Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um autor escondido sob a história

Uma nota de duas linhas na coluna de Mônica Bergamo (‘Ilustrada’, Folha de S.Paulo, 24/5/2006) anunciava apenas o lançamento de um livro, mas provocou reações de velhos conhecidos do autor. Dizia o texto: ‘Carlos Alberto Brilhante Ustra lança amanhã o livro ‘A Verdade Sufocada’, às 19h, no restaurante Fior D´Itália’.

Venho, por meio desta, me somar a quantos já escreveram manifestando protesto sobre o modo como foi noticiado, na coluna ‘Curto Circuito’, pela jornalista Mônica Bergamo, o lançamento do livro do senhor Carlos Alberto Brilhante Ustra (também dito Ulstra).

É intolerável (por, no mínimo, irresponsável) que tal informação seja veiculada sem o esclarecimento sobre o histórico do autor. Não apenas o senhor Ustra foi um dos mais cruéis torturadores do período da ditadura implantada com o golpe de 1964, e responsável direto por sevícias e assassinato de diversos opositores daquele regime, como este é um fato público e conhecido por todos os cidadãos minimamente informados. Não
faltam depoimentos e outros documentos que o comprovem.

Omitir esses fatos implica conivência com a tortura.

Noticiar e promover trabalhos de torturadores do modo como foi feito em ‘Curto Circuito’, tem como resultado a ‘naturalização’ da prática da tortura, significando, portanto, apostar na impunidade dos seus autores, o que é um modo de acumpliciar-se com os sicários.

A não responsabilização e punição legal dos torturadores do período do regime civil-militar, garantidas pela Lei de Anistia (a anistia recíproca) de agosto de 1969, implicou a institucionalização do método. A não revisão até o momento dessa legislação e o silêncio a este respeito, significa a perpetuação da execrável prática.

À impunidade garantida pelo Estado, que até o presente se alicerça no estatuto da ‘anistia recíproca’ em que se fundou a Lei de Anistia de agosto de 1979, não deve corresponder o cinismo da sociedade civil.

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Outras cartas dirigidas ao jornal

Cara Mônica Bergamo,

Conheço-te, desde sempre, em suas escritas passagens por nosso cotidiano das quais não sou muito assíduo, devo confessar. Mas ao ler sua coluna sobre o torturador Ustra (24/05/06), passo a vê-la com outros olhos. Digo isto, é claro, por interesse pessoal no que escreveu e, especialmente, pela coragem de escrever palavras que somente ecoam o silêncio da memória comemorativa brasileira, que tudo lembra desde que não passe de festa ou feriado. Fui preso, aos 4 anos de idade, em minha casa. Assistia ao Vila Sésamo, programa infantil de qualidade rara se comparado aos dias atuais. Fui interrompido pelos agentes do Sr. Ustra, diga-se do Doi-Codi, que à nossa casa invadiram com suas metralhadoras e palavras ofensivas. Estávamos eu, minha irmã de 5 anos e minha tia, grávida de 8 meses. Colocaram-nos no camburão e nos levaram ao ‘escritório’ deste cidadão que hoje tem endereço, salário do Estado e dá-se ao ato provocativo de escrever livros versando sobre parte das mais horríveis na história do Brasil. Lembro-me, ainda no camburão, de ter brincado com uma daquelas armas que, por pura incompetência, haviam deixado ao meu lado e eles ‘caindo em cima’ para tentar arrancá-la de mim, como se eu fosse O Terrorista. Nas dependências deste então órgão público/estatal pude ver minha mãe e meu pai em tortura. Após ser assim recebido pelo Ustra (ele em pessoa, não é uma entidade, uma alucinação, é este homem que hoje se diz vítima), fui levado a um lugar onde, através de uma janelinha, a voz materna, que meus ouvidos estavam acostumados a escutar, me chamava. Porém, quando eu olhava, não podia reconhecer aquele rosto verde/arroxeado/ensangüentado pelas torturas que o oficial do Exército brasileiro, Carlos Alberto Brilhante Ustra, havia infligido à minha mãe. Era ela, mas eu não a reconhecia. Esta cena eu não esqueço, não porque arquiteto uma vingança imaginária contra o Ustra. Ela não é uma informação da qual disponho, mas uma marca que talvez só por meio da terapia de meu depoimento público possa acalmar, deslocar para espaços periféricos de minha memória. Reitero meu desejo de vê-lo, o torturador Ustra, no banco dos réus respondendo por seus crimes. Se assim for permitido, serei a primeira testemunha de acusação. abraço (Edson Teles)

