura (e até a morte) tinham deixado. Foram 30 anos de luta interior, dia a dia. Escrever o livro me libertou dos fantasmas e me fez entender o passado como ‘aquilo que fica do que passou’. E, mais do que o sofrimento, ficou o sobrevivente. Sou isso: um sobrevivente do passado, o que ficou do meu passado.

De onde veio o ímpeto para se envolver na resistência?

Minha participação na resistência foi mais uma reação moral que política. Há um capítulo do livro sobre isso. As cenas de adesismo à ditadura e adulação a tudo o que dela viesse, às quais assisti em Brasília por parte de dezenas de políticos após o golpe militar, eram mais abjetas que o autoritarismo do regime imposto. Negavam tudo o que a minha geração aprendera sobre democracia. Em 1964, fiz 30 anos. Minha geração tinha se educado no debate e na crítica, não na obediência cega. Após o Ato-5, em dezembro de 1968, todos os caminhos ‘convencionais’ se fecharam. Nos jornais, a ditadura censurava até a previsão do tempo, como ocorreu nos jornais do Rio, obrigados a baixar a temperatura em cinco graus para evitar que os turistas europeus cancelassem a vinda para o carnaval carioca…

Vendo o Brasil de hoje, em meio às denúncias que atingem o governo, o sr. acha que valeu a pena?

Nosso gesto foi generoso, nada queríamos para nós próprios, nem o poder. Não nos escondemos debaixo da cama e, só por isso, já valeu a pena. Muitos não sobreviveram, e é terrível isso. Mas, pelo menos, não sofreram vendo essa mixórdia sórdida do PT, que em nome da revolução social, assimilou o pior da direita populista e demagógica, com a tradição corrupta do ‘ademarismo’ e do ‘malufismo’.

O sr. chega a lamentar a juventude que lhe foi tomada?

Não, jamais. Não perdi minha juventude. Ao contrário, minha geração teve uma juventude dinâmica, inconformista, rebelde no melhor sentido. Pessoalmente, eu e muitos da resistência armada aprendemos mais com os erros do que com os êxitos eventuais da vida. Alguns talvez não tenham aprendido nada, mas a História foi sempre assim, dividida entre visionários e cegos, magros e gordos.

Somos o centro de atração de todos, quase do mundo inteiro, mas nós, os 15 prisioneiros políticos, não sabemos disso e, já no México, com o avião em terra, permanecemos amarrados aos banquinhos de lona, algemados, inertes, alheios ao que somos, sem conhecer o que farão de nós. Não nos importamos sequer com o nosso destino, pois nele não podemos influir. Queremos descer desse avião, só isso.

O comandante, porém, tem ordens de nos entregar ‘unicamente à Embaixada do Brasil’, que, por sua vez, recebeu ordens do Itamaraty de nos retirar do aparelho em fila, levarmos à embaixada para voltar a nos identificar (…) e, depois, nos deixar ao governo do México, como um fardo registrado em livro contábil. Em tudo isso, passar-se-ão 2 ou 3 horas, mas o Itamaraty não quer perder essa oportunidade de mostrar que também é uma repartição policial e aparentar trabalho nesse episódio.’



THE NATION
Mario Sergio Conti

‘Democracia: cafés, opinião, blogs ‘, copyright O Estado de S. Paulo, 6/11/05

‘‘Uma Questão de Opinião’ (A Matter of Opinion, Farrar, Straus and Giroux, 458 págs., R$ 77) é um livro que não precisa ser traduzido para o português. Seu autor é o jornalista americano Victor S. Navasky, dono da revista semanal The Nation, um dos bastiões da imprensa de esquerda dos Estados Unidos. A revista foi fundada há 140 anos, nunca foi marxista nem se alinhou a nenhum partido. Como não há publicações semelhantes a The Nation no Brasil, não há por que publicar aqui ‘Uma Questão de Opinião’.

Também não há muitos motivos para lê-lo. Navasky, que se tornou seu editor em 1975, conta que só em três anos de sua história The Nation deu lucro. Esse é o maior problema do livro. Tudo nele gira em torno de dinheiro. Como manter uma publicação cuja circulação é reduzida (atualmente, tem cerca de 180 mil assinantes) e da qual os grandes anunciantes fogem – eis a questão que atormenta Navasky, e com a qual ele atormenta seus eventuais leitores.

Em busca da resposta, o jornalista descolou uma bolsa de estudos para participar de um curso especial da Universidade Harvard, dedicado exclusivamente a grandes empresários (o banqueiro Pedro Moreira Salles foi um de seus colegas). Lá, encontrou a resposta. Para obter lucro com The Nation, explicou-lhe um financista, o que ele tinha a fazer era fechar a revista, vender sua lista de assinantes, a um preço estimado em US$ 2 milhões, e aplicá-los em Letras do Tesouro americano. Com isso, poderia se aposentar confortavelmente.

