Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Verrugas de uma história mal contada

 

 

Pinte-me como eu sou, com verrugas e tudo. (Oliver Cromwell, 1599-1658, Lorde Protetor do Reino Unido, ao pintor oficial da corte, Peter Lely)

Um jovem mal informado ou desatento imaginaria que o Rio Grande do Sul perdeu um gigante, na quarta-feira (13/6), quando morreu o ex-governador gaúcho José Augusto Amaral de Souza, dois meses antes de completar 83 anos, vítima de complicações de um AVC que desde 2006 o confinava a uma cadeira de rodas. Ele ganhou honras de Estado, luto oficial de três dias e os discursos e elogios de praxe da generosa tradição brasileira, que cobre qualquer morto com a pátina da complacência e repinta biografias sem as cicatrizes, espinhas e rugas conferidas pela vida política.

“Um líder importante do Rio Grande”, definiu, com exagero, o governador Tarso Genro. Foi desenhado com linhas ainda mais indulgentes pelos sete políticos de partidos e tendências diversas que o sucederam no Palácio Piratini, a partir de 1982, por decisão exclusiva do voto popular: Jair Soares (PP), Pedro Simon (PMDB), Alceu Collares (PDT), Antônio Britto (PMDB), Olívio Dutra (PT), Germano Rigotto (PMDB) e Yeda Crusius (PSDB).

No limite da fidalguia, uns e outros louvaram Amaral pelos adjetivos piedosos que ocultam a rugosidade natural do último governador indicado pela ditadura dos generais de 1964: “conciliador, absoluto respeito pelos adversários, afável, vida pública sem máculas, atuação importante na política, administrador sério, importância fundamental na transição para a democracia, um amigo, grande companheiro”, e coisas do gênero.

Os sete sucessores de Amaral de Souza que alcançaram pelo voto popular o palácio que Amaral ocupou sem nenhum voto do eleitor gaúcho não cometeriam a deselegância de admitir publicamente o que muitos deles reconhecem, mas ninguém diz: Amaral de Souza conseguiu ser a figura mais medíocre da safra dos quatro apagados governadores indiretos, escolhidos pelos quartéis, no período sem povo e sem liberdade que marcou o Piratini e o Rio Grande do Sul entre 1966 (dois anos após o golpe) e 1983 (dois anos antes da queda da ditadura). Ildo Meneghetti (PSD) só escapou dessa sina porque foi eleito pelo voto popular em 1962, quando o país ainda era uma democracia, e sobreviveu ao golpe militar até o final de seu mandato, em 1966, simplesmente porque era um dos golpistas embebido até a medula na conspiração contra o Governo Goulart.

Parceiros de biriba

A partir de Meneghetti, com o advento do bipartidarismo imposto pela nova ordem, só a legenda da ditadura podia chegar ao poder. Assim foi com os quatro governadores biônicos da Arena (Aliança Renovadora Nacional), elevados sucessivamente ao poder com o indispensável beneplácito dos generais: Peracchi Barcelos (1966-1971), Euclides Triches (1971-1975), Synval Guazzelli (1975-1979) e Amaral de Souza (1979-1983). Só um regime de força pode explicar a inusitada aparição de um político de biografia tão pífia na galeria de 37 governadores do Rio Grande do Sul a partir da proclamação da República em 1889 – 19 deles eleitos pelo povo gaúcho. Amaral estreou na política partidária aos 30 anos, eleito vereador em sua terra natal, Palmeira das Missões, pelo velho PSD, partido conservador ligado às oligarquias rurais.

Virou deputado estadual em 1962, na chapa que elegeu Meneghetti governador, e deu sua tacada certeira dois anos depois, apoiando o golpe que seria a alavanca de sua improvável carreira. Com a extinção dos partidos em 1965, pulou para o barco da Arena, sucessora do PSD e sigla de confiança dos generais. Amaral elegeu-se deputado federal em 1966, cultivou as estrelas certas em Brasília e ganhou em 1974 o posto sem voto de vice-governador na chapa de Synval Guazzelli. Não era uma homenagem a ele, mas um prêmio de consolação a seu padrinho político do ex-PSD, senador Tarso Dutra, frustrado pelo revés sofrido ante o adversário da ex-UDN, senador Daniel Krieger, que tinha emplacado o afilhado Guazzelli como governador.

