Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sobre cracolândia, cidadania e notícia

 

Da TV Globo ao portal Terra, a expressão “a paz volta a reinar” depois de ocupações institucionais nas favelas do Jacarezinho e Manguinhos, no Rio, foi uma constante. Menos de 24 horas depois, fatos mostravam o retorno das cracolândias, por exemplo, em lugares distintos. E que a paz naquelas regiões, ainda que alardeada, não era tão pacífica assim. Afinal, as pessoas precisam ir para algum lugar, nem todas cabem na proteção do Estado e ficar à própria sorte é praxe no Brasil. E hoje, com a crise do estado do bem estar, mesmo em países europeus centenas de famílias são despejadas a cada dia de suas casas.
 
Menos que o fato da ocupação policial, interessa aqui a abordagem jornalística, que celebra um acontecimento como se dele não se desdobrassem outros, e que estes merecem uma cobertura mais intensa, mais longeva e mais contextualizada tanto pela complexidade do problema como pelas pessoas envolvidas.
 
A cidadania foi, em tese, restaurada no Jacarezinho e em Manguinhos, entre outros lugares. Mas o problema do crack não foi resolvido. Ou seja, a cidadania existe, mas não para habitantes da cracolândia, sejam ou não vítimas da exclusão social, do nascimento e da infância nas ruas, da educação por imitação junto ao narcotráfico, da falta de moradia, da falta de escola e da falta de sobrevivência constitucional. 
 
Representação política
 
O direito à vida, constitucional, está atrelado diretamente ao direito de cidadania. O espaço público da corte imperial foi pulverizado, na Modernidade, pelo espaço público da cidadania, onde todos os indivíduos têm direitos e deveres. Mas… quem nasce sem direitos, poderá ser exigido em deveres em uma terra de todos contra todos, na qual a sobrevivência a qualquer custo passa a ser a única moeda reconhecida socialmente por parcela social em relação a qual paira apenas adjetivações como “bandidos”, “delinquentes”, “vagabundos”, “preguiçosos”? E vale para quem?
 
O Estado não deve adjetivar, mas resolver… e com a preservação da cidadania, e não pelo extermínio – proposta que parece crescer clara ou implicitamente. E o Estado não é refém da mídia, ainda que às portas da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Com tais perspectivas, o Estado deve proteger a cidadania de todos, do nascimento à morte. E se não o fizer, não há porque os “súditos” renderem homenagens permanentes, em termos de aceitação de deveres constitucionais, sem que os direitos pétreos existenciais sejam respeitados. Um cidadão sem cidadania garantida atua contra o Estado “protetor”. Um Estado que age em função de apenas parte da cidadania não pode exigir que os excluídos respeitem a cidadania parcial, e contra si próprios.
 
Uma mídia que invoca permanentemente a liberdade de expressão e grita em defesa de correntes de opiniões deferentes na sociedade, não deveria se abster, em nome da audiência de parte da sociedade, de tratar, em complexidade e intensidade, dos problemas que afetam a toda a cidadania e a todos os indivíduos que constitucionalmente a integram, como a dos habitantes e frequentadores  das múltiplas cracolândias que se espalham país afora.
 
A parcialidade jornalística, que inclui a adjetivação, chamadas que não correspondem a fatos e a fontes comprometidas, contribui para o aumento do descrédito seja na representação política seja na crença de que um dia o jornalismo veio ao mundo para, na expressão clássica, “afligir os satisfeitos” e “satisfazer os aflitos”. 
 
Relações públicas
 
O caso de relatos como os da ocupação de favelas, entre as quais a do Jacarezinho e de Manguinhos, são úteis e importantes. Mas a forma como foram tratados os integrantes da cracolândia, no início da cobertura e diante dos primeiros fatos, pode ajudar a reproduzir preconceitos, a estimular o ódio, a justiça com as próprias mãos, e a ocultar interesses escusos. “João da Silva”, cidadão brasileiro, que vive na cracolândia – em  qualquer cracolândia – não  é um cidadão para parte da mídia. Cidadão é o presidente da Fifa e o presidente do COI.
 
Ainda bem que as redes sociais – e  o conjunto de críticas à cobertura inicial – têm  também agendado o próprio jornalismo, cujos repórteres – alguns, ao menos –, em várias ocasiões, parecem ter certa vergonha de relatos que mais parecem peças de relações públicas encomendadas para salvar a imagem dos megaeventos que vêm pela frente.
 
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[Francisco José Castilhos Karam é professor da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS]