Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Reflexos e ponderações

O caso do grampo na Rede Gazeta, denunciado no dia 10 de dezembro, deixa ainda muitos pontos de reflexão e ponderações para os jornalistas brasileiros e para a sociedade do Espírito Santo. A Rede Gazeta (composta por dois jornais diários, três TVs abertas, uma TV a cabo, quatro rádios e um portal na internet) foi alvo de uma escuta telefônica, realizada pelo governo do estado e autorizada pela Justiça. O pedido de escuta foi apensado ao inquérito que apura a morte do juiz Alexandre Martins, executado a tiros em março de 2003.

A descoberta do grampo ocorreu por acaso, quando o Sindicato dos Jornalistas/ES recebeu carta anônima contendo os documentos que solicitaram o grampo e dois CDs com o conteúdo das conversas gravadas. Inicialmente, descobriu-se que a rede havia sido grampeada por duas vezes, totalizando um período de 30 dias entre março e abril de 2005. Depois, em rápida investigação no sistema guardião (equipamento adquirido pelo governo capixaba em 2003, com capacidade para grampear até três mil telefones simultaneamente), descobriu-se que foram na verdade três períodos de ‘grampeamento’, com mais de seis mil ligações interceptadas. O então secretário de Segurança, Rodney Miranda (demitido três dias após o escândalo ter vindo à tona), tentou reduzir o episódio a ‘apenas um erro de identificação’ dos números grampeados.

O grampo em si configura a mais terrível agressão à liberdade de imprensa e ao sigilo de fonte, atacando de frente o artigo 5º da Constituição Federal e o artigo 1º da Lei de Imprensa (Lei 5.250). Mas, analisando o caso, podemos ver ainda uma série de atrocidades cometidas contra praticamente todos os artigos da Lei de Escutas Telefônicas (Lei 9.296).

A lei diz, por exemplo, que a escuta só pode ser permitida quando houver ‘indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal’ do grampeado. Quer dizer então que a Rede Gazeta era suspeita de ter alguma participação no crime?

Tentando explicar o inexplicável, o governo do estado deu diversas informações desencontradas. Um dos envolvidos no caso afirmou que das mais de seis mil ligações interceptadas na Rede Gazeta, apenas 104 teriam sido gravadas nos dois CDs mandados à Justiça. Dessas ligações, cerca de 70 seriam de conversas sem qualquer ligação com o crime e as demais seriam ligações não completadas.

A Lei das Escutas diz: ‘A gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão judicial, durante o inquérito’. Portanto, se as ligações gravadas no CD e enviadas à Justiça não tinham ligação com o crime, por que não foram destruídas como determina a lei? Há mais. Os delegados que pediram o grampo e a prorrogação de seu prazo (Fabiana Maioral, Cláudio Victor e Danilo Bahiense) chegaram a afirmar que sequer ouviram as gravações. Se não ouviram, como saberiam se o que estava sendo gravado era ou não importante para o caso e, assim, importante para continuar a ser gravado? Por que então pedir a prorrogação do prazo do grampo se, como disseram, sequer estavam ouvindo aquilo que gravavam?

Mais urgente

O que fica claro para toda a população capixaba é que se torna necessária a realização de uma auditoria no uso do guardião. A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e o Sindicato dos Jornalistas do Espírito Santo já pediram a federalização das investigações, com o intuito de que o caso seja apurado pela Polícia Federal, com participação do Ministério Público Federal. A iniciativa da Fenaj e do Sindijornalistas encontra eco em diversas outras entidades do estado (sindicatos, OAB, igreja católica e ONGs), mas não tem amparo no governo do estado. Paulo Hartung prefere uma auditoria da Polícia Civil capixaba, a mesma que pede à Justiça para grampear as pessoas e, depois de autorizada, utiliza o equipamento guardião para ouvir e gravar as conversas dos grampeados.

