Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Saliva, manuscrito, lauda, livro, computador

Nesses tempos em que a mídia pouco informa e mais deforma do que forma, convém ler ou reler um artigo precioso que deveria integrar aquele conjunto de textos fundamentais sobre a arte de ensinar. Não veio de nenhum pedagogo stricto sensu, mas da pena iluminada do escritor, professor e cientista político Wanderley Guilherme dos Santos.


Ele lembra que ninguém mais se aposenta com os instrumentos com os quais começou a trabalhar, como ocorria em passado recente (em termos históricos). Isso pode ser observado na própria mídia. Quando as redações aposentaram os manuscritos e passaram a exigir que os textos fossem gerados diretamente em laudas na máquina de escrever, já houvera pequeno sobressalto, que aumentou com a entrada da máquina elétrica. Mas com o advento do computador, a velocidade da invenção tecnológica espalhou órfãos e atrapalhados por todos os lados.


De outra parte, a universidade, sempre lenta em acolher as mudanças, demorou muito para passar do professor cujo desempenho poderia ser medido com um copinho de saliva ao final de cada aula, pois ele passava todo o tempo das aulas num solilóquio atroz e pouco produtivo, ao mestre que tinha diante de si alunos que podiam acompanhar e complementar nos livros o que ele lhes ensinava, pois a invenção de Gutenberg tinha ensejado mudanças profundas na arte de ensinar.


A capacidade de aprender


Ainda assim, elas demoraram a entrar na escola e na própria universidade. O aluno ouvia, cotejava os textos, discordava do mestre e ficava quieto para não atrapalhar a aprovação. Ou, fraco em Matemática e em Biologia, e gênio em Letras e em História, precisava ser padronizado de modo a perfazer um conjunto de conhecimentos medíocres, pois isso constituía a média, o tal coeficiente escolar. As individualidades criativas eram sistematicamente tolhidas, quando não erradicadas, naquele jardim onde deveriam florescer.


Escolas e universidades, sobretudo no Brasil, expulsaram alunos talentosos, alguns dos quais, felizmente, continuaram a aprender por conta própria, perfazendo o grupo de autodidatas, a quem o país tanto deve. Ainda hoje somos beneficiários de figuras exponenciais que aprenderam por conta própria, inclusive na mídia e nas universidades. Na mídia, com jornalistas que, sem curso superior, goleiam os formados com um saber de experiência feito. Na universidade, com luminares que exerceram e exercem a docência sem doutorado algum.


Num resumo claro, eis a tese de Wanderley Guilherme dos Santos:




‘A velocidade de produção do conhecimento e seus subprodutos tecnológicos, inclusive aqueles produzidos nas próprias universidades, é crescentemente superior à velocidade com que as instituições educacionais, universidades incluídas, são capazes de transmitir.’ (‘A ora do anaufabetu’, Insight Inteligência)


Ele propõe uma inversão: fundamentar a educação na capacidade do aluno em aprender, e não, na do professor em ensinar. E sugere exemplos concretos, como o de conceber o computador, não como um recurso didático acrescentado a transparências, filmes etc., mas ‘para implementar um novo conceito educacional’ e assim ‘revelar a possível integração de um conjunto variado de políticas: de formação rápida de recursos humanos, de desenvolvimento industrial, de geração de emprego e de capacitação tecnológica’.


Rearrumar o mundo


Naturalmente, a nova realidade não pode esquecer a ‘repartição de valores e de aprendizado social implícitos na escola’. ‘Todas estas funções devem continuar a ser desempenhadas, porém de maneira diferente.’


O novo aluno de escolas, faculdades, universidades e congêneres seria ‘acompanhado e orientado por um novo tipo de pedagogo, misto de sofista enciclopédico e conselheiro peripatético’.


Imaginoso, ele mesmo reconhece o visionarismo da proposta, mas afirma que ‘não há segunda escolha quando se deseja quebrar o peso formidável da rotina senão o risco da experimentação e do erro’.


Aliás, esta é a definição de ciência de Engels: a eliminação progressiva do erro. Do jeito que as coisas vão na mídia e em escolas e universidades, corremos o risco de eliminar progressivamente a verdade e a busca do saber. Ou por outra: escolas e a universidades vêm sendo cúmplices daquele que dela se afasta porque não consegue se adaptar às novas realidades. Fenômeno semelhante está acontecendo com jornais e revistas, que perdem leitores todos os dias e não podem creditar isso às novas tecnologias.


Seria o cúmulo esperar que as novas tecnologias se adaptassem a elas e a seu torpor multissecular. A passagem do século 20 para o 21 desarrumou tudo! É hora de pensar em modos de rearrumar o mundo à luz de novos conceitos.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)