Só o forçado atalho dos quartéis é que pode explicar, quatro anos depois, a surpreendente escolha do opaco Amaral como sucessor de Guazzelli. Seu cabo eleitoral tinha todas as luzes que ele necessitava: era o general quatro estrelas Fernando Belfort Bethlem, comandante do poderoso III Exército, a maior força terrestre do país, que reunia as tropas do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Seu cacife melhorou ainda mais, em outubro de 1977, quando Bethlem trocou Porto Alegre por Brasília, para assumir o ministério do Exército, na crise que levou à demissão do ministro linha-dura Sylvio Frota pelo duríssimo presidente Ernesto Geisel.

Amaral tinha os amigos certos e os inimigos ideais para aqueles tempos verde-oliva. Seu adversário dentro da Arena, na disputa sem voto pelo Piratini, era o deputado federal gaúcho Nelson Marchezan, um parlamentar de origem democrata-cristã que cometia um pecado mortal para os mandamentos da ditadura: flertava demais com a oposição, que fizera um esforço quase subversivo em 1966 para eleger um professor liberal, Ruy Cirne Lima, como governador por via indireta, na Assembleia gaúcha. A coligação antigolpe tinha 31 das 55 cadeiras, mas a cassação preventiva de oito deputados transformou a minoria arenista em maioria, a conta exata dos quartéis para eleger o coronel Peracchi Barcellos.

Marchezan ficou marcado pela ousadia. E piorou suas chances, em 1967, quando integrou a oposição na CPI que investigava o aparecimento do cadáver de um ex-sargento do Exército, ligado a Leonel Brizola, boiando nas águas do rio Jacuí, com marcas de torturas e as mãos atadas às costas. O assassinato do sargento Manoel Raimundo Soares – o “Caso das Mãos Amarradas” – virou um escândalo internacional e serviu para Amaral amarrar politicamente as mãos de Marchezan e Guazzelli no decisivo colégio eleitoral dos generais que escolhiam com exclusividade os governantes.

O então vice-governador, com o olho e a ideia fixa na cadeira de titular do Piratini, cultivava com cálculo político os amigos militares que garantiam seu emprego, sua sobrevivência e seu futuro no regime. Nunca recusava o convite para uma partida camarada de cartas com o sucessor do padrinho Bethlem no comando do III Exército, o general Oscar Luís da Silva. Amaral e sua mulher, dona Miriam, eram parceiros fiéis no joguinho de biriba com o casal Oscar e Marina na residência oficial do general, na mansão bem vigiada de uma esquina da avenida Cristóvão Colombo, no bairro Higienópolis.

Dedo ruim

Em março de 1976, o olho atento e o ouvido alerta de Amaral perceberam uma oportunidade preciosa para melhorar seu ibope no exclusivo colégio eleitoral dos generais. Numa sexta-feira, 19 de março, o MDB fez uma reunião política no maior produtor de soja do Estado, Palmeira das Missões, cidade de 65 mil habitantes, 374 km a noroeste da capital. Menos de mil pessoas lotaram o Cine Gaúcho para ouvir uma dúzia de deputados estaduais e federais, comandados pelo líder do MDB gaúcho, deputado Pedro Simon. As duas figuras mais animadas da noite eram os federais gaúchos Nadyr Rossetti e Amaury Muller, destaques do bloco dos Autênticos, a ala mais radical do MDB. Nadyr Rossetti mandou brasa:

– A queda do regime é coisa certa. Se não for por podre, será pela corrupção.

Amaury Muller ecoou:

– Somos governados não pela vontade do povo, mas pela força das armas. Estamos em um regime de golpe, não de revolução, dominados pela aristocracia fardada.

