Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Boa surpresa e um porém

Há tempos não lia mais a Superinteressante (desde que, após uma mudança editorial, passou a abordar acriticamente teorias conspiracionistas contra a vacinação, a acusação de que o HIV não causa Aids e outras bobagens do gênero).

Semana passada fui lá na banca substituir o meu almoço (dois almoços, a revista está os olhos da cara) e comprei a edição de novembro.

Tive uma boa surpresa.

O estilo continua leve – tem algumas liberdades que produzem algumas incorreções, mas acho que nada de muito grave: alguns usos incorretos de termos, como a definição de força nuclear como energia que une os elementos no núcleo dos átomos –, porém equilibrado. A diagramação e os gráficos, que sempre foram pontos fortes da revista, continuam recebendo cuidados especiais – cuido até que melhoraram (fizeram um mix interessante de imagens geradas por computador, fotografias, fotomontagens e arte feita a mão).

A reportagem de capa: câncer (para variar – tema freqüente de sensacionalismos) foi bem tratada: sem euforia demasiada, apresentando os reais problemas, enfim, deu um quadro de otimismo (comedido) realista (nem sempre o pessimismo é sinônimo de realismo). Em outro tema polêmico, a liberação ou não da jogatina, também procurou um bom ponto de equilíbrio, mostrando os argumentos prós e contras.

O porém fica por conta da seção Superpolêmica – de cuja responsabilidade a revista continua se eximindo. O texto ‘Oriente e ocidente na busca das mesmas questões’ é de um médico naturalista. Apresenta paralelos manjados (fartamente explorado por Fritjof Capra, cujo livro O tao da física, que tive oportunidade de abordar certa vez neste Observatório, é um dos marcos misticóides) entre a cosmogonia científica e a da mitologia hindu:

‘A teoria do big bang, como foi chamada, é semelhante à teoria cosmogônica encontrada no Veda, texto do século 15 a.C. do bramanismo ortodoxo. O mito de Hiranyagarbha, ‘o ovo dourado’, explica que esse ovo mergulhado no oceano de energia indiferenciada se aqueceu progressivamente gerando Brahma, o criador. A partir daí se desenrola toda a criação do Universo. Coincidência?’.

E continua:

‘Alguns físicos que apóiam a teoria do big bang dizem que somos formados de ‘restos de estrelas que já explodiram’. O Vedanta, uma das escolas ortodoxas do bramanismo do século 10 a.C., usa a máxima tat tvam ais, que, ao pé da letra, significa ‘tu és aquilo’, fazendo referência a que tudo que constrói o Universo também constrói o que somos. Outra coincidência?’.

A resposta a essas duas indagações é sim e não respectivamente.

A semelhança entre o modelo cosmogônico mais disseminado atualmente entre os astrônomos e a mitologia hindu é uma coincidência, se não se assemelhasse ao mito hindu, fatalmente assemelhar-se-ia a alguma cosmogonia mitológica. Isso porque na verdade existem poucas opções cosmogônicas gerais: ou o Universo teve uma origem em algum ponto no passado ou sempre existiu; ou o Universo existirá para sempre ou terá um fim; em tendo começo e fim, ou será de ciclo único ou haverá repetições de mais ciclos de origem e destruição.

Uma coisa é uma coisa

Na combinação disso temos basicamente apenas cinco grandes modelos da história do Universo: um sempiterno (sem começo nem fim), dois semi-eternos (sem começo, mas finito ou então com ponto inicial, mas sem fim), um finito singular (com começo e fim, sem repetição) e o finito cíclico (com começo e fim e repetido – uma variação do sempiterno). Note-se que as denominações são minhas e não seguem nenhuma classificação ‘oficial’ de modelos cosmogônicos. Existem milhares de religiões (alguns contabilizam na casa de 6 mil sistemas de crenças), a maioria com suas próprias narrativas de origem e destino do Universo (ou do que poderemos identificar como Universo em seus mitos). Alguém ficaria surpreso se todas as cinco possibilidades estivessem contempladas nessas milhares de histórias?

