Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Seria uma ‘guerra’ realmente ‘necessária’?

Em diversos artigos jornalísticos, escritos a propósito dos violentíssimos episódios ocorridos na vida política da Itália dos anos 70, e condensados no livro As Ideologias e o Poder em Crise, Norberto Bobbio partilhou com o leitor comum de jornais algumas de suas certeiras e sublimes reflexões sobre a filosofia política, precisamente sobre o problema das relações entre poder, direito, democracia e violência.

A operação policial desencadeada no estado do Rio de Janeiro – com o objetivo de recuperar o controle de áreas dominadas pelo tráfico de drogas e saudada com louvor por vários órgãos da imprensa (a revista Época referiu-se a uma espécie de marco no combate ao crime; a revista Veja aludiu a uma suposta guerra necessária) – fez-me recordar as lições do filósofo italiano, amante da liberdade e da justiça social (declarava-se um liberal-socialista), teórico, defensor e praticante da democracia, uma das mais lúcidas personalidades que o pensamento ocidental do século recentemente findo foi capaz de produzir.

Os ensinamentos de Bobbio tanto mais merecem ser repetidos e aprendidos quanto mais ouvimos ecoar, nos veículos de comunicação social, as frases com que se tentaram justificar os trágicos eventos sucedidos por ocasião dos confrontos nas favelas do assim denominado Complexo do Alemão. Soando quase como uma desculpa para os inevitáveis episódios de mortos e feridos inocentes, falou-se em ‘remédio amargo’, ‘ovos quebrados’ e – pasme-se – ‘guerra necessária’, velhos chavões utilizados por todos os movimentos autoritários de todas as épocas, incluindo-se a ditadura pela qual passamos, e da qual, desgraçadamente, somente lembramos quando algum interesse particular e contingencial nos assalta a mente.

O uso da força

Bobbio sempre alertou para a importância de colher as lições da história. Ao tentar compreender, descrever, mas, sobretudo, prescrever o caminho que conduz ao progresso da civilização (referia-se ele não ao progresso tecnológico ou econômico, mas àquele com o qual mais deveríamos nos importar: o progresso moral), costumeiramente representava a condição humana através da imagem metafórica do labirinto, no interior do qual o homem procura a via de saída. Ela existe, disse-o, mais de uma vez, ‘mas não há nenhum espectador de fora que conheça preventivamente o percurso’. Estamos todos dentro do labirinto, mas, não sabendo onde está a via de saída, ‘procedemos por tentativas, por sucessivas aproximações’. Cabe ao homem aprender com os próprios erros e, assim, evitar as vias bloqueadas já anteriormente percorridas.

Os caminhos bloqueados, para Bobbio, são todos aqueles que levam ao sofrimento humano, à exacerbação da violência. Daí sua defesa intransigente do estado de direito e da democracia, como os únicos meios para evitar a propagação da guerra total entre os homens. A guerra, definida como o estado em que a violência é ilimitada, e no qual a única regra a prevalecer é a lei do mais forte, apresenta-se, para Bobbio, como a antítese do direito, cuja finalidade básica é justamente a de estabelecer a paz social: no estado de guerra não se deseja ‘individualizar um eventual culpado ou condená-lo, mas sim render o inimigo, matando-o ou fazendo-o prisioneiro’; no estado de direito, a violência ainda existe, mas é limitada por normas certas, constantes e, principalmente, preestabelecidas, que definem ‘quando, de que modo, em que medida e contra quem pode e deve ser usada a força’.

Povo é a soma de cada um

A democracia, na visão do pensador italiano, aparece vinculada à concepção individualista da sociedade, que ele se apressa em esclarecer não se tratar de uma linha de pensamento que endosse o egoísmo, ou que se aproxime do chamado anarquismo filosófico. O individualismo, com o sentido por ele empregado, não rejeita a afirmação ‘de que o homem também é um ser social, nem considera o indivíduo isolado como micro e macrocosmo ao mesmo tempo’.