A reunião acabou, sem maiores sobressaltos. Afinal, parecia apenas uma justa e previsível lambada de uma oposição sufocada, desabafando num cinema empoeirado do interior distante. Três dias depois, 22, uma segunda-feira, o encontro irrelevante num grotão gaúcho pipocou de repente em Brasília, na tribuna da Câmara dos Deputados, pela palavra veemente do deputado federal gaúcho Fernando Gonçalves, da Arena, que deu relevo nacional ao encontro da província. Tudo ali tinha o olho, o ouvido e o dedo rígido de Amaral.

Por acaso, o deputado Gonçalves era o cunhado do vice-governador. Por fatalidade, Palmeira das Missões era a terra natal de Amaral. Por gentileza, um assessor do vice-governador conseguiu uma cópia da gravação com todos os discursos daquela noite no cinema. Por patriotismo, a fita do assessor de Amaral caiu nas mãos do parceiro de biriba, o comandante do III Exército. Na quarta-feira, 24, o agradecido general Oscar Luís da Silva embarcou para a reunião do Alto Comando do Exército em Brasília levando na pasta o mimo gravado pela turma de Amaral. Na quinta, 25, a manchete do jornal Correio do Povo dava a crônica da morte anunciada: “Discursos do MDB levados por Oscar Luís a Brasília”.

Rossetti e Muller foram cassados pelo AI-5 na segunda-feira, 29 de março. Graças ao ouvido sensível, ao olho bom e ao dedo ruim de Amaral de Souza, louvado na morte pelos seus sucessores no Piratini e seus esquecidos opositores na ditadura como “um amigo, grande companheiro, afável, conciliador, vida pública sem máculas e absoluto respeito pelos adversários…”.

Braço amigo, mão forte

Em setembro de 1977, um mês antes de assumir o ministério em Brasília, o general Bethlem operava em Porto Alegre como o cabo eleitoral mais graduado e decisivo para as pretensões futura de Amaral. Chamou ao QG do III Exército, na Rua da Praia, o homem mais poderoso e influente da comunicação gaúcha – Breno Caldas, dono da Caldas Júnior, a empresa jornalística que, além do prestigiado Correio do Povo, tinha outros dois diários e uma rádio. No ranking de 1969 da revista Visão, o empresário despontava como o sexto homem mais rico do país. Na ficha dos militares, Breno Caldas era lembrado pelo apoio que dera ao golpe de 1964 e no enfrentamento diário a Leonel Brizola. Ao final do almoço, em pé para o cafezinho, cercado por meia dúzia de generais, Bethlem entrou de coturno no assunto:

– Dr. Breno, nós o convidamos para vir aqui pois queríamos ouvir sua opinião sobre o convite que desejamos fazer ao vice-governador Amaral de Souza para ser o próximo governador…

A democracia sem sutileza daqueles tempos era assim. General, e não o povo, é que “convidava” alguém para ser governador. O Dr. Breno ficou surpreso.

– Como assim? A minha opinião? Não conheço essa pessoa o suficiente para dar uma opinião, isto é, para emitir um conceito. Não tenho opinião formada a seu respeito. Poderia quando muito dar uma impressão… E que não é favorável!

Os generais se empertigaram, ainda mais curiosos.

– Mas… Qual é a sua impressão? Nós gostaríamos de saber…

Breno Caldas não se acuou diante das estrelas que o cercavam.

– A minha impressão é que ele está abaixo do nível necessário. Falta-lhe pelo menos um palmo e meio.

– Como assim? – perguntou o comandante do III Exército, espantado diante da inusitada régua de medição do empresário. – Em que sentido, Dr. Breno?

– Em todos os sentidos. Ele não tem estatura física, nem pessoal, nem moral.

Apesar do palmo e meio a menos, Amaral subiu as escadarias sem povo do Palácio Piratini em março de 1979, numa cerimônia que mais parecia um velório do que a festiva transmissão de posse entre dois companheiros de legenda. As fotos da época mostram a derrota fragorosa estampada na cara funérea de Guazzelli, fisionomia cerrada, cenho franzido, incapaz de esconder o constrangimento que teve de engolir – pela escolha dos quartéis e pela decisão irrecorrível do general Ernesto Geisel, o gaúcho de Bento Gonçalves cujo voto solitário prevaleceu sobre a vontade soberana de 6 milhões de gaúchos.

