Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Uma nova ética para um novo ethos

Fosse a ética absolutamente consensual, não haveria a necessidades de leis que determinassem o que é certo e o que não é certo fazer. Ethiké advém da palavra grega ethos que, por um lado denota a morada e por outro conota tudo que se refere a essa idéia, ou seja, os atos que os indivíduos praticam reiteradamente em um espaço determinado e que, por isso, a eles se acostumam. Ética diz respeito ao espaço de toda a realização humana, às suas regras, seus valores.

A conduta ética individual é a possibilidade e o meio da concretização desses valores. Ela torna material o que era, antes, somente abstrato. Entretanto, se a ética diz respeito à relação de indivíduo com o seu socius, nem todas as ações individuais são pautadas pelos mesmos princípios éticos. No conflito entre os valores do ethos – os costumes provados pela sociedade – e a práxis do indivíduo reside o espaço da liberdade de consentir ou rejeitar determinados valores do ethos. Com o novo ser que foi transformado nesse conflito ético, a ação desse indivíduo, por sua vez, interferirá na sociedade à qual ele pertence, construindo, assim, um novo ethos por ele transformado, em um contínuo e permanente movimento dialético.

Para alguns pensadores, na sociedade contemporânea – cujas relações estão fragmentadas – a prática relacional, e conseqüentemente a ética, é orientada por meio da escolha individualista tanto quanto ao modo de se comportar quanto ao de pensar. O que vemos realmente na vida prática cotidiana é um conjunto diverso de maneiras de agir.

Um imenso Big Brother

Difícil afirmar o que motivou o repórter fotográfico e a empresa para a qual ele trabalha – Organizações Globo – a registrar e divulgar as conversas entre os ministros do Supremo Tribunal Federal Carmen Lúcia e Ricardo Lewandowski. Se foi um compromisso com o público que eles acreditavam, eticamente, que deveria ser informado sobre um assunto de interesse público; se o anseio individual e narcisista de se tornar o responsável por um furo de reportagem, ou mesmo, quem sabe, de fotografar e publicar algo que já não tivesse quinhentas vezes sido fotografado e/ou publicado, já que a ação física dentro de uma corte de tribunal é ínfima. As possibilidades de justificativas para cada ação humana são infinitas.

No dia seguinte ao da publicação das fotos pelo jornal O Globo, todos os veículos acompanharam a tendência de veiculação e abriu-se um fórum de discussão sobre o procedimento do repórter e da empresa jornalística. Certo ou errado? Configurou-se ou não invasão de privacidade? Para o articulista do jornal Folha de S. Paulo, as respostas são ‘certo’ para a primeira e ‘errado’ para a segunda. ‘Não me venham, pelo amor de Deus, com ‘invasão de privacidade’. Em local público, em sessão pública, tratando de assunto de interesse público, só há vida privada para quem guarda para si suas idéias, seu voto, sua fofoca.’

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil discorda. Cézar Brito afirmou para a Folha Online que ‘o Brasil não pode virar um imenso Big Brother, em que a privacidade seja banida’. Para ele, ‘conversas serem violadas por meio de fotografias à tela dos computadores é algo tão inaceitável quanto colocar grampo entre os magistrados e advogados para capturar o teor de suas conversas’.

Decisões não unânimes são rotina

O blog Extra Libris se pergunta: ‘Ministros do STF se comportando assim?’, fazendo alusão à troca de mensagens na corte suprema do país que conteve comentários sobre o vizinho de poltrona Eros Grau – o Cupido –, comentários sobre a matéria que ainda seria votada, sobre a indicação do futuro ministro que ocupará a vaga de Sepúlveda Pertence e o ‘salto social’ que o relator do caso ‘mensalão’, Joaquim Barbosa, daria após apresentar o seu voto.

Para a Associação dos Magistrados Brasileiros, os ministros feriram o princípio da incomunicabilidade, mas a Associação dos Juízes Federais argüiu que nunca viu a ‘imprensa entrar e interceptar correspondências’. O fato é que o próprio Supremo chegou a publicar em seu site que fotógrafos seriam proibidos no recinto, o que foi mais tarde retirado e classificado como um ‘equívoco’ pela ministra Ellen Gracie. Em suma, a reportagem suscitou discussões sobre a ética jornalística, a ética dos ministros e a ética pública nos novos tempos onde tudo pode ser visto, escutado, rastreado, monitorado e publicado.