Consoante Bobbio, ‘há individualismos e individualismos. Há o individualismo da tradição liberal-libertária e o da tradição democrática. O primeiro retira o indivíduo do corpo orgânico da sociedade e o faz viver fora do seio materno, inserindo-o no mundo desconhecido, e cheio de perigos, da sobrevivência, onde cada um deve cuidar de si, em uma luta perpétua. (…) O segundo o reintegra aos seus semelhantes, para que de sua união a sociedade já não seja considerada como um todo orgânico do qual saiu, mas sim como uma associação de indivíduos livres. O primeiro reivindica a liberdade do indivíduo diante da sociedade; o segundo o reconcilia com a sociedade, fazendo desta o resultado de um acordo livre entre indivíduos inteligentes. O primeiro faz do indivíduo um protagonista absoluto, situado fora de qualquer vínculo social; o segundo o faz protagonista de uma nova sociedade que emerge das cinzas da antiga, na qual as decisões coletivas são tomadas pelos indivíduos ou por seus representantes’.

Semelhante concepção opõe-se à concepção organicista, para a qual cada um dos indivíduos que compõe a sociedade não passa de simples célula integrante de um grande organismo, do qual pode ser descartada quando deixa de cumprir sua função ou simplesmente como meio de garantir um maior benefício para o todo orgânico. Para o individualismo, ao contrário, os indivíduos constituem um fim em si mesmos: possuem uma dignidade, não um preço.

É a partir dessa noção que o ambíguo conceito de povo deve ser entendido: povo, segundo Bobbio, não pode ser confundido com uma massa amorfa, as denominadas multidões arrogantes, objeto do desprezo de tantos pensadores clássicos. Povo, a cujo poder as constituições em geral se referem como fonte da legitimidade do Estado, não pode ser outra coisa senão a soma de cada um dos indivíduos que, diretamente, ou por meio de seus representantes, participam das decisões coletivas.

Poder e opressão

Estado de direito e democracia ocupam, assim, no pensamento de Bobbio, a função primacial de estabelecer um método (‘as regras do jogo’) não violento para a resolução dos conflitos humanos. E é justamente por isso que ‘um Estado que se diz democrático não pode nunca considerar-se em guerra com seus cidadãos’. Quando Bobbio pronunciou essa sentença, referia-se, naturalmente, como ligeiramente antecipei no início, aos brutais atos terroristas patrocinados pela extrema-esquerda na Itália dos anos 1970, de que resultaram respostas igualmente violentas do Estado italiano. A propósito, Bobbio afirmava, convicto:

‘Com medo e preocupação com o alastramento dos atos de guerra, como as agressões contra pessoas sem culpa individual, mas que representam o inimigo, tudo fazem para que o Estado responda com atos de guerra a atos de guerra.’

E concluía:

‘Bem pelo contrário, a prova de fogo do Estado democrático não está em deixar-se envolver num estado de guerra por nenhum de seus cidadãos, mas, sim, na capacidade de responder às declarações de guerra reafirmando, mais uma vez, solenemente as tábuas da lei (que são a nossa Constituição). A fidelidade obstinada às tábuas da lei é o único e último baluarte contra os dois males extremos do despotismo e da guerra civil.’

Bobbio reconhecia-se um pessimista, daqueles que sempre estão dispostos a desconfiar das razões do poder. O poder, seja ele privado ou público, econômico ou político, rege-se pela força. É de sua natureza que o mais forte busque subjugar o mais fraco. Não é ele, em si mesmo, ilegítimo; muitas vezes é indispensável. Mas, sem controle, transfigura-se em não mais do que pura opressão.

Vias intermediárias

Não tenho condições de julgar o que de fato aconteceu durante os confrontos entre policiais e traficantes nas favelas do Complexo do Alemão. Pouco conheço dos fatos, a não ser as versões veiculadas pela imprensa, que reproduzem, no geral, a versão da polícia. Não se sabe se houve execuções sumárias ou coisas desse porte, nem quero arriscar qualquer palpite, ainda que a crônica recente da polícia fluminense a tanto autorizasse. O que é certo é que inocentes morreram, outros ficaram feridos.

