Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ciência em crise, jornalismo em queda?

A busca pela compreensão dos fenômenos naturais e da realidade remonta aos primórdios da humanidade – nós sempre procuramos entender o que ocorre ao nosso redor. No entanto, foi apenas na modernidade, em especial na Revolução Científica dos séculos 18 e 19, que a procura por explicações sobre a natureza e a vida tornou-se a mola propulsora da sociedade. E foi justamente para atender as expectativas de uma sociedade sedenta para ter conhecimento dos avanços científico-tecnológicos que surgiu o jornalista científico ou escritor de ciência. Nessa época a humanidade viu nascer o jornalismo científico, atividade que arrogava para si o direito (e o dever) de transformar conhecimento científico e tecnológico em informações de compreensão popular. 

Mediador entre a ciência e a sociedade, o jornalismo científico foi definido como o porta-voz da fronteira do conhecimento humano. Seu objetivo era popularizar a ciência, atendendo às necessidades do cidadão de compreender como e por que as descobertas científicas e tecnológicas afetam, para melhor ou para pior, o seu dia-a-dia.

De lá pra cá, porém, muita coisa mudou. Não temos mais a mesma impressão otimista e triunfalista criada pela ciência moderna. É na pós-modernidade que os efeitos devastadores das duas grandes guerras, a poluição e destruição da natureza, a urbanização desumana, entre outras coisas, revelaram uma face do progresso científico que o homem não queria ver. Além disso, o próprio método científico moderno, inquestionável até então, entrou em xeque após a ascensão da física quântica e das descobertas da teoria geral da relatividade e da teoria da entropia.

O que ocorre com na pós-modernidade é uma necessidade de reavaliar a noção de ciência e a validade dos métodos científicos – o que muitos chamam de ‘crise da ciência’. Estudos de intelectuais como Jean François-Lyotard, Gaston Bachelard e Thomas Kuhn parecem concordar em um mesmo ponto: a queda do véu de infalibilidade científica cria a convicção de que o conceito de ciência, bem como seus métodos, dependem em grande parte das mudanças sociais e ideológicas da época.

Temáticas religiosas

O mais intrigante é que a ‘crise da ciência’ acaba por romper com tabus da modernidade. O primeiro deles é quebrado quando se aceitam as ciências chamadas de humanas e sociais como ciências legítimas. A perda de credibilidade da mentalidade positivista da ciência moderna dá à subjetividade das ciências humanas o seu devido valor.

Dessa forma, a ciência torna-se mais aberta para aceitar a religião e a filosofia como critérios válidos para a compreensão da realidade. O fracasso das pretensões que o cientificismo tinha de responder a todas as nossas perguntas abrem espaço para o retorno do sobrenatural na compreensão da realidade. O resultado é o enfraquecimento da dicotomia ciência e religião, criada com tanto afinco na modernidade.

Fitoj Capra é um dos pensadores que, estimulados por essa noção da ‘crise da ciência’, defendem a ‘misticalização’ e o subjetivismo da mesma. Não é à toa que podemos observar, nas últimas décadas, o crescimento das chamadas pseudociências, como terapias alternativas, ioga, medicina chinesa, alimentos místico-medicinais e outras práticas.

Não é de se espantar, portanto, que quando a noção de ciência muda, muda também a maneira de se divulgar a ciência. Na verdade, o jornalista científico acaba ficando preso no conceito de ciência e no método científico aceito para sua época. As revistas de divulgação científica brasileiras, como maiores representantes da popularização do conhecimento científico no país, não ficam atrás e também apresentam claramente os efeitos da chamada ‘crise da ciência’ em suas pautas e linha editorial.

A revista Superinteressante, maior periódico do gênero no Brasil, é um bom exemplo para entender como funciona a prática do jornalismo científico na pós-modernidade. Para atender a demanda e as expectativas do ‘interesse presumido’ do leitor pós-moderno, a Super passou por significativas mudanças ao longo de sua trajetória. Logo que foi criado em 1987, a preocupação do periódico era ser reconhecido e aceito pela comunidade científica e por acadêmicos da área. Para isso, a revista assumiu uma postura defensora do que parecia ser um viés positivista da ciência. É por isso que nos primeiros oito anos de existência, aproximadamente 80% das suas capas abordavam as ciências naturais. Já os temas voltados a religiosidade, misticismo ou pseudociência não representavam nem 5% das reportagens de capa.