Qual será a isenção desta auditoria? Isso é muito sério, mas aqui no Espírito Santo, parece não estar incomodando tanto assim. A Rede Gazeta, alvo do grampo criminoso, deveria exigir do governo uma auditoria isenta, feita pela PF e o MPF. Mas, até o momento, não se manifestou, pelo menos publicamente, adotando essa postura. O próprio secretário Rodney Miranda admitiu, em meio ao turbilhão que o envolveu nos dias posteriores à explosão do escândalo, que ‘milhares de telefones estão sendo trabalhados’ pelo guardião. Se há milhares de telefones grampeados, quantos outros ‘erros de identificação’ (como o que supostamente ocorreu no caso da Rede Gazeta) não podem estar ocorrendo neste exato momento?

Exatamente por isso, a exigência de uma auditoria externa se faz a cada momento mais urgente. Fenaj, ANJ, ABI, Sindijornalistas, OAB (advogados também afirmaram ter sido grampeados) e tantas outras entidades mais deveriam se unir para reivindicar a federalização das investigações. Sob o risco de uma apuração feita pela Polícia Civil capixaba ser parcial e incompleta. O próprio governador do estado, com o intuito de mostrar transparência, deveria ser o primeiro a engrossar essa fileira, mas não é o que está acontecendo.

Pouca publicidade

A mídia capixaba reagiu de forma muito tímida ao grampo da Rede Gazeta. A única a dar uma cobertura vasta ao assunto foi a própria Gazeta, ouvindo diversas autoridades, mostrando aos leitores vários ângulos sobre o assunto, esclarecendo dúvidas sobre leis, fazendo infográficos, publicando a opinião de juristas, autoridades, estudiosos. Enfim, uma grande e bem feita cobertura.

Claro, ao se ver agredida em sua liberdade, a Rede Gazeta reagiu como um leão faminto ao ver sua caça: partiu para o ataque. No afã, cometeu alguns erros, como deixar de ouvir nas primeiras matérias a delegada Fabiana Maioral, que deu origem ao pedido da escuta; e divulgar uma lista com nomes e telefones de vários outros grampeados. Contudo, corrigiu o erro e retomou o rumo certo.

As demais redes deram pouca publicidade ao fato. O jornal A Tribuna, líder de vendas no estado e que tem como principal concorrente o jornal A Gazeta (da Rede Gazeta), parecia não saber do grampo, tamanho o descaso com a cobertura do fato. Um tiro no pé: afinal, o leitor de A Tribuna que tivesse interesse em acompanhar o caso do grampo era obrigado a comprar o jornal concorrente. A Tribuna deveria ter feito exatamente o contrário. Deveria ter apurados todos os aspectos do grampo e dar a notícia, se possível, melhor do que A Gazeta, fazendo assim uma concorrência saudável.

Para que brigar?

Os demais veículos de comunicação capixabas também reagiram timidamente ao grampo. TV Vitória e TV Capixaba deram uma matéria aqui e outra acolá, apenas para não dizer que não noticiaram o fato. Fica então uma pergunta: se a Gazeta foi grampeada, será que outros veículos também não o foram? Será que em meio aos ‘milhares de telefones que estão sendo trabalhados’ não existem outros ‘erros de identificação’, fazendo que telefones de redes de comunicação ou jornalistas estejam grampeados equivocadamente? Por que todos os veículos não se uniram para cobrar uma rígida apuração do caso, em defesa da liberdade de imprensa e do sigilo de fonte, apoiando uma auditoria externa?

Ao contrário disso, os demais veículos quase não cobriram o caso. Para muitos jornalistas capixabas, essa postura é demonstração clara de alinhamento dos veículos aos interesses governistas. Muito provavelmente porque tais veículos (assim como a Rede Gazeta, alvo do grampo) dependam da verba publicitária do governo (se não para sobreviver) para manter as contas em dia. Então, para que brigar com aquele que lhe alimenta?

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Jornalista e diretor da Mais Comunicação, que presta assessoria de imprensa ao Sindicato dos Policiais, Sindicato dos Delegados de Polícia e ao Clube dos Oficiais Militares do Espírito Santo e atende empresas