Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Tropa de Elite, espelho manchado de sangue

Violência, corrupção e tráfico de drogas estão estampados todos os dias nas páginas dos jornais, mas a sociedade não reflete sobre essas questões, apenas registra o que foi transmitido pelos meios de comunicação. Quando os mesmos assuntos são enfocados em obras de ficção, como filmes e novelas, aí sim conseguem levar os brasileiros a pensar e discutir. O Observatório da Imprensa na TV transmitido pela rede pública de televisão na terça-feira (9/10) examinou este fenômeno, que voltou a ficar evidente com o lançamento do filme Tropa de Elite.


O debate contou com as presenças do diretor do filme, José Padilha e do sociólogo Luiz Eduardo Soares no estúdio do Rio de Janeiro; do filósofo Renato Janine Ribeiro, em Brasília, e do jornalista Gabriel Priolli, no estúdio da TV Cultura, em São Paulo.




José Padilha é formado em Administração de Empresas pela PUC Rio, dirigiu os documentários Estamira e Ônibus 174 e está lançando o filme Tropa de Elite. Luiz Eduardo Soares, doutor em Ciência Política, é professor da ESPM e da UERJ e secretário municipal de Valorização da Vida e Prevenção da Violência, de Nova Iguaçu (RJ). Foi secretário nacional de Segurança Pública e é co-autor do livro Elite da Tropa. Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política na USP, na qual se doutorou após defender mestrado na Sorbonne. É diretor de avaliação da Fundação Capes, em Brasília. Gabriel Priolli é jornalista e professor, dirige o núcleo de eventos e publicações da Fundação padre Anchieta, da TV Cultura de São Paulo, foi crítico de TV, dirigiu e apresentou diversos programas de TV Cultura. É presidente Associação Brasileira de Televisão Universitária e colunista do Observatório da Imprensa.


O programa teve início com um editorial de Alberto Dines sobre a importância de o jornalismo mobilizar a sociedade: ‘Tropa de Elite está todos os dias nos jornais, nas revistas, rádio e TV. Por ironia é, ao mesmo tempo, uma grave, gravíssima acusação à displicência do nosso jornalismo tão envolvido com a realidade, mas incapaz de produzir um libelo tão violento contra a violência e contra a corrupção’, observou o jornalista [ver abaixo a íntegra do editorial].


Leituras equivocadas


A reportagem exibida antes do início do debate ao vivo entrevistou a psicóloga social Nancy Cardia, coordenadora do Núcleo de Estudos sobre a Violência da Universidade de São Paulo (USP). Para a pesquisadora, a obra é ‘uma ficção que espelha muito a realidade ou o que as pessoas imaginam que é a realidade’, por isso a sociedade está usando o filme como material para discutir o tempo presente. Para ele, o noticiário fragmentaria as ações, levando a uma percepção seletiva da violência, ao passo que a ficção apresentaria um ‘começo, meio e fim’ para os conflitos.


O dramaturgo Marcílio Moraes, autor da telenovela Vidas Opostas, exibida pela Rede Record, que enfocava a violência urbana e o tráfico de drogas, acredita que o noticiário não causa tanto impacto porque se repete, há uma saturação da informação, transmitida sempre dentro da mesma fórmula. O escritor destacou que a telenovela no Brasil ocupa grande parte do horário nobre das TVs e, por isso, deveria não somente entreter, mas também instigar.


Dines iniciou o debate perguntando a José Padilha sobre o porquê de a mídia não ter a força da ficção. O cineasta afirmou que a dramaturgia obriga o espectador a criar um nexo causal entre os fatos e enfoca o aspecto emocional dos acontecimentos, o que não ocorre com o simples reportar de fatos. ‘Quando você faz um filme, você pega uma determinada realidade, que no nosso caso é a violência urbana, e a transforma em um objeto. A pessoa pode falar sobre aquele objeto e não sobre a violência em si’, disse. Padilha observou que a imprensa não trata a violência urbana como um tema urgente.


O filósofo Renato Janine afirmou que um aspecto positivo do filme é responsabilizar também ‘quem está no asfalto’, a sociedade, o Estado, e não só as comunidades carentes dominadas pelo tráfico de drogas e pela violência urbana. Gabriel Priolli avaliou que há um conjunto de fatores que podem explicar o impacto da ficção. Um dos principais seria o abandono da ‘paixão pela reportagem, pela vontade de contar os fatos com emoção’. As notícias, de modo geral, estariam repetitivas, frias, esquemáticas e burocráticas, já as obras de ficção conseguiriam mostrar a dramaticidade e dimensão dos problemas, sensibilizando a população.


Para Luiz Eduardo Soares, a complexidade do tema do filme, refletida pelo capitão Nascimento, personagem narrador da película, levou a leituras equivocadas da obra. Na opinião do sociólogo, o capitão tem um discurso autoritário e fechado, mas a estrutura dramática e visual do longa-metragem revela a angústia e o sofrimento do personagem, desconstruindo o discurso autoritário sem verbalização, o que não teria sido percebido por espectadores que acusaram o filme de fascismo.


