Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sangue e fúria no Rio

O final da passeata na noite de segunda-feira (17/06) no Rio de Janeiro foi violento e brutal. Barbaridades foram cometidas por ambas as partes: policiais e manifestantes. Um câmera ainda não identificado do canal de TV SBT, durante o Programa do Ratinho, apresentou uma das melhores e mais chocantes cenas da noite: a Polícia Militar, à paisana, a disparar contra a multidão com munição letal. Num movimento que poderia lhe custar a vida, o repórter esgueirou-se entre os policiais e filmou um policial que disparava enlouquecido contra populares suspeitos com uma arma automática. Quase uma hora depois, alguém é filmado sendo resgatado com uma bala no corpo.

Já não havia manifestantes nem ninguém do Movimento Passe Livre, naquela hora. Os organizadores do movimento por reformas nos transportes públicos iniciado em Salvador, Bahia, em 2003, agora negociam com o governo de São Paulo a questão do aumento das passagens e querem mudanças nos rumos dos transportes públicos para o país. Rejeitam a partidarização e afirmam que sua luta é por um novo modelo de transportes públicos, financiado pelo Estado.

No início da caminhada que ocupou toda a extensão da Avenida Rio Branco, um momento emocionante capturado pelo canal pago Globonews: quando um pequeno partido de esquerda tentou entrar no meio da multidão com suas bandeiras, a multidão deu meia-volta em seus calcanhares, voltou-se para a turma do partido e gritou em uníssono: “Fora partidos! Fora partidos!” A tentativa de partidarização da passeata falhou, e passou por cima das associações tendenciosas da cobertura da Globonews e de alguns partidos políticos oportunistas.

Condições precárias

O protesto prosseguiu em paz até perto das 21 horas. Depois disso, a coisa tomou um rumo violento, pontuado por confrontações e pequenas batalhas no centro do Rio. Um carro foi virado e incendiado. Coquetéis molotov foram usados contra a polícia e prédios públicos e construções históricas. A multidão cercou a polícia dentro da Assembleia Legislativa do Rio, e incendiou sua entrada, conforme publicou o Correio Braziliense (17/6).

Naquele momento, quem estava nas ruas formava uma turba de infiltrados suspeitos que não pareciam ter nenhuma ligação orgânica com o movimento. Tentaram atear fogo à antiga igreja de São José e rabiscaram o Paço Imperial com tinta vermelha. Imperdoável. Atacar o judiciário e o legislativo pode ser encarado como uma forma de protesto, mas destruir patrimônio histórico público é barbaridade e burrice. Populares tentaram arrazoar com a turba. Que insistiu em depredar bens comuns de consumo coletivo da população.

As 23h33 no horário local na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, muito ainda havia a ser dito antes de aquela noite terminar. Ela não havia terminado: pequenas agências de notícias no Facebook comparavam as somas de recursos empregados nos jogos do Brasil, e o valor do nosso vexaminoso, vergonhoso e inaceitável salário-mínimo. E chamavam o povo as ruas.

A cidade e o Brasil conheceram finalmente o que já havia ocorrido em quase todo o mundo: enormes manifestações organizadas por redes sociais. E que ninguém, por favor, me fale em “primavera brasileira”. Não somos mais o paraíso tropical, o “Hi-Brazil” medieval dos irlandeses, ou a terra de gente festiva, cordata e inerte. Como disseram os Titãs, “a gente não quer só comida/ a gente quer comida, diversão e arte/ …/ a gente quer inteiro/ e não pela metade”.

A manifestação não tinha como alvo a presidência de um governo democraticamente eleito, sua traiçoeira base aliada ou algum partido político determinado: o povo fez questão de deixar os partidos políticos de fora. O movimento é democracia direta em ação.

Com a palavra os humilhados, atordoados e perdidos políticos do Brasil e seus lacaios, os altos funcionários públicos do governo, usufrutuários de enormes benesses de Estado enquanto o povo é refém de sofrida rotina diária por um salário indigno e condições precárias de vida. Uma gente que agora luta por serviço sociais públicos que atendam com dignidade as necessidades mínimas da população que vive e morre nas grandes cidades do Brasil.

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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor