Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

A ideologização da ciência

Em julho, foram publicados na revista Nature os resultados de um estudo recente sobre as interferências que causam as erupções vulcânicas na história climática do nosso planeta. Mas o que concretamente isso representa, qual a interpretação desse resultado? Isso vai depender da capacidade de percepção e do nível de conhecimento do leitor. Afinal, inúmeros pensamentos são elaborados pelo leitor sobre tal fato, entre eles o do alcance da ideologia da ciência.

Pode ser considerado natural, quando se pensa em ciência, que todos os cientistas, inebriados pelo compromisso com o futuro da humanidade, busquem colaborar uns com os outros em prol de um objetivo comum a todos. Ledo engano: uma das molas propulsoras da ciência é a negação de um fato, ou seja, um tenta “desmascarar” o outro, todavia de forma elegante, sempre com a diplomacia científica do apoio às suas interpretações com base naquilo que os “números revelam”.

É muito comum, entretanto, que os cientistas busquem atender à demanda pela solução de um problema que, por vezes, quando solucionado, irá beneficiar um grupo de interesse. É preciso lembrar, entretanto, que para se fazer pesquisa, principalmente aquelas consideradas “de ponta”, são necessários equipamentos e recursos de modo geral, os quais são traduzidos em cifras, por vezes de valores muito elevados. E quem detém esse recurso é muitas vezes financiado por este ou aquele grupo de interesse, que normalmente também possui “livre acesso” à mídia nas suas diversas formas – a mesma mídia que algumas vezes faz acreditar que as grandes descobertas da ciência foram feitas totalmente ao acaso por gênios iluminados.

O risco de ganhar espaço

Mas, ainda que “gênios”, o avanço na ciência ocorre de fato por meio da ação de constantes pesquisas ao longo de anos, realizadas por muitas pessoas que receberam o ensinamento científico que, muitas vezes, não é ensinado como deveria ser. Afinal, ser cientista no mundo de hoje, em particular no Brasil, não é, eminentemente, realizar pesquisas baseadas na cooperação entre os pares na busca por um resultado em comum, mas ter que se adequar à exigência da produção de números astronômicos de publicações para obtenção de recursos nos órgãos financiadores, sempre na busca da sobrevivência científica.

As ideias não surgem de modo gratuito na mente do pesquisador, mas são produzidas a partir da percepção da realidade concreta. A própria formação moral do pesquisador é decisiva para essa percepção. Ou seja, uma mesma experiência vivida por pessoas diferentes provoca interpretações distintas – as ideias são determinadas pela posição que se ocupa também dentro de um contexto social e político. Assim, a diversidade de posições frente a uma mesma realidade, como no caso das mudanças climáticas, que deveria ser um fato comum entre os cientistas, de fato não o é, sendo que na maioria das vezes um pesquisador passa a defender a linha de pensamento que é favorecida pela onda dos recursos disponíveis à pesquisa. Assim como nesse exemplo, em muitas outras áreas da ciência os órgãos financiadores das pesquisas devem apoiar, de alguma forma, uma determinada linha de pensamento. Entretanto, algumas vezes isso não é feito com base num ideário, no sentido neutro de conjunto de ideias, e isso é fato real.

Aqueles cientistas que não se encaixam nessa linha de pensamento e tentam negar as hipóteses, mesmo se tiverem razões científicas para tal, não terão apoio dos órgãos financiadores para suas pesquisas devido àquela miopia ideológica de Karl Marx, que age mascarando a realidade e não favorece a ciência, mas os interesses políticos velados de alguns grupos.

Não é possível financiar aqueles que pensam diferente. Afinal, eles correm o risco de ganhar espaço, inclusive na mídia, e necessariamente a ampliação do espaço de atuação de uma “linha de pensamento” implica a redução do espaço da outra. Assim, a classe que detém o controle cria representações da realidade pregando ideias ao público em geral de como as coisas são, como elas ocorrem e, nesse contexto, atribuindo também valores aos fatos, ou seja, no caso do exemplo anterior: quem é responsável pelo aquecimento global, quem é responsável pela destruição do meio ambiente, o quanto deve mudar o homem seu comportamento predatório do planeta etc.?

O aquecimento global ideológico

Seguindo-se, assim, as normas para se atingir tal objetivo, ou seja: o que deve ser feito para mudar a realidade do planeta, como mitigar tal realidade? Desse modo, sem que se perceba, tal modelo ideológico é propagado, tornando-se conhecido pela sociedade, passando a orientar individualmente as pessoas bem como a conduta do grupo na totalidade. Ocorre, porém, que dentro da ciência algumas vezes podem não se alcançar os objetivos desejados, principalmente se um grupo com outra percepção da realidade resistir a “tal ideologia”. Logo, quando não é possível disfarçar os interesses da linha de pensamento dominante, os prejuízos para aqueles da linha de pensamento divergente são disfarçados.

É nesse momento que alguns órgão e instituições assumem a responsabilidade pela ideologia. Aos órgãos governamentais e seus representantes são atribuídas todas as responsabilidades, sugerindo que as decisões são de um grupo neutro que tem como único objetivo o progresso da ciência. Tal ação busca ocultar, de fato, que aqueles que governam apenas exercem o poder em defesa dos interesses daqueles que detém o poder “dinheiro”. A negação de qualquer possibilidade de mudança reforça a ideologia adotada, ou seja, pregar que as contradições de ideias no meio científico é algo natural e inevitável, assegura vida longa a linha de pensamento dominante e garante os recursos necessários para sua manutenção, assegurando também que do outro lado resta o somente o “limbo das teorias.” Afinal, sem recursos, como a pesquisa pode ser feita, como pode, na prática, ser negado a teoria, em nosso exemplo, do aquecimento global?

Tal situação, embora possa se assegurar por longo tempo, não é eterna. A manipulação ideológica precisa mudar e aperfeiçoar-se, sob pena de perder a eficácia. Cada vez se acredita menos em uma verdade absoluta e apesar de ser um processo lento os meios de controle perdem pouco a pouco sua eficiência e tendem a desmoronar. A ciência, representada pelos seus cientistas, deveria ser merecedora de imunidade partidária. Afinal, em um país onde só existe apoio financeiro para pesquisadores que surfam na onda da linha de pensamento apoiada por este ou aquele partido político que está no poder, é um país fadado e correr sempre na “lanterna do avanço científico” – afinal, os órgãos financiadores são geridos, em sua maioria, com base em recursos públicos.

Nesse cenário científico, com raras exceções, dentro de um astronômico número de trabalhos exigidos pelas agências de fomento, salvam-se alguns que realmente podem ser classificados como de avanço científico. No caso da pesquisa apresentada na revista Nature, mais uma vez, a ciência revela explicações acerca das mudanças climáticas que, dependendo do conhecimento do leitor sobre o tema, apenas reforçam a certeza de que o aquecimento global ideológico não é aquilo que de fato parece ser.

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Williams P.M. Ferreira é meteorologista da Embrapa Café