Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Você é contra ou a favor?

Já que estão na moda as enquetes pela internet, aproveito o gancho da notícia da licença ambiental prévia do Ibama para a construção da usina nuclear de Angra 3 e pergunto: você é contra ou a favor da energia nuclear? Ou melhor, você é contra ou a favor da construção dessa obra? Calma, não precisa responder.


Para ter sua própria opinião sobre essas questões ou qualquer outro tema polêmico, parece que existe uma receita eficaz: considerar primeiramente ‘os prós e os contras’ e depois decidir se é ‘a favor, contra ou muito pelo contrário’. No plano da opinião pública, parece haver a crença de que essa fórmula serve para desvendar os temas mais relevantes, principalmente os que são polêmicos e têm implicações para a sociedade.


Para a imprensa, é obrigação apresentar o contraditório de qualquer posição sobre um assunto. Mas nem sempre o fiel cumprimento desse dever basta para que o leitor possa se considerar minimamente bem informado para formar sua própria opinião. Em outras palavras, o imperativo ético de ouvir o outro lado é necessário, mas nem sempre é suficiente.


Vale observar que até mesmo a obrigação do contraditório tem sido cada vez desrespeitada, e isso foi apontado como uma tendência crescente no relatório de 2005 do projeto ‘The State of the News Media‘, da Universidade Columbia. Baseado em uma extensa e periódica pesquisa de campo realizada em parceria com outras universidades norte-americanas, esse estudo apontou o crescimento do que chamou de ‘filosofia afirmativa’ da mídia de ‘publicar qualquer coisa, especialmente pontos de vista, ficando a checagem e a verificação para os blogs dos pares’.


Disputas polarizadas


Mas a questão aqui não é o fato de o contraditório ser cada vez mais desrespeitado, e sim o de que ele nem sempre é suficiente. Se examinarmos com profundidade os temas polêmicos recentes de grande repercussão, principalmente os que envolvem a ciência e o meio ambiente — como uso de células-tronco embrionárias humanas em pesquisas, alimentos transgênicos, as hidrelétricas de grande porte na Amazônia, transposição de águas do Rio São Francisco e energia nuclear —, veremos que as argumentações das partes antagônicas em relação a eles não são exatamente as duas metades do conjunto de informações relevantes a serem consideradas. Ou seja, juntando tudo que dizem os lados opostos, há muitos fatores importantes que não aparecem, inclusive porque muitas vezes existem aspectos cuja divulgação não interessa a nenhum dos dois contrários.


Um dos principais focos da discórdia em todos os temas polêmicos ligados ao meio ambiente é o chamado princípio de precaução. É principalmente em função dele que têm sido levantados argumentos contrários e favoráveis não só para obras de grande porte e para a implantação de novas tecnologias que trazem implicações para a saúde e o meio ambiente, mas também para aquelas que podem ter implicações éticas, como no caso das células-tronco.


Esse princípio tem diversas formulações, entre elas as duas transcritas a seguir.


** A ausência de certeza científica devida à insuficiência das informações e dos conhecimentos científicos relevantes sobre a dimensão dos efeitos adversos potenciais de um organismo vivo modificado na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica na Parte importadora, levando também em conta os riscos para a saúde humana, não impedirá esta Parte, a fim de evitar ou minimizar esses efeitos adversos potenciais, de tomar uma decisão, conforme o caso, sobre a importação do organismo vivo modificado destinado ao uso direto como alimento humano ou animal ou ao beneficiamento. (Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança da Convenção da Diversidade Biológica, Artigo 11, inciso 8)


** Quando atividades podem conduzir a dano moralmente inaceitável, que seja cientificamente plausível, ainda que incerto, devem ser empreendidas ações para evitar ou diminuir aquele dano. ‘Dano moralmente inaceitável’ refere-se a dano para os seres humanos ou para o ambiente, que seja uma ameaça à vida ou à saúde humanas, ou que seja sério e efetivamente irreversível, ou injusto com as gerações presentes e futuras, ou imposto sem a adequada consideração dos direitos humanos daqueles afetados. O juízo de plausibilidade deve estar fundado em análise científica. As análises devem ser contínuas, de modo que as ações escolhidas sejam submetidas a revisão. ‘Incerteza’ pode aplicar-se, mas não necessita limitar-se, à causalidade ou aos limites do dano possível. ‘Ações’ são intervenções empreendidas antes que o dano ocorra que buscam evitar ou diminuir esse dano. Deve-se escolher ações que sejam proporcionais à seriedade do dano potencial, com consideração de suas conseqüências positivas e negativas, e com uma avaliação tanto da ação como da inação. A escolha da ação deve ser o resultado de um processo participativo. [Tradução de Pablo Rubén Mariconda do original em inglês do artigo de Hugh Lacey, ‘O princípio de precaução e a autonomia da ciência’, para a revista Scientiae Studia, São Paulo, v. 4, n. 3, jul-set 2006, p. 374.] (Comest – World Commission on the Ethics of Science and Technology. The precautionary principle. Paris: UNESCO, 2005, p. 13)


Em outras palavras, respeitar o princípio de precaução não implica buscar a plena certeza nem a negação absoluta da segurança de novas tecnologias ou de grandes obras, mas o esclarecimento de parâmetros sobre riscos potenciais e benefícios previstos a serem ponderados nas instâncias de decisão. E esses parâmetros devem levar em conta não apenas os aspectos técnico-científicos, mas também os de ordem econômica e social e de longo prazo. Isso não tem nada a ver com a guerra de desinformação que é travada na opinião pública pelos antagonistas dessas disputas polarizadas.


Alternativa simplória


Dependendo da forma como se relaciona com o ‘poder’ e como balanceia os prós e os contras nessas questões polêmicas, a imprensa acaba fazendo o papel de refém ou de cúmplice desse tiroteio desinformativo. Mesmo que se consiga trabalhar com um nível razoável de independência editorial, para sair dessa situação é preciso um sério esforço investigativo, e não a consideração rigorosa dos contraditórios. E isso não exige necessariamente descobrir fontes que revelem segredos guardados a sete chaves ou coisas do gênero.


O trabalho jornalístico investigativo também pode ser interpretativo, por meio da contextualização, análise e reflexão sobre dados divulgados, revelando conexões relevantes entre fatos ou dados considerados de menor importância. É preciso, portanto, sem perder a visão do conjunto, mergulhar nos meandros dessas questões. Ou entregar de vez a rapadura, ouvir as partes envolvidas e fingir que presta um serviço para o leitor chamando-o para uma enquete pela internet: você é contra ou a favor?


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Em tempo – No plano das relações internacionais, o antagonismo entre conservação ambiental e crescimento econômico está na ordem do dia em relação à adoção de biocombustíveis, trazendo complicações inéditas para quem está acostumado a ver esses problemas sob a óptica simplista dos mocinhos versus bandidos. Uma abordagem interessante sobre esse tema foi feita pelo pesquisador britânico Paul Kennedy, professor de História e assuntos internacionais da Universidade Yale, no artigo ‘‘La ecología, otra gran víctima de la crisis’, publicado na terça-feira (22/07) no jornal espanhol El País. Agradeço ao Blog do Alon, do jornalista Alon Feuerwerker, editor de Política do jornal Correio Braziliense, por ter sugerido esse texto.

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Jornalista