Dito isso, pode-se mesmo chamar a operação policial levada a cabo pelas autoridades do Rio de Janeiro de uma guerra necessária? Nas reflexões que devem preceder a difícil escolha pela via da guerra (aludo aqui ao conceito comum de guerra), a morte de inocentes é geralmente tratada não como possibilidade distante, mas como realidade inafastável. Segundo a teoria da guerra justa, a guerra necessária é aquela em que o Estado deve optar entre dois males: as mortes de inocentes, ainda que sejam um mal, justificam-se como o mal menor.

No estado de direito, porém, não há espaço para uma tal opção. A resolução dos problemas relacionados ao controle da criminalidade comporta uma vasta gama de respostas, e não apenas as duas que ora se apresentam igualmente trágicas: o Estado não tem que optar necessariamente entre a vida dos criminosos e a vida dos chamados cidadãos de bem; ou, o que é mais grave: entre a vida de inocentes e a afirmação da força estatal no controle da criminalidade. Entre os dois extremos, existem múltiplas vias intermediárias que as autoridades devem perseguir com inteligência e moderação.

Questão de responsabilidade

A explicação das autoridades fluminenses, aclamada por boa parte da imprensa, parece, todavia, seguir a lógica da guerra, contrária – como tentei mostrar, com base no pensamento de Bobbio – à lógica do estado de direito e da democracia. Cidadãos não podem ser simplesmente descartados para o bem maior da coletividade, pois não são simples células de um organismo que precisa, a todo custo, manter-se vivo.

A segurança é direito fundamental que deveria ser assegurado a cada um dos brasileiros, inclusive àqueles que, inocentemente, foram mortos e feridos nos confrontos; às instituições da imprensa tocaria reafirmar, perante a sociedade, esse direito: afinal, a Constituição não merece ser lembrada apenas de quando em quando, como se a única garantia nela enunciada fosse a liberdade de expressão.

É fácil imputar toda a responsabilidade por essas mortes às quadrilhas de traficantes. Ninguém em sã consciência negaria que parte dela, de fato, lhes pertence. Uma outra parte, ainda que indireta, recai, porém, sobre o Estado. Se as mortes de inocentes seriam inevitáveis, como já o sabiam as autoridades públicas (a obstinação das quadrilhas em não se renderem, a resposta violenta que receberia a polícia e o extraordinário poder letal das armas empregadas nos combates levam a essa conclusão), a operação policial, nos moldes em que feita, não deveria ter sido jamais deflagrada.

O sono da razão

Quando vítimas são feitas reféns nas mãos de criminosos, intuitivamente sabe-se que o papel do Estado é o de proteger-lhes a vida: o dever de perseguir criminosos, julgá-los e puni-los passa a segundo plano, e quaisquer ações que possam pôr-lhes em risco a integridade física são evitadas. A experiência cotidiana tem mostrado, de resto, a cautela com que a polícia geralmente atua em semelhantes situações, procurando preservar ao máximo a segurança das vítimas.

Se é assim, maior razão tinha o Estado para do mesmo modo agir quando na condição de reféns se encontravam não uma ou duas pessoas, mas toda a população que vive nas favelas onde se deram os confrontos. A lógica da guerra trabalha com a inevitabilidade das baixas, e o papel de uma boa estratégia é o de reduzir-lhes a extensão; a lógica do estado de direito democrático percorre diferentes rotas de raciocínio: outras finalidades, ainda que nobres e úteis, devem ceder para garantir, a pessoas inocentes, o direito de que se originam todos os demais direitos – o direito à vida.

Volto, enfim, ao pessimismo de Bobbio, convidando o leitor a partilhá-lo: ‘O pessimismo, hoje, seja-me permitida mais esta expressão impolítica, é um dever civil. Um dever civil porque só um pessimismo radical da razão pode despertar com uma sacudidela aqueles que, de um lado ou de outro, mostram que ainda não se deram conta de que o sono da razão gera monstros.’

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Procurador da República, São Luís, MA