Esta, afinal, é a lógica das ditaduras.

O espantoso diálogo de Breno Caldas com os generais só vazou porque o próprio jornalista resolveu relembrar tudo aquilo, em fevereiro de 1983, em editorial por ele escrito e publicado na edição dominical do Correio do Povo para seus 100 mil assinantes, intitulado “Palmo e meio”. O empresário reagia à péssima notícia que recebera ainda na festa de inauguração do Polo Petroquímico do Sul, em Triunfo, a 52 km de Porto Alegre. O Banrisul, banco oficial do Estado, subordinado ao ainda governador Amaral de Souza, tinha entrado naquele dia na Justiça com uma ação executiva pela dívida da Caldas Júnior.

Mais de cinco anos após aquela esquisita conversa no QG, Breno Caldas resolveu contar ao mundo o que costumava circular apenas nas dobras mais íntimas do poder discricionário da época. Convertido de repente às virtudes do regime democrático que ajudou a derrubar em 1964, o Breno Caldas endividado de 1983 agora lamentava os pecados da escolha autocrática dos generais. Escreveu ele no editorial:

“Como o personagem em causa [Amaral de Souza] não foi submetido ao teste de uma eleição direta, mediante a qual existisse a possibilidade de consenso amplo, não sei se minha impressão, que depois se tornou opinião consistente, seria, ou não, aprovada pelo grande número. Não sei. Para mim, o que se viu não deixa dúvidas”.

Amaral de Souza, o personagem em causa, só chegou ao Piratini pela via oblíqua dos quartéis porque a ditadura sempre dispensa o “consenso amplo” típico das democracias, tardiamente lembrado pelo nostálgico Breno Caldas. Apesar da falta de “estatura física, pessoal e moral” anotada pelo mais importante jornalista gaúcho da época, Amaral escalou o Palácio Piratini com o braço amigo e a mão forte do Exército, que compensou sem sobressaltos o palmo e meio de sua escassa biografia política. Conseguiu ser o menor dos 36 homens e uma mulher que governaram o Estado, desde a República.

Arquivos incinerados

Com seus ralos 1m58, Amaral de Souza conseguia ser ainda mais baixinho do que Getúlio Vargas, que saiu da vida e entrou na história como líder de massas, regente por um quarto de século de um país redesenhado politicamente à sombra descomunal que se projetava de seu parco 1m60 de altura.

Amaral não correu jamais esse risco de grandeza, até porque ganhou notoriedade na política como um mero Amaralzinho, o diminutivo que explica melhor sua miúda passagem pela história.

Amigos apressados e adversários educados tentaram dourar sua morte com encômios pela conquista do Polo Petroquímico, de tão amarga memória para o desafeto Breno Caldas. Mas não passa de uma inverdade histórica, que tenta dar algum lustro ao reles mandato de Amaralzinho. A construção do terceiro polo petroquímico do país, que o Rio Grande do Sul disputava com São Paulo, Pernambuco e a Bahia do poderoso Antonio Carlos Magalhães, então presidente da Eletrobras, foi decidida em agosto de 1977 pelo general Ernesto Geisel, convencido por uma inédita união entre governo e oposição no sul.

De um lado, a Arena do governador Synval Guazzelli e, de outro, o MDB de Pedro Simon, que controlava uma folgada maioria de 31 das 56 cadeiras da Assembleia Legislativa, onde se criou uma Comissão Especial. Pelo Polo de Triunfo, Guazzelli e Simon foram a uma inédita, rara reunião com Geisel em Santana do Livramento, na fronteira com o Uruguai. A vitória gaúcha ficou evidente quando Geisel reagiu, animado, diante da presença inesperada do MDB: “Como não aceitar um pedido de uma composição tão exemplar que a política do Rio Grande está dando como exemplo para todo o Brasil?”