The Nation sobrevive por meio de doações. Periodicamente, um milionário liberal se apieda da revista e lhe injeta alguns milhões de dólares. No momento, o doador-mor é o ator Paul Newman. Para influenciar os ricos, a ponto de convencê-los a fazer doações para uma revista que teoricamente defende os trabalhadores, Navasky teve de se tornar um vendedor peculiar, um vendedor de ideologia. Espertamente, ele não tenta impor a seu mercado idéias ou plataformas de esquerda. Milionários não precisam disso. O que Navasky vende a consciências culpadas são valores tradicionais: a necessidade da dissidência, da pluralidade, do entrechoque de idéias.

Em busca de argumentos mais sólidos, Navasky sai, numa louca cavalgada, em busca de uma teoria. Nada melhor, no caso, que uma teoria respeitável, européia. É assim que o americano pragmático, em busca de grana, se encontra com o idealismo germânico, representado pelo filósofo Jürgen Habermas, herdeiro espiritual da Escola de Frankfurt, de Adorno & cia. Cândido, Navasky confessa que achava Habermas indecifrável, devido a sua prosa ‘traduzida do alemão’ e ‘dominada por jargões’ e também porque não conseguia entender nada da teoria crítica da Escola de Frankfurt. Mesmo o conceito de ‘esfera pública’, central ao pensamento do filósofo germânico, o americano reduz a um espaço ‘a meio caminho entre a esfera política e governamental e a esfera privada e pessoal’.

Apropriadamente, eles se encontram em Frankfurt. Navasky lamenta de início a decadência das instituições associadas ao debate público. ‘Café-da-manhã’, diz Habermas, interrompendo e surpreendendo seu interlocutor. O café-da-manhã, explica o filósofo, é uma instituição crítica para o debate público. É durante o café-da-manhã que o leitor europeu toma conhecimento, por meio dos jornais de referência, dos argumentos racionais que circulam na esfera pública e, intimamente, pondera acerca de sua validade e toma posição em relação a eles.

A instituição do café matutino ecoa a idéia de Habermas de que os cafés, que floresceram a partir do século 16 nas grandes cidades européias (só Londres tinha 3 mil cafés no início do século 18), foram essenciais para a consolidação da democracia burguesa. Foi nos cafés de Viena, Paris ou Berlim que se formou a esfera pública. Foi neles que políticos, jornalistas, intelectuais, literatos, artistas e boêmios debateram argumentos expostos na imprensa de opinião. E por meio da discussão aprofundaram e refinaram as idéias que, pouco a pouco, solaparam os poderes absolutistas, imperiais, eclesiásticos e aristocráticos.

Navasky pergunta se os periódicos de opinião ainda têm sentido na ‘nova era da informação’. Habermas responde dizendo que ele mesmo é um ‘fora de moda’, no sentido em que acredita mais em textos que em apresentações orais, e, portanto, considera que ‘a imprensa escrita ainda está no coração de todos os meios de comunicação que temos hoje’. O americano muda o rumo da conversa, focalizando temas menores ou marginais, até que o pragmático e o idealista se despedem. Fica no leitor, ou ao menos neste leitor, a impressão de que Habermas deu uma resposta capenga, ou por demais subjetiva, à indagação pertinente de Navasky.

Convém primeiro descrever a tal nova era da informação, tal como ela existe no Brasil: a miríade de estações de TV a cabo, os sites e blogs a perder de vista da internet, a imprensa popularesca e os jornais e revistas que são lidos pela dita elite. Adicione-se que no Brasil não há cafés. O que há são bares, locais onde o álcool e a conversa fiada dão o tom, e não a cafeína e o debate, como ocorre nos cafés europeus. (Bar não é o local adequado para conversar sobre política, tanto que Hitler tentou dar um golpe de Estado numa cervejaria.) Também não existem jornais e revistas de opinião – aqueles que defendem um corpo de idéias articuladas e se dedicam mais à análise, à crítica e à proposição que ao noticiário.

Nessa situação, fica difícil defender que o ‘argumento impresso’ é o núcleo do sistema de comunicação. Pelo seu alcance e influência, o meio que comanda o sistema é a televisão. E televisão, sobretudo aqui, onde o comercialismo impera, significa imagens visuais, rapidez, estridência, superficialidade, culto às celebridades e a redução do espectador à condição passiva. Os procedimentos da televisão entraram até na imprensa escrita de qualidade, provocando estragos: sensacionalismo, vitupério e desqualificação sistemática de todos aqueles que não concordam com os ditames da Lei de Bahia (a lei diz respeito a Luis Alberto Bahia, jornalista veterano que caracterizou a grande imprensa brasileira do seguinte modo: revolucionária na editoria de arte, liberal na de política e conservadora na de economia).