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Foi uma surpresa das mais desagradáveis ler hoje em ‘Curto circuito’ a chamada para o lançamento do livro do torturador e assassino Carlos Alberto Brilhante Ustra (também grafado Ulstra), responsável pela morte de Alexandre Vanucchi Leme, entre outros.

Fosse o Brasil um país mais conseqüente em relação à sua memória histórica, este e outros torturadores já estariam no banco dos réus ou, no mínimo, expostos à execração pública, como é o caso na Argentina.

Como sou otimista e militante dos Direitos Humanos, tenho firme esperança de que os arquivos da ditadura virão a público e que os torturadores serão julgados.

Que a Folha publique artigos assinados por militares e políticos ligados à repressão e tortura é parte do jogo democrático, que esta coluna endosse como ‘evento’ um lançamento desta natureza, sem dar ao público a chance de saber de qual autor se trata, é abusar do exercício da desinformação.

Tortura é crime hediondo e imprescritível, convém não esquecer. E se hoje São Paulo sofre com o crime organizado e com uma polícia truculenta, talvez seja útil procurar as raízes não na guerrilha, como afirmou o Sr Romeu Tuma, mas na formação dos grupos para-militares de repressão política (dos quais o Doi-Codi fez parte), na ‘ascensão’ da polícia militar, na institucionalização da tortura, nos esquadrões da morte, no massacre do Carandiru (a mando do capitão Ubiratan, que na época da ditadura agia sob comando de Ustra/Ulstra); enfim, na ausência do estado de direito implementada pela ditadura militar. (Marta Nehring)

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Junto-me a indignação manifestada de modo absolutamente adequado pelo Alípio Freire. Ulstra, no pior momento da ditadura militar brilhou realmente pela sua frieza e crueldade como torturador a assassino. Existem crimes de lesa-humanidade que nem mesmo uma lei de anistia pode abolir. Como fiel leitor e assinante da Folha, incorporo-me ao repúdio de tantos outros brasileiros que se sentem abismados com o ‘Curto-circuíto’. (Carlos Russo Junior, RG 3.872.172, cirurgião dentista)

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Registro minha indignação em face a promoção por esta Folha de alguém como o
Carlos Alberto Brilhante Ustra. Os crimes por ele cometidos, não há anistia que pode acobertar. Se realmente o governo do Sr. Lula da Silva, fosse um governo comprometido com os trabalhadores e com a democracia, com certeza os atos por este senhor cometido e todas as barbaridades cometidas em nome do Estado durante o regime militar estariam sendo punidas. A Folha de S.Paulo, que se propõe um jornal sério, não deveria promover
este tipo de gente. Subscrevo, em sua totalidade, a carta abaixo do jornalista Alipio Freire. (Adriano Espíndola Cavalheiro, advogado)

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É com muito pesar que vejo a sua coluna prestigiar o lançamento do livro de um torturador e chamar os leitores a comparecer a este ato que deveria ser de repúdio e não de festa . Só falta que vocês dêem cobertura e amanhã saia na sua coluna fotos deste evento…

Se estivéssemos em um país sério, este senhor torturador e assassino , tal como seus colegas na Argentina e no Chile, estaria certamente atrás das grades, isolado e remoendo sua consciência, pagando pelos crimes cometidos. Fui torturado por este senhor e sou leitor assinante da Folha há vários anos. Nunca pensei que eu tinha de escrever a este jornal para protestar contra tão lamentável nota. (Maurice Politi, CPF 741 558 860 34)

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Jornalista