Exemplos positivos


‘A imprensa se acostumou a culpar o outro, e não a se responsabilizar pelo o que acontece e pelo o que ela produz. Nós temos mais de 20 anos de eleições, temos um sistema de eleição bastante livre e, no entanto, continuamos agindo como se as coisas caíssem sobre nós sem haver um envolvimento nosso nisso.’, criticou Renato Janine.


O excesso de opinião e comentários na imprensa escrita foi abordado por Gabriel Priolli. ‘A imprensa é um pouco refém hoje em dia de uma idéia que eu acho que é equivocada, de que a sua forma de competir com a o poder avassalador da TV é apostar não na reportagem, mas no comentário, na análise, na reflexão’, afirmou. A imprensa teria que, por meio da reportagem, compor um painel dos fatos capaz de dar base aos leitores para que eles possam formular as suas interpretações. Priolli destacou que quando a TV faz coberturas ao vivo – como a do seqüestro do ônibus 174 – há um grande impacto na sociedade.


Dines perguntou a Luiz Eduardo Soares sobre o ‘orgulho de não ser corrupto’, valorizado pelos integrantes do Batalhão de Operações Especiais (BOPE). O sociólogo explicou que o maior impedimento para a corrupção no batalhão não é a remuneração, nem o controle interno ou externo, mas sim o orgulho profissional. Este só seria possível através da construção de uma identidade, um sentimento de pertencimento ao grupo, que muitas vezes gera brutalidade e prática de tortura. Para Soares, se as condições históricas do país fossem diferentes, principalmente na área de segurança pública, o personagem capitão Nascimento poderia ter outras opções que não fossem, corromper-se, omitir-se ou ‘entrar na guerra’.


Luiz Eduardo sublinhou que a imprensa deveria aprofundar temas levantados pelo filme – como o tipo de polícia que a sociedade deseja, a política de fiscalização ao uso de drogas, a questão das armas e da formação do policial. Dois exemplos positivos do trabalho da imprensa levantados pelo sociólogo foram a série de reportagens sobre a ação das milícias nas favelas do Rio, publicada pelo jornal O Globo, e o estilo de reportagem da revista piauí.


Pauta para a imprensa


Um telespectador perguntou a José Padilha sobre qual foi a pior crítica ao filme que o diretor recebeu. Padilha afirmou que existem dois tipos de crítica: uma, que simplifica a questão de que o filme trata e se limita refletir sobre se o filme é de direita ou de esquerda; e ‘existe uma outra crítica, que é uma crítica séria, que se debruça sobre as questões do filme, que discute a reação da platéia ao filme. Eu posso discordar ou concordar com essa critica, mas eu a valorizo’.


Gabriel Priolli avaliou que a imprensa ‘trata muito mal’ a questão da descriminalização do usuário de drogas porque estaria presa a preconceitos profundos que existem na sociedade em relação a esse tema. O jornalista vê a necessidade de o país enfrentar essa questão e avaliou que a mídia deveria colocar o tema na agenda de debates nacional com clareza e objetividade.


No bloco de considerações finais do programa, Priolli afirmou que a polêmica em torno do filme deixa uma lição para a imprensa: ‘É melhor tentar representar a realidade em toda a sua complexidade do que emitir comentários e opiniões externos a ela’. Renato Janine Ribeiro avaliou que o filme é sobre uma tragédia, entendida no sentido de um descompasso entre a intenção e a realização. Seria uma tragédia do ponto de vista do capitão Nascimento, que tem intenção de acabar com o crime a e corrupção, mas vê os seus sonhos frustrados.


Luiz Eduardo Soares chamou a atenção para o fato de que freqüentemente a sociedade critica os indivíduos da polícia que se desviam da conduta correta, mas não observa a estrutura a qual eles pertencem, não analisa as regras e as orientações que têm de cumprir. José Padilha sugeriu uma pauta para que a imprensa ajude a sociedade a compreender o processo de violência urbana: a estrutura organizacional das polícias carioca e paulista, onde policiais precisam fazer a manutenção de carros e cuidar de estoque de alimentos, por exemplo, em vez de se ocupar exclusivamente da segurança pública.


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A ficção e a realidade


Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 437, no ar em 9/10/2007


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


O mais polêmico, o mais impactante, o mais pirateado e o mais aguardado filme brasileiro dos últimos tempos. Tropa de Elite é ficção mas não é invenção, é real. Não conta nada de novo, mas está mobilizando o país de uma forma como há muito não se via.


Tropa de Elite está todos os dias nos jornais, nas revistas, rádio e TV. Por ironia é, ao mesmo tempo, uma grave, gravíssima acusação à displicência do nosso jornalismo tão envolvido com a realidade mas incapaz de produzir um libelo tão violento contra a violência e contra a corrupção.


Alguma coisa se movimenta na cena brasileira. É um filme ou um espelho manchado de sangue?