E há a internet. Nela, de fato, há opinião para todos os gostos. E há a oportunidade de o indivíduo emitir seus pontos de vista em fóruns, blogs, orkuts e comunidades virtuais. Na ausência de bons estudos sobre a internet, resta apelar para o subjetivismo. Na semana que antecedeu o referendo sobre as armas, houve vários e-mails, que circularam amplamente, defendendo razoavelmente as posições em disputa. Mas, no geral, me parece que predominaram a manipulação e a simplificação, quando não a mentira pura e grossa – os instrumentos clássicos do marketing político, essa atividade mercenária.

A política na internet não escapa, ou não escapou até agora, da percepção geral que se tem da política popularmente: um misto de disputa entre quadrilhas, campeonato de futebol (as eleições) e fofocas de celebridades. O que falta na internet é café, no sentido que lhe dá Habermas.’



MÍDIA & ATIVISMO
Nelson de Sá

‘A Subcultura da Ciência ‘, copyright Folha de S. Paulo, 6/11/05

‘Professor-assistente no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Chris Csikszentmihályi, 36, é também artista e já fez até turnê por clubes com ‘DJ I, Robô’, uma das suas criações no Media Lab -o laboratório de mídia da instituição. São muitos os aparelhos que desenvolveu, sempre alternativos aos da pesquisa corrente, voltados ao mercado ou aos armamentos.

O ativismo político está em quase tudo o que faz, do mini-helicóptero para desativar câmeras de vigilância (‘Throwing Light’) a um robô jornalista para campos de guerra (‘Afghan Reporter’). Csikszentmihályi, que estará nesta semana em São Paulo para um evento de mídia, falou por telefone à Folha na quinta-feira passada. Leia trechos a seguir.

Folha – O sr. é professor de arte e ciência no MIT e trabalha na intersecção arte/ciência há uma década. Qual é a sua visão da oposição que se costuma fazer entre as duas áreas?

Chris Csikszentmihályi – Eu não diria que tenho trabalhado entre arte e ciência, mas entre arte e tecnologia. Tem uma diferença essencial aí. Em toda parte, mas sobretudo nos EUA, houve grandes mudanças há uns dez anos, sobre quem financia a ciência e como ela funciona.

Nos últimos quatro anos, desde 2001, houve outra grande mudança. Eu prefiro dizer que não estou envolvido com ciência, porque quase ninguém sabe mais o que é [ri]. Temos muitas idéias sobre o que é, do início do século 20, mas a ciência mudou tanto…

Então, trabalho com tecnologia e arte. E o que tenho a dizer sobre isso é que a tecnologia é uma maneira de pegar o conhecimento humano, as agendas sociais, políticas, o poder e incorporá-los ao mundo real.

Nos últimos cem anos ou coisa assim, a tecnologia foi se tornando cada vez mais um domínio de engenheiros, de empresas, de pesquisa estatal, e eu estou tentando expressar o que artistas fariam se tivessem acesso ao processo -de pegar valores e agendas para incorporá-los a um poder material.

Folha – O sr. trabalha no Media Lab, que é financiado também pelo Departamento de Defesa dos EUA. Como lida com isso?

Csikszentmihályi – É complicado em vários níveis. Em primeiro lugar, parte do nosso financiamento vem do Departamento de Defesa, mas é um aporte muito pequeno, se comparado a outras instituições. Na verdade, mais de 80% vêm do mundo corporativo. Comparado a escolas regulares de engenharia, como a Carnegie Mellon ou a Universidade da Califórnia, recebemos pouco. Dito isso, ainda há dinheiro do Departamento de Defesa. E o MIT, do qual o Media Lab é parte, recebe muito dinheiro do Pentágono e de outras organizações que são extensões do poder norte-americano hoje.

A pergunta é: como eu mantenho a minha visão de pesquisa, em confronto direto com o Departamento de Defesa dos EUA? E a resposta é: eu não durmo muito [ri]. É uma situação muito tênue. Tenho um apoio incrível dos meus colegas e de muita gente no campus. Mas é sempre uma questão de quanto tempo eu ainda poderei fazer esse trabalho.

Folha – Alguns dos seus aparelhos confrontam diretamente a guerra e outras ações políticas de seu governo. Você poderia contar um pouco sobre produtos como o ‘ISEE’ e o projetor ‘Throwing Light’?

Csikszentmihályi – São intervenções na pesquisa regular de tecnologia que se faz nos EUA. É muito comum para um engenheiro ser treinado com seus professores dizendo que política e ciência não se misturam. É irônico, porque na verdade o MIT ou uma escola normal de engenharia recebem a maior parte de seu dinheiro das agências, inclusive do Departamento de Defesa.

Toda a pesquisa feita no campus é inerentemente política. E há essa cegueira que os tecnólogos americanos e de todo o mundo trazem para o seu trabalho. Eles pensam que estão fazendo um trabalho neutro, social ou politicamente, mas que no fundo é dirigido pelas agendas do poder estatal.

Então, o que estamos tentando fazer, no nosso grupo de pesquisa, é um exercício muito simples de olhar, por exemplo, para a inteligência artificial. Poucos sabem que 90% do financiamento da pesquisa de IA, desde sempre, vem dos militares.

No fundo, é ciência militar, tanto quanto a balística ou coisas assim. É um problema. E se a inteligência artificial não é inteligência militar? E se ela tem a ver com poesia ou o amor? Você nunca irá descobrir isso na pesquisa americana, porque todos os pesquisadores de IA são financiados pelos militares.

Folha – E como é a sua intervenção?

Csikszentmihályi – O que nós fazemos é simplesmente observar a pesquisa e inverter o modelo. Dizemos: ‘Ok, como desenvolver um projeto de robótica em que a pesquisa experimental inverta a relação de poder, para quem não é financiado?’.

Um caso típico é o dos jornalistas, espécie de cães de guarda contra guerras ruins ou, como no Vietnã, soldados agindo de uma forma que os americanos não queriam. E ninguém investe em robótica para jornalistas [ri]. Então eu construí um robô para a guerra no Afeganistão, para verificar o que estava acontecendo lá.

Folha – O sr. criou um aparelho, ‘DJ I, Robô’, que teve impacto no movimento de música eletrônica, na cultura comercial. Como você vê esse lado do seu trabalho?

Csikszentmihályi – Bem, eu diria que foi bem pequeno o impacto na cultura comercial [ri]. O projeto era uma crítica à cultura comercial na indústria eletrônica. Naquele momento, ficou claro que o DJ era como o guitarrista nos anos 70: estava se tornando muito mais popular do que outros músicos ou instrumentistas. E muitas, muitas empresas decidiram entrar no mercado, pensando: ‘Por que não criamos hardware de música para DJs?’.

Mas elas queriam produtos digitais, em vez da velha plataforma analógica. Começaram a dizer que no século 21 você não precisaria mais de disco, que poderia fazer o mesmo com arquivos MP3.

Isso soou muito estúpido para mim, porque é o mesmo que dizer os concertos de violino são ótimos e a única coisa errada é o violino. Então eu decidi cometer um erro ainda pior do que o das empresas e disse ‘o problema não é o vinil, são os DJs, porque eles dormem tarde, são viciados em cocaína [ri], espalham doenças sexualmente transmissíveis’. Se você tivesse um DJ robô, tudo seria mais limpo e eficiente [ri].

É claro, era uma espécie de piada, eu queria essencialmente reproduzir o tipo de afirmação que fizeram os pesquisadores do Deep Blue, o sistema de xadrez. E testar se os DJs seriam afetados por um sistema de robótica que poderia realizar um ‘scratch’ muito mais rapidamente do que eles, em shows que poderiam durar seis meses ininterruptamente.

O impacto não foi tanto assim no mercado, mas eu realmente consegui que muitos DJs refletissem sobre a sua arte.

Folha – O sr. estará no Brasil ao mesmo tempo que George W. Bush…

Csikszentmihályi – Ele está sempre tentando roubar o meu show [ri].

Folha – Há muitos protestos programados contra a visita de Bush. Que aparelho o sr. usaria durante uma manifestação aqui?

Csikszentmihályi – Bem, o problema é que desenvolvemos algumas tecnologias para protestos, mas aqueles em que o governo é hostil à causa. E me parece que [o presidente] Lula e o governo brasileiro não são tão contrários aos manifestantes. Não penso que sejam eles que precisem de ajuda. O que eu realmente acho é que a tecnologia fundamental no caso é simplesmente a lei internacional. Tem jeito de vocês prenderem Bush?’



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‘Autor debate o futuro da mídia em São Paulo ‘, copyright Folha de S. Paulo, 6/11/05

‘Chris Csikszentmihályi é um dos debatedores convidados para o ‘Primeiro Encontro ESPM de Comunicação e Marketing – A Mídia e o Consumidor do Futuro’, que acontece amanhã e terça na Escola Superior de Propaganda e Marketing, em São Paulo (tel. 0/xx/11/5085-4651). Além dele, estarão presentes o pesquisador espanhol Antonio Giner, da Innovation International Media, a antropóloga Laura Graziela Gomes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, entre outros. O encontro irá discutir o impacto das inovações tecnológicas no futuro da mídia, as novas configurações e impactos na publicidade, as tendências de mercado, a audiência e outros temas.’