Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Segredos de liquidificador

Tumultuada e desconfortável, a associação entre alguns dos principais veículos da imprensa internacional e a guerrilha de informações proposta pelo fundador da organização WikiLeaks, Julian Assange, foi ainda assim proveitosa para todos os envolvidos. A partir de julho do ano passado, foram seis meses de manchetes estufadas com documentos militares e diplomáticos dos EUA repassados pelo WikiLeaks. Assange, alçado a um polêmico estrelato, assinou um contrato equivalente a R$ 4,3 milhões para escrever sua autobiografia, que será publicada em abril (a editora brasileira será a Companhia das Letras).

Roupa suja

O conteúdo dos documentos, entretanto, submergiu no monte de roupa suja lavada em público entre os dois lados. Os sócios estremecidos de Assange acham que ele precisa lavar literalmente as dele (‘ele fedia como se não tomasse banho há dias’, escreveu o editor do Times) e fazem balanços da relação em livros lançados na última semana, além de incluir as reportagens feitas a partir dos vazamentos.

Os livros foram editados pelo Guardian britânico, o New York Times e a revista alemã Der Spiegel, formação inicial de um grupo que seria ampliado e viria a incluir a Folha. Os três são, em essência, aliados na disputa que de início opôs Assange ao Times, mas com diferentes ênfases. Em contraponto provisório, saiu nos EUA The Age of WikiLeaks: from Collateral Murder to Cablegate [A Era do WikiLeaks, do Assassinato Colateral ao Escândalo dos Telegramas; US$ 11,95]. O autor, Greg Mitchell, é da revista de esquerda The Nation e mantém um blog em defesa de Assange. A edição do autor – justo na era da espionagem cibernética – é a única não disponível em versão eletrônica. Tampouco está à venda na Amazon, que aderiu ao boicote ao WikiLeaks, sob pressão de congressistas conservadores.

The Guardian

David Leigh e Luke Harding, do Guardian, contam em WikiLeaks – Inside Julian Assange’s War on Secrecy [WikiLeaks – Dentro da Guerra de Julian Assange ao Secretismo; ebook: US$ 13,79] que a associação com o australiano de 39 anos foi iniciativa do repórter veterano Nick Davies.

Assange registrou o domínio WikiLeaks em 1999. O diário britânico, identificado com a social-democracia trabalhista, havia publicado informes sobre corrupção no Quênia conseguidos por ele quando viveu no país africano, enfronhado em ONGs que participaram do Fórum Social Mundial de 2007. Em junho de 2010, Davies iniciou sua própria caça a Assange assim que leu a notícia de que o hacker andarilho estava sendo procurado pelo Departamento de Defesa americano. Era uma consequência da prisão do analista de Inteligência do Exército Bradley Manning, que teria copiado 260 mil páginas de documentos confidenciais quando servia no Iraque.

Rixa

O australiano divulgara dois meses antes o vídeo em que os tripulantes de um helicóptero Apache americano atiram contra supostos terroristas em Bagdá e matam 12 pessoas, entre elas um fotógrafo e um motorista da agência de notícias Reuters. O vídeo, feito pela câmera do Apache em 2007, foi um hit na internet. Mas não teve o efeito político que Assange esperava. Em parte porque a Reuters, que já havia recebido do governo americano uma versão editada das imagens, decidiu não fazer muito barulho.

Em parte também, aponta o Guardian, por causa do título dado por Assange, Assassinato Colateral. Referência a ‘dano colateral’, eufemismo para a morte de civis em bombardeios, era ‘tendencioso’ e ‘leitores e espectadores não gostam de ser encurralados num ponto de vista’. Davies disse a Assange que a imprensa tradicional aumentaria o impacto da divulgação do material em poder do WikiLeaks, além de facilitar sua contextualização. Ele propôs incluir o Times na sociedade, dizendo que a maior proteção à liberdade de expressão nos EUA evitaria que a publicação fosse embargada por ordem judicial.

O australiano topou e incluiu a Spiegel no primeiro lote do material, sobre a guerra no Afeganistão. Eram boletins repletos de siglas e jargões militares. Quando foram publicados, no fim de julho, começou a rixa entre Assange e o Times. Primeiro, porque o jornal foi o único que não incluiu em seu site um link para o WikiLeaks. O argumento era o de que o grupo poderia não ter o cuidado de preservar os informantes, que correriam risco de morte.