O mito hindu fala de ciclos de criação e destruição do, vá lá, Universo. Teve início, ok, assim como prediz (ou retrodiz) o Big Bang. Mas e quanto ao fim e à ciclicidade? Um dos modelos cosmológicos científicos, dependendo da quantidade de energia e de matéria no Universo, prevê o Big Crunch: o Universo colapsando-se sob a ação da gravidade. E isso abriria espaço para um novo Big Bang. Isso seria compatível com o mito hindu (mas também aos mitos maias e algumas interpretações judaico-cristãs, entre outras). Porém, medições atuais parecem indicar que o Universo deve se expandir para sempre (e a taxa de expansão está se acelerando). Seria isso um fim?

Convém lembrar que as semelhanças não são tão profundas: tanto quanto se sabe, a Terra não está apoiada nas costas de quatro elefantes que se firmam sobre o casco de uma tartaruga. São metáforas como o ovo cósmico? Bem, mas a qual elemento da realidade correspondem? O que isso tem a ver com a mitologia hindu? Ela está errada? Ou simplesmente devemos evitar misturar uma coisa com a outra?

Bênção a Ganesh

Quanto ao ‘tat tvam ais‘: não é uma coincidência. Trata-se de uma interpretação livre do significado da expressão. Ligar um ‘tu és aquilo’ ao ‘pó de estrelas’ é um exercício de imaginação. Ou deveremos considerar também a antiga divisa publicitária ‘Coca-Cola é isso aí’ ou o bordão da personagem donzela de Zezé Macedo ‘ele só pensa naquilo’?

Sobre as técnicas de cura, o artigo diz:

‘Apesar de as grandes discussões entre mecanicistas e vitalistas terem ocorrido há pelo menos 200 anos, essa situação é presente ainda hoje. Um bom exemplo são as divergências entre defensores e detratores das medicinas não convencionais, como a homeopatia, a ayurveda e a medicina chinesa. Nessas situações, vemos a ciência ocidental querendo socar uma visão vitalista de medicina nos seus modelos mecanicistas de reprodução de eventos. Se acho saudável buscar explicações científicas para os mecanismos das medicinas vitalistas, preocupa-me o reducionismo de negá-las pela falta de um aparelho ou de um modelo que possa demonstrá-las. No entanto, para a sorte das ‘artes de curar’, como a homeopatia e a medicina ayurvédica, além de outras, seus adeptos estão mais interessados em seus resultados que nas explicações de seu funcionamento.’

‘Para a sorte das ‘artes de curar’ (…) seus adeptos estão mais interessados em seus resultados que nas explicações de seu funcionamento’. Por outro lado, para azar de seus adeptos tais ‘artes de curar’ não encontram embasamento nos resultados – não curam mais do que água com açúcar. Quanto à reprodução de eventos, isso independe de ser modelo mecanicista, vitalista, reducionista, holista ou outra coisa. Se alguém diz ‘eu prevejo o futuro, lançarei a moeda e sairá cara’, lança a moeda e sai cara, deveremos acreditar que ele previu o futuro, se ele erra e acerta nas demais tentativas na proporção aproximada de 50%?

A reprodução de eventos é fundamental quando procuramos generalizar princípios. Se o princípio funciona apenas às vezes e não sabemos quando funciona e quando não, esse princípio é de utilidade limitada.

Os adeptos (das ‘artes de curar’ convencionais ou não convencionais) estão sempre mais interessados nos resultados, é um ato pragmático (e é o que leva à busca posterior das explicações – na tentativa de eventualmente poder melhorar a eficiência, descobrir novos processos de tratamento e por aí vai), porém, se se está mal informado quanto aos resultados (e aí entra a necessidade da reprodução dos eventos), não se trata de sorte. Alguma coisa das ditas ciências orientais (uma denominação que na verdade oculta uma variedade de sistemas nada relacionados) deve funcionar, mas muitas não funcionam. A reprodução de eventos nos permite distinguir uma coisa de outra. Do contrário é pedir bênção a Ganesh e se arriscar.

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Mestre em Biologia