A decisão de fazê-lo ou não é uma decisão ética. A justificativa daqueles que defenderam a veiculação do conteúdo fotografado foi o ‘interesse público’. O próprio editorial da Folha de S. Paulo atestou que os cidadãos só têm a ganhar com a transparência. ‘É o interesse público que deve presidir o exame de cada caso específico. A conversa entre os dois ministros do STF incidia sobre assunto indiscutivelmente relevante.’ Por isso mesmo – pela sua relevância – é que é cabível a discussão sobre o assunto entre os dois ministros do Supremo. Para o ex-desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Kelsen do Prado Carneiro, ‘a discussão entre os membros de um colegiado não é usual, mas se torna comum quando as questões são de alta relevância e cuja doutrina e jurisprudência são divergentes’. Nesses casos, opiniões e votos contrários são rotineiros. Decisões que não são unânimes fazem parte do dia-a-dia de uma corte judicial. Inclusive para isso é que se presta um colegiado.

Violação de privacidade

Para que decisões importantes não fiquem aos dissabores de uma decisão individual que pode muito bem ser equivocada. O desembargador ressalta, por exemplo, que a decisão unânime de não levar a julgamento por peculato Delúbio Soares, ex-tesoureiro do Partido dos Trabalhadores, é porque, neste caso, a doutrina é clara. Peculato é crime praticado por funcionários públicos e Delúbio nunca exerceu nenhum cargo público dentro do governo Lula. Mas também para o desembargador houve, sim, invasão de privacidade. ‘Era uma comunicação pessoal comentando uma decisão que seria proferida posteriormente.’

O Código Penal não é claro, objetivo e preciso quanto à comunicação praticada por meio da rede mundial dos computadores. Promulgado em 1940, foi escrito quando o mundo ainda não fazia idéia do ambiente comunicacional em rede do século seguinte. O ato do repórter que divulgou as imagens não pode ser enquadrado no artigo 151 que se refere à violação de correspondência e que afirma ser proibido ‘devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem’. A tela do computador dos dois ministros já estava aberta. Entretanto no mesmo artigo, no parágrafo primeiro está previsto que pode ser imputada a responsabilidade de violação de privacidade quando alguém ‘indevidamente divulga, transmite a outrem ou utiliza abusivamente comunicação telegráfica ou radioelétrica dirigida a terceiro, ou convocação telefônica entre outras pessoas’.

Jamais agir naturalmente

Porém a discussão tampouco termina aí. Para a aplicação do direito penal deve estar previsto o dano ou perigo de dano e novamente outra questão se coloca: houve dano ou perigo de dano com a divulgação do conteúdo trocado pelos dois ministros? Não, se levarmos em consideração que ambos não conduziram seus votos influenciados pelo que disse ou revelou a imprensa ou a opinião pública desabalizada nos assuntos legais, mas foram pautados somente de acordo com a sua formação jurídica e experiência profissional. Como se vê, essa é uma matéria onde não há consenso e é passível de ser discutida por mais de uma esfera da sociedade. Assim como a ética, sempre em transformação e por isso mesmo objeto que deve ser pensado e repensado a cada veiculação de qualquer fato transformado em notícia.

É preciso refletir, então, se o repórter, ao rejeitar o direito de privacidade dos dois envolvidos, construiu um novo ethos por ele transformado. Um ethos onde, para se garantir um mínimo da esfera privada, mesmo que em assunto de relevância pública, é melhor ficar com a tela do computador abaixada, com o celular escondido e jamais – jamais – agir naturalmente, pois o tempo todo sua imagem ou o conteúdo de sua conversa particular podem estar sendo distribuídas para o mundo inteiro, desempossados de sua própria pessoa.

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Estudante do último período de Jornalismo da Universidade Fumec, Belo Horizonte, MG