Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Apontamentos sobre o jornalismo disléxico

Uma nova ordem econômica e ambiental surge no horizonte do planeta, cujos efeitos imediatos estão na destruição de paradigmas encalacrados na sociedade consumista e industrial. Um momento único, singular e grave, no qual conceitos até então distintos e opostos se unem numa simbiose inimaginável há poucos dias. A esse fenômeno denominou-se economia ecológica, ou simplesmente, ecoeconomia. Uma revolução que altera desde o comportamento humano em todas as escalas. Mas cabe a pergunta: o jornalismo já se apercebeu disso ou analisou as conseqüências desse novo estado de coisas nos noticiários?

A entidade não-governamental Green Cross International, presidida pelo ex-líder da extinta União Soviética Mikhail Gorbatchev, tem alertado as nações sobre a necessidade de se repensar a vida econômica na Terra dentro de um grau maior de complexidade, sob a visão científica de causa e efeito. Isto sem se esquecer de que quem é soberano neste processo não é o homem, mas o planeta, o espírito de Gaia, sobre o qual o cientista britânico James Loverlock formulou sua hipótese – controversa, porém fascinante – de ter a Terra condição de reagir como um ser vivo às agressões sofridas.

Visão anacrônica

O megaencontro ambiental Eco-92, realizado no Rio de Janeiro, deu todos os sinais e encruzilhadas aos governantes que, de maneira ainda tribal, defendem seus territórios geopolíticos sem entender que para a natureza essas fronteiras inexistem. Por sua vez, o jornalismo avançou na cobertura ambiental, mas tem esbarrado num problema crítico de formação profissional e conceitual: nunca mistura os assuntos. Vivemos, editorialmente, o ‘dai a César o que é de César’. A segmentação dos temas abordados em ordenamento estático implodiu nessa nova ordem.

O jornalismo está estanque, como o Colosso de Rodes, sob seu enorme pedestal de bronze e a aura de quarto poder, enquanto uma revolução holística funde inúmeros fatores, inclusive a transformação planetária, num só bojo. Os conhecimentos se agregam e se transformam a cada instante. Padrões climáticos, recursos naturais como água potável e solos férteis, o comportamento dos oceanos e a interferência antrópica nestes imensos sistemas clamam por divulgação e melhor compreensão. Mas como comunicadores sociais nos acomodamos no conveniente tripé da cegueira, surdez e mudez.

Esse processo de alienação é, por vezes, imposto nas redações pela visão anacrônica, acomodada e pseudo-intelectual dos que conduzem o jornalismo brasileiro. Somos sim autocríticos como profissionais de imprensa, mas o problema agora é a abrangência desta auto-análise. Parecemos encarcerados a reclamar do pouco espaço da cela, sem ver que é permitido ir ao lado de fora e conhecer uma imensidão inexplorada, o horizonte infinitamente mais amplo que o cotidiano medíocre que espelhamos em nossos noticiários.

Realidade paralelas

Não há mais dúvida, os jornais são apenas reflexos de quem os faz e da visão de mundo partilhada em escaninhos mofados, dos quais sequer limpamos a poeira acumulada ao longo dos anos. Somos os novos autistas da sociedade a ditar fatos velhos como grandes notícias, sem ao menos compreendê-los e interpretá-los sob os novos contextos sociais.

Preocupamos-nos em noticiar desde a perpétua corrupção em Brasília à destruição da Amazônia com uma passividade irritante. Disfarçamos, assim, muitas vezes, nossa ignorância e analfabetismo sob o manto da imparcialidade. Não somos imparciais, mas sim reféns de nossas próprias regras e limites impostos. Assim mantemos nosso status quo inamovível e desfrutamos da falsa sensação de determos algum poder.

Necessitamos urgentemente de repórteres e editores generalistas, cultos, não eruditos. É preciso fazer ressurgir o jornalista que conhece de tudo um pouco, pois nos saturamos daquele que conhece muito de pouco. Entramos numa erudição estagnante, na qual economia nunca se mistura com biologia ou química. Nesta realidade paralela, tratamos empolgados do aumento na venda de carros, mas nas páginas seguintes alardeamos os altos índices de poluição atmosférica. Como se um assunto fosse totalmente desconectado do outro.

Claustro a romper

Nos modelos adotados para facilitar a elaboração dos nossos jornais, trancafiamos os conhecimentos em gavetas separadas, nas quais é impossível combinarem-se os conteúdos. Só entendemos se for absolutamente dividido, sem qualquer interação. Longe de ser exagero, evoluímos para uma nova categoria de disléxicos, cuja dificuldade em compreender o óbvio, o elementar, de assimilar o conteúdo tem norteado nosso trabalho. Vivemos de frases soltas, sem conseguir ter o sentido do todo.

O jornalismo esqueceu-se de exercitar a inteligência crítica e analítica, de incluir-se definitivamente no mundo globalizado e entender-se parte inerente deste processo. Por comodidade, decidimos entulhar o noticiário com informações internacionais e nacionais sem contextualização, sem a ousadia de mostrar que fazemos parte de uma imensa teia, tecida por um único fio.

Algum dia perceberemos a urgência de se romper com o claustro, com a fobia da multiplicidade e encarar a conectividade de fatos e ações. Fugir da ciência como pauta diária é atestar o despreparo completo para encarar um novo tempo, que não pedirá permissão para acontecer a editores e repórteres, enfurnados em seus casulos. Inexiste algo mais hipócrita que argumentar com a falta de interesse de leitores, telespectadores, internautas e radiouvintes em assuntos científicos, se atualmente a ciência norteia as ações decisórias em todos continentes?

Fadados a cúmplices

O jornalismo científico está longe de ser um modismo. É um gênero primordial para avançarmos como seres racionais e responsáveis pelo todo planetário, por nossa sobrevivência e continuidade como espécie. Por isso tornou-se essencial tanto nos periódicos como na comunicação cotidiana. Uma reportagem bem-feita, com fontes críveis, educa, conscientiza e colabora no desenvolvimento intelectual do indivíduo, qualificando-o a avaliar melhor o mundo que estamos edificamos e, sobretudo, em que nos transformamos.

O esforço de avançar sobre o desconhecido é crucial para deixarmos o universo da mediocridade. Temos que ter a coragem e o atrevimento de nos recriar como profissionais e profissão, de dar uma forma atualizada ao conceito de notícia. Só quando alcançarmos esse estágio seremos realmente comunicadores sociais. Deixaremos, então, o estigma de abutres vasculhadores de destroços e alçaremos vôos para além das mesquinharias, da banalização e da repetição.

Em meio a tudo isto, surge apenas uma certeza: nunca o homem em seu processo evolutivo precisou tanto do exercício do jornalismo sério, comprometido e responsável como agora. Ou conseguimos ter a compreensão disto ou estaremos fadados a ser cúmplices de desastres anunciados.

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Jornalista pós-graduado em jornalismo científico