As digitais do pequeno governo Amaralzinho se percebem com a aparição do inquieto CPERS, o Centro de Professores do Estado, que ocupou a praça da Matriz e infernizou a vida do governador ao longo de 13 dias de uma greve barulhenta pelo piso de 2,5 salários mínimos. A partir de Amaralzinho, nenhum governador mais pode festejar o silêncio do CPERS. Como uma maldição de Breno Caldas, morto em 1989 aos 79 anos, Amaral também deixou o governo endividado, com um aumento de 79,1% no rombo das contas públicas, obrigando o Estado a buscar recursos no Banrisul e no BRDE para cobrir o déficit operacional.

No final de 1980, Amaral promoveu o policial mais famoso do sul, Pedro Carlos Seelig, a delegado de quarta classe, o ponto mais alto da hierarquia da segurança. Era o contraponto ao crepúsculo do homem mais temido do DOPS gaúcho, cuja carreira entrou em declínio após o fiasco do sequestro dos ativistas de esquerda uruguaios Universindo Díaz e Lílian Celiberti e seus dois filhos, presos numa ação clandestina da Operação Condor, em novembro de 1978, em Porto Alegre, executada por agentes de Seelig e militares da repressão do Uruguai. Braço longo da repressão no sul, onde era conhecido como “o Fleury dos Pampas”, Seelig tinha a proteção incondicional da área militar, que sempre merecia atenção especial de Amaral.

Isso não impediu que, em maio de 1982, um ano após o frustrado atentado do Riocentro que escancarou a ação terrorista do DOI-CODI, Amaral tomasse uma ousada decisão: extinguiu o DOPS de Seelig. O secretário de Segurança, João Leivas Job, explicou o ato: “Como consequência do processo de abertura, o DOPS não é mais necessário”. Na verdade, era o sistema repressivo da ditadura se preparando para o advento das eleições diretas, em outubro daquele ano, que poderia abrir documentos incômodos aos governantes eleitos pela oposição. Uma decisão reservada de Brasília estava transferindo preventivamente as ações de repressão política dos Estados para a área mais confiável da Polícia Federal.

Dois dias depois, uma quinta-feira, 27 de maio de 1982, Amaral aumentou sua aposta, determinando a incineração dos preciosos arquivos do DOPS. Quatro caminhões de mudança levaram toneladas de documentos do DOPS da Avenida Ipiranga para os fornos de uma olaria da Brigada Militar em Gravataí, na Grande Porto Alegre, onde queimaram durante oito horas. Viraram cinzas os papéis que contavam 44 anos de repressão política do DOPS gaúcho, criado na ditadura do Estado Novo de Vargas.

Retrato público

O ativista Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), qualificou a pirotecnia de Amaral como uma “farsa”, pois parte dos documentos supostamente destruídos foi localizada anos mais tarde em Montevidéu. “Os documentos foram microfilmados. O arquivo do DOPS foi modernizado e entregue ao Comando Militar do Sul”, diz Krischke, referindo-se à nova denominação do III Exército. Ele diz que, nos arquivos do MJDH em Porto Alegre, existem documentos do extinto DOPS com anotações de datas posteriores à queima pública. “Se essas fichas foram queimadas, como aparecem aqui com atualizações?”, pergunta ele.

Na época da fogueira, o então candidato do PT a governador, Olívio Dutra, resumia assim a questão: “O governo já perdeu as eleições no Rio Grande e quer evitar que os arquivos caiam nas mãos da oposição”. Amaralzinho, muito precavido, parecia também acreditar nisso. Como se sabe, porém, o governo não perdeu. Dividida entre PMDB, PT e PDT, a oposição deixou de ganhar uma eleição que parecia líquida e certa. O candidato de Amaral, Jair Soares, da Arena rebatizada como PDS, venceu o favorito Pedro Simon, do PMDB, por apenas 22.373 votos, cerca de 0,6% do eleitorado gaúcho, numa apuração controversa contaminada pela suspeita de fraudes – nunca provada e estimulada pelo precoce reconhecimento da derrota pelo PMDB, o que desativou todo o mecanismo de fiscalização do pleito.