Depois, por causa de um perfil de Bradley Manning. Para Assange, o texto ‘psicologizava’ a decisão do soldado de 23 anos de copiar os documentos secretos, ao enfatizar seu histórico de desagregação familiar e sua condição de gay, quando ainda vigorava nas Forças Armadas a regra de ‘não pergunte, não conte’. Por fim, em outubro, um dia depois do início da publicação da segunda remessa do material, sobre a guerra no Iraque, o Times publicou um perfil do fundador do WikiLeaks que este considerou ‘calunioso’.

No mês seguinte, quando estava para sair a última e maior remessa, com despachos de embaixadas e consulados americanos em quase todo o mundo, Assange tentou excluir o Times da sociedade. Mas o Guardian já havia passado os telegramas ao jornal americano. Alegou que o acordo de exclusividade havia sido rompido quando um simpatizante do WikiLeaks entregou uma outra cópia a uma jornalista freelancer. Assange acusou os jornais de ‘roubo’ e disse que a cópia entregue ao Times era ilegal – ‘sem se dar conta de que só havia cópias ilegais’, assinala a equipe da Spiegel em seu livro Staatsfeind WikiLeaks [WikiLeaks, Inimigo Público Número Um; 336 págs.; € 14,99].

O fundador do WikiLeaks conformou-se, não sem antes ampliar sua rede, incluindo Le Monde e El País. Também decidiu distribuir despachos a veículos de fora de EUA e Europa. Em dezembro, Assange acabaria rompendo com Nick Davies, seu contato original no Guardian, quando se tornou ele próprio alvo de um vazamento.

O repórter publicou a íntegra dos depoimentos à polícia sueca das duas mulheres que o acusam de crimes sexuais. Por causa do processo, ele espera o julgamento da extradição pedida pela Suécia na mansão de um improvável protetor, Vaughan Smith, ex-capitão de um regimento de elite e dono do clube Frontline, em Londres, ponto de encontro de jornalistas.

New York Times

A partir dessa sequência de fatos mais ou menos consensual, a avaliação dos envolvidos se diferencia. No texto publicado há 11 dias pelo Times e que abre ‘Open Secrets: WikiLeaks, War and American Diplomacy’ [‘Segredos Abertos: WikiLeaks, Guerra e Diplomacia Americana’; ebook: US$ 8,84], o editor-executivo do jornal, Bill Keller, é muito duro com Assange. Ele o chama de ‘evasivo, manipulador e volátil’. Diz que demonstrava ‘desprezo’ pelo governo dos EUA e que era visto pelo jornal como ‘fonte, e não parceiro’. Relata ‘indiferença’ do WikiLeaks quanto à sorte de pessoas que estariam ameaçadas caso os seus nomes viessem a público.

O editor do Guardian, Alan Rusbridger, é mais flexível. Diz que Assange não cabe fácil num papel, podendo ser ‘fonte, intermediário ou editor’. Avalia que as rusgas mútuas ‘foram, em sua maioria, superadas’. Conta que o hacker, no final, até se ofereceu para negociar a edição dos documentos com o Departamento de Estado – oferta que foi recusada.

‘Não foi demonstrado nenhum prejuízo à vida de ninguém’, diz. O livro julga ‘revoltante’ que tal suspeita seja lançada ‘por generais que tinham galões de sangue de civis em suas mãos’.

Reações

O editor britânico mata a charada ao contrastar as reações do público de cada jornal. Enquanto os leitores do Guardian pediam mais vazamentos, nos EUA ‘a discussão foi amarga e partidária, ensombrecida por ideias diferentes sobre patriotismo’.

Keller acena para esse contraste ao enfatizar o ‘compromisso pessoal’ dos jornalistas do Times com a segurança nacional e sua proximidade do establishment da política externa americana. Ele antecipou para o Departamento de Estado os despachos que seriam publicados, medida que o parceiro britânico não segue.

A decisão sobre o enfoque da notícia também atendeu a ‘musas’ distintas, escreve Keller. A primeira reportagem do Guardian destacou as mortes de civis afegãos; a do Times, o jogo duplo do serviço secreto do Paquistão em relação ao Taleban. O editor do Times diz que as mortes não eram novidade. Tampouco, diga-se, a cumplicidade paquistanesa com os fundamentalistas, tão velha quanto a iniciativa americana de armar combatentes religiosos contra a ocupação soviética do Afeganistão, já se vão mais de 30 anos. Keller conta, a propósito dessa reportagem, que Richard Holbrooke, enviado dos EUA à Ásia Central e que morreu há dois meses, sabia o que seria publicado e planejava fazer ‘do limão uma limonada’: usaria a informação para pressionar o Paquistão a um alinhamento mais fiel a Washington.

Como o Guardian e o Times, a Spiegel alfineta os parceiros. Diz que eles tinham um plano para deixar a revista de fora da divulgação dos telegramas diplomáticos. Insinua que o perfil que o Times fez de Assange, citando ‘especialmente seus inimigos’, foi produzido para aplacar os críticos à direita do diário americano.

Balanço

No meio de tanta intriga, que balanço os livros trazem do conteúdo do megavazamento? Para começar, contagem feita pelo New York Times mostra que a maioria dos mais de 250 mil documentos obtidos pelo WikiLeaks não é confidencial. Cerca de 11 mil são ‘secretos’. E apenas cerca de 3.000, pouco mais de 1% do total, foram divulgados até agora.

Assange, antes um anarquista que defendia o despejo bruto do material, teria se dado conta das virtudes da edição. De todo modo, Keller e Rusbridger contestam os bocejos dos que avaliam que tudo já era sabido. ‘As notícias avançam em centímetros, não em saltos. [Os documentos] trouxeram nuances, textura e drama’ mesmo ao já conhecido, escreve Keller.

Frank Rich, colunista do jornal, dá razão a Assange e a Daniel Ellsberg, o ex-funcionário que há 40 anos vazou ao Times os papéis do Pentágono. Ambos equiparam os documentos de agora aos de então. Ele lembra que nos anos 70 a ofensiva de Richard Nixon (1969-1973) contra a imprensa teve mais atenção do que o conteúdo dos documentos sobre o Vietnã. ‘Também se dizia que não mudariam o curso da guerra, mas foram um marco na retirada em câmera lenta’ das forças dos EUA do sudeste asiático, diz.

David Sanger, repórter do Times, diz que os despachos são prova do ‘pragmatismo extremado’ da diplomacia, mas admite que Assange ‘não está totalmente errado’ ao alegar que eles revelam ‘a contradição entre a persona pública americana e o que se diz a portas fechadas’. Sanger vê nos documentos um retrato realista dos movimentos da superpotência num mundo que considera ameaçador, depois de duas guerras ‘que abalaram sua influência’. O material mostra que a lógica dicotômica transferiu-se da Guerra Fria à guerra ao terror. Daí os relatos confidenciais sobre desmandos de ditadores aliados, como o tunisiano Zine el Abidine Ben Ali, deposto em janeiro, e o egípcio Hosni Mubarak.

O Guardian e o Times apontam possível influência desses telegramas sobre as rebeliões populares nos países árabes, mas não como fator determinante. O que fica claro é que autocratas de todo o mundo desenvolveram a arte de dizer aos emissários americanos o que eles gostariam de ouvir.

Europa

Mas é na relação com as democracias da Europa que as contradições americanas ficam mais evidentes. Os despachos detalham a ofensiva do governo Barack Obama para suspender a investigação no Judiciário da Espanha de seis funcionários de George W. Bush (2001-09) acusados de criar a justificativa legal para a tortura de suspeitos de terrorismo. Na Alemanha, a embaixada faz ameaças e consegue barrar o mandado de prisão e o pedido de extradição de agentes da CIA acusados do sequestro ilegal de Khaled Masri. Alemão de origem libanesa, Masri foi levado ao Afeganistão e solto na Albânia depois que seus captores descobriram ter apanhado o homem errado.

Nos telegramas de Brasília, chamam atenção as disputas internas no governo Lula, sobre temas como a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) e o programa nuclear. Divergências entre o Itamaraty, a Fazenda e a Defesa são expostas à embaixada, que as utiliza para promover suas políticas.

Liquidificador

É possível que os vazamentos tenham exposto segredos de liquidificador, que berram sob as aparências. Mas seria imprudente subestimar o número dos que não ouvem -por desinformação, credulidade ou interesse.

O livro do Guardian é o que dá maior destaque ao soldado Manning, que emerge como a figura mais trágica da narrativa. Confinado há seis meses numa cela de 1,8 m por 3,6 m nos EUA, Manning teria sido denunciado por Adrian Lamo, hacker de Boston com quem trocou mensagens angustiadas quando estava no Iraque. ‘Deus sabe o que acontecerá agora: espero que uma discussão mundial, debates e reformas. Mas pode ser que eu seja apenas jovem, ingênuo e estúpido’, diz o soldado, segundo transcrição publicada pela revista Wired.

