Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Relativizando Sheherazade

Os jornalistas que atuam nos noticiários do SBT – Sistema Brasileiro de Televisão estão proibidos de emitir opiniões durante os programas. A decisão foi divulgada em nota que os jornais noticiam e comentam na terça-feira (15/4).

Embora alcance todos os profissionais da emissora, a medida tem endereço certo: a apresentadora Rachel Sheherazade, que ancora o SBT Brasil ao lado do veterano Joseval Peixoto, e se envolveu em polêmica, em fevereiro, ao justificar a ação de linchadores que acorrentaram um adolescente a um poste no centro do Rio.

A decisão da emissora é uma resposta a pressões de ativistas dos direitos humanos, de parlamentares e do Sindicato dos Jornalistas do Rio, que podiam acabar afetando suas relações com anunciantes. A questão vinha agitando as redes sociais, e a apresentadora aproveitava a polêmica para se manter no foco das atenções, conseguindo na internet a audiência que lhe faltava na televisão. No começo deste mês, quando saiu de férias, correu o boato de que não voltaria à bancada do telejornal.

Mas o que, afinal, detonou a controvérsia?

Rachel Sheherazade, que antes de se tornar âncora do SBT Brasil havia trabalhado em emissoras da Paraíba, onde nasceu, era vista diariamente emitindo opiniões rasas sobre tudo, ao longo do noticiário, repetindo o que dizem regularmente os mais conservadores entre os apresentadores dos programas de cunho policial na TV.

A frase que produziu a celeuma nada tinha de radical: apenas martelava o ramerrão desses arautos da incivilidade, segundo os quais quem defende os direitos humanos é a favor dos criminosos.

Na noite em que noticiou o incidente no Rio, quando um grupo de pessoas deteve e acorrentou a um poste um adolescente negro acusado de furto, ela produziu a seguinte pérola: “Num país que ostenta incríveis 26 assassinatos a cada 100 mil habitantes, a atitude dos vingadores é até compreensível”.

A frase, em si, não provocaria maiores efeitos, não fosse seu empenho em rivalizar com os colegas que narram diariamente as ações policiais, justificando a violência e o preconceito. Num de seus comentários, disse que os defensores dos direitos humanos deveriam “adotar um bandido”.

Incitação ao crime

A decisão da direção do SBT não significa uma tomada de posição contrária ao conservadorismo de sua apresentadora. Provavelmente, se consultado, o dono da emissora, Silvio Santos, não faria reparos às opiniões de Sheherazade: não consta em sua longa biografia a expressão de considerações mais aprofundadas sobre quaisquer questões.

O que provavelmente determinou a mudança no estilo do telejornal foi a possibilidade de uma representação à Procuradoria Geral da República, de iniciativa da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), resultar em punição para a emissora. Como conclusão da ação da deputada, o SBT corria o risco de perder a verba publicitária do governo.

Mais interessante do que as razões de Silvio Santos, porém, é a questão dos limites da liberdade de expressão nos veículos de massa, principalmente nos serviços públicos de radiodifusão cedidos por concessão a empresas privadas. Não se pode determinar que os concessionários sigam esta ou aquela linha de interpretação dos fatos, como parecem pedir algumas manifestações publicadas nas redes sociais, mas é necessário um padrão de responsabilidade.

O episódio Sheherazade reacende o debate sobre a questão das verbas da publicidade oficial, e há os que condenam qualquer gasto público em propaganda. Mas limitemos a conversa ao fato de que todos os governos precisam manter canais de comunicação com a sociedade e eventualmente pagar por eles.

Nesse caso, não se deve relativizar a predominância de opiniões reacionárias na mídia, uma vez que essa força conservadora tende a se opor aos esforços de educação política sobre direitos civis que supostamente motivam as campanhas de governos que se pretendem progressistas.

Por outro lado, não se pode condenar liminarmente toda manifestação que contraria a orientação que o governo gostaria de ver expressa na mídia. Por isso, faz sentido que, ao lado dos chamados “critérios técnicos” na distribuição das verbas oficiais, seja discutida a conveniência de desestimular a ação de comunicadores que agem contra o interesse da maioria, por exemplo, reforçando preconceitos, incitando ao crime e à desordem social do linchamento.

O problema é: como justificar objetivamente tais escolhas?