Assim, com tantos serviços prestados ao regime que serviu com fidelidade canina, Amaralzinho pode enfim passar o cargo em 1983 a um governador eleito diretamente pelo povo, algo que não acontecia no Estado havia 21 anos – o tempo de vida da ditadura (1964-1985). A ironia é que, depois de duas décadas sem o “consenso amplo” da democracia, a primeira eleição direta no Rio Grande consagrou um legítimo herdeiro da Arena da ditadura que cassou o voto popular e que gerou governantes com palmo e meio de legitimidade política. Esta, talvez, tenha sido a marca mais expressiva daquele governo pontuado pela inexpressividade.

Resta lamentar que um Estado um dia conhecido por sua cultura e coragem política não consiga, em plena democracia, pintar o justo retrato, com verrugas e tudo, que nos revelam os homens e suas imperfeições perante a História. Esta é uma tarefa indelegável das lideranças políticas, uma obrigação permanente da imprensa e seria uma reação previsível de seu braço mais militante – os blogs e sites combativos que, estranhamento, engoliram em seco a visão adocicada sobre Amaralzinho e seu legado político. Um país maduro e informado se constrói todo dia pelo retrato sem retoque daquilo que é, daquilo que se faz e daquilo que se vê.

Até um gênio da pintura pode errar a mão. O alemão Hans Holbein (1498-1543), o Jovem, um dos mestres do retrato no Renascimento, em tempos sem internet e sem photoshop, foi contratado pela Corte inglesa para fazer o retrato prévio de Ana de Cleves, filha do duque alemão de Dusseldorf que atraía os olhares gulosos do rei inglês Henrique VIII (1491-1547).

Holbein se esmerou e retratou uma jovem que ficou mais bonita na moldura da parede do que na cama do rei. Chegou ao requinte de ocultar as cicatrizes de varíola na face que poderiam assustar o real pretendente. Quando enfim foi apresentado à noiva, o rei conferiu pessoalmente o engano. Ainda assim, Henrique VIII conseguiu aguentar seis meses de casamento em 1540 com Ana, a quarta rainha de sua coleção de seis mulheres.

Quase um século depois, Oliver Cromwell, o líder puritano que decapitou o rei Charles I (1600-1649), revogou a monarquia absoluta e estabeleceu uma fugaz República em Londres 140 anos antes da queda da Bastilha, não perdeu a cabeça ao encomendar seu retrato ao mestre Peter Lely (1618-1680). Com o desprendimento que seria útil a qualquer político ou repórter diante das verrugas de Amaralzinho, o temido Cromwell, Lorde Protetor do Reino Unido, isentou o pintor oficial da corte de qualquer autocensura.

Peter Lely, de origem holandesa, era o retratista particular de Charles I, mas sobreviveu ao rei pelo talento e obediência às ordens de Cromwell em 1635: “Mr. Lely, eu desejo que você use toda a sua habilidade ao pintar o meu retrato verdadeiramente como sou, sem lisonjas. Observe todas essas rugosidades, espinhas, verrugas e tudo como você me vê. Se não for assim, não pagarei um centavo por ele”.

A máscara mortuária de Cromwell comprova que Lely foi fiel às determinações do retratado, preservado as duas enormes verrugas que marcam o rosto do Lorde – uma no queixo, abaixo do lábio, outra sobre o supercílio direito, próxima ao nariz. A lição de honestidade imposta por Cromwell fez escola, como se pode ver em retratos semelhantes pintados por outros artistas, todos preservando as rugas, espinhas e verrugas da vida real.

Quase quatro séculos depois, o retrato público de Amaralzinho retocado pela indulgência plenária de seus crédulos simpatizantes prova que o exemplo de Cromwell continua necessário. Afinal, o sentimento da história não se resgata com o fingimento da política.

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[Luiz Cláudio Cunha é jornalista]