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Folha e WikiLeaks: como se estabeleceu o contato

Fernando Rodrigues # reproduzido da Folha de S.Paulo, 6/2/2011

Em meados de novembro do ano passado, recebi recados por e-mail e pelo Facebook. A jornalista Natalia Viana queria fazer um contato. ‘É algo muito importante’, escreveu. Sugeria necessidade de sigilo. Em outra mensagem, falou que o assunto se relacionava ao ‘pessoal’ de Londres e ao jornalista britânico Gavin MacFayden. Entendi na hora. Conheci MacFadyen há alguns anos. Participamos de reuniões internacionais, desde 2003, para criar a Global Investigative Journalism Network (em português, Rede Global de Jornalismo Investigativo).

Os pontos se juntaram. MacFadyen já havia me dito ser amigo de Julian Assange, o criador do WikiLeaks. Em uma das oportunidades em que Assange foi procurado pela polícia, MacFadyen escondeu-o em seu apartamento, em Londres. Parecia óbvio que o assunto era relacionado ao WikiLeaks – a mídia internacional estava inundada de informações sobre os próximos vazamentos.

A Folha se beneficiou de uma percepção tardia de Julian Assange. Depois de ter firmado um acordo de exclusividade com cinco publicações – os jornais The New York Times, The Guardian, Le Monde, El País e a revista Der Spiegel –, decidiu divulgar de forma regionalizada os telegramas confidenciais e secretos do Departamento de Estado dos EUA.

Na avaliação de Assange, os meios de comunicação acima do Equador dariam pouco destaque a eventos relacionados a países como o Brasil. Mas havia um problema na nova estratégia: o WikiLeaks se comprometera com as publicações citadas. Se repassasse o material para a Folha, estaria descumprindo um trato. A solução foi negociar por partes. Escolheu-se um lote de telegramas de interesse do público brasileiro. As publicações contatadas pelo WikiLeaks foram informadas que a organização divulgaria esses documentos em seu site em determinada data, com textos contextualizando o assunto.

Muito mais ainda pode ser garimpado

Foi assim que a Folha recebeu antecipadamente os telegramas usados na reportagem ‘Brasil disfarçou luta antiterror, dizem EUA’, publicada em 29 de novembro de 2010. O jornal foi o sexto órgão de imprensa no planeta a ter acesso aos dados com exclusividade. O acordo durou pouco mais de uma semana, com a Folha recebendo com antecedência os telegramas para fazer a apuração necessária. Havia uma troca frenética de e-mails antes da decisão sobre quais telegramas seriam liberados e quando poderiam ser publicados.

Durante a negociação para que a Folha recebesse os telegramas, a jornalista Natalia Viana, intermediária no Brasil, evitava escrever ‘WikiLeaks’ em suas mensagens. Era sempre ‘a organização’. Achei curioso. O procedimento seria para evitar que os e-mails fossem rastreados pelo seu conteúdo. Não me pareceu muito eficaz. No Brasil, qualquer um poderia grampear meu telefone com muita facilidade – e eu só falava de WikiLeaks o tempo todo, discutindo o assunto com a direção da Folha, em São Paulo. Na dúvida, segui o ritmo. Só me referia ao WikiLeaks em e-mails como ‘a organização’.

Em 5/12, um domingo chuvoso, o WikiLeaks decidiu ampliar sua parceria no Brasil. A Folha foi informada de que O Globo também receberia o lote de telegramas nos quais havia menção sobre o Brasil. Uma reunião foi marcada à noite no restaurante Planeta’s, no centro de São Paulo. Um novo acordo de exclusividade foi firmado entre Folha, Globo e WikiLeaks. A Folha já publicou dezenas de reportagens e divulgou telegramas na íntegra, alguns traduzidos para o português (bit.ly/fOj3ew).

A Folha usou a seu favor e dos seus leitores o acesso antecipado aos telegramas. Os repórteres envolvidos na operação puderam ler os textos, contextualizá-los e ouvir, quando necessário, partes envolvidas. Por exemplo, na reportagem ‘Para EUA, Dilma planejou assaltos durante a ditadura’ (10/12/2010), houve tempo suficiente para que o jornal relesse o processo sobre a presidente na Justiça Militar, cujas informações não confirmam os dados contidos no telegrama dos EUA. O embaixador norte-americano também foi ouvido e negou ter algo para comprovar o despacho diplomático.

O material sobre o Brasil é vasto: 1.937 telegramas originados na embaixada dos EUA, em Brasília; 902 de consulados norte-americanos no país e 43 despachados do Departamento de Estado, em Washington. Muito mais ainda pode ser garimpado.

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Repórter especial da Folha; foi editora de Mundo e bolsista da Fundação Nieman (Harvard)