Curiosamente, os últimos cinco anos da revista foram marcados por um perfil editorial cujo interesse na subjetividade da ciência era confesso. Sobre essa mudança, Adriano Silva, diretor de redação na época, assumiu a nova concepção de divulgação científica da revista.

‘Sempre que publicamos matérias sobre áreas mais subjetivas do saber humano, amparadas na cultura e no comportamento, há a impressão de que não estamos falando de ciência. Para nós, essa distinção não faz sentido. Para a SUPER, tudo isso é ciência. História, filosofia, semiótica e psicologia, por exemplo, são objetos de estudo tão instigantes e merecedores de atenção quanto a física ou a química, a alta tecnologia ou a astronomia.’ (Carta ao Leitor, Julho/2002)

O resultado disso na prática? As estatísticas mostram que, na gestão de Adriano Silva (2000-2004), 75% das capas da Super pertenciam às ciências humanas e sociais. O mais curioso é que, nessa época, o crescimento do interesse das temáticas religiosas, místicas ou pseudocientíficas consolidou-se: 42% das capas da revista giravam em torno destes temas. Um quinto das reportagens de capa da Super de 2000 a 2004 eram voltadas para a religiosidade.

Transição da mentalidade

Curiosamente, o interesse pela temática religiosa é uma via de mão dupla, na qual vem e vão o interesse presumido do leitor e o interesse de vendagem da revista. O que ambos têm em comum? Uma noção de ciência que valoriza cada vez mais o papel das humanidades e que dá abertura ao sobrenatural como critério de verdade. É por isso que das sete revistas mais vendidas da história da Super, quatro [‘A verdadeira história de Jesus’ (dezembro/2002), com 185 mil exemplares vendidos; ‘Bíblia – o que é verdade o que é lenda’ (julho/2002), 132.900 exemplares; ‘Dalai Lama’ (agosto/2002), 129.500 exemplares; ‘Quem matou Jesus’ (abril/2004), 126 mil exemplares.] possuem temática religiosa e todas pertencem ao campo das ciências humanas e sociais.

As mudanças editoriais e temáticas da Super foram tão acentuadas nos últimos anos que colaboraram para a criação da revista Sapiens. Uma das últimas ‘crias’ do selo Super, a Sapiens tem como slogan a frase ‘100% ciência’ e foi definida, nas palavras de Adriano Silva, na Carta ao Leitor de agosto de 2004, como ‘a revista para quem ama a ciência, para quem tem saudade dos primórdios da Super‘.

Essa transição da mentalidade editorial da Superinteressante aponta para um novo paradigma da prática do jornalismo científico no Brasil. Um paradigma que apresenta uma ciência convencional em crise e uma ascensão de uma ciência com abertura ao sobrenatural ao pseudocientífico, com uma quebra da outrora rígida dicotomia entre ciência e religião.

O que se pode exigir?

Uma vez que a nova espécie de divulgação científica da Super reflete a nova concepção de ciência da revista é de se esperar que essa postura tenha implicações diretas ou indiretas na prática do jornalismo científico em todo o Brasil. A Super seria apenas o carro-chefe de um jornalismo científico que justifica a presença de misticismo e pseudociência pelo interesse do leitor por uma ciência mais aberta ao sobrenatural.

O novo paradigma da divulgação científica na pós-modernidade pode, entre outras coisas, impedir que o leitor tenha acesso satisfatório às descobertas científico-tecnológicas por causa da ênfase nas ciências humanas, desvalorizando assim, a produção nacional em Ciência e Tecnologia. Além disso, pode-se ver uma expansão (ainda maior) das pseudociências em detrimento de pesquisas sérias e embasadas.

Definir precisamente o rumo da ciência e, por conseguinte, do jornalismo científico parece-nos uma tarefa tão difícil quanto as mais difíceis equações de física quântica. Afinal de contas, se o próprio conhecimento científico está tão fragilizado pela concepção pós-moderna da realidade, o que se pode exigir dos jornalistas científicos? Como definir que tipo de ciência deveriam eles divulgar? Se a própria ciência entra em crise, o jornalismo entra em queda. Ou em último caso adapta-se a uma nova espécie de ciência. Uma coisa, porém, parece-nos verdade, como já dizia Miguel de Unamuno:

‘As variações da ciência dependem das variações das necessidades humanas, e os homens de ciência costumam trabalhar, quer queiram, quer não, consciente ou inconscientemente, a serviço dos poderosos ou do povo, que lhes pedem confirmação de suas aspirações.’ 

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Secretário de redação da revista eletrônica Canal da Imprensa e professor do Centro Universitário Adventista (Unasp)