Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ciência paga o pato da incompetência jornalística

Impossível bater os olhos na capa da revista IstoÉ do dia 26 de julho e não lembrar do texto publicado por Luiz Cláudio Cunha em março deste ano no OI, sob o sugestivo título de ‘Como a IstoÉ tornou-se IstoEra‘. A referida edição traz estampada a manchete: ‘Falando com o além’ e, abaixo, o subtítulo anuncia: ‘Ciência e médiuns aprimoram a tecnologia e os métodos de contato com os que morreram…’. O que se segue nas páginas internas é, sem meias palavras, um exemplo da pior das crias que a preocupante aliança entre a estultice das pseudociências e o jornalismo medíocre, para não dizer de má-fé, pode gerar.


Deixando de lado as questões religiosas e de crença irracional envolvidas no infeliz texto de autoria de Celso Fonseca, Eliane Lobato e Ricardo Miranda, o que faz a matéria ser merecedora de críticas inflamadas, senão do mais puro asco, é a forma irresponsável com que a ciência é tratada. Irresponsável e temerária. Num mundo em que a ciência e a tecnologia ocupam um espaço cultural e detêm influência muito maior do que o cidadão comum gostaria de aceitar, é fundamental que instrumentos de informação competentes estejam a serviço do interesse público, a fim de manter o leitor a par do que se passa por trás dos panos das realizações científicas.


Jornalismo relaxado


Na reportagem em questão, a IstoÉ atropelou ao menos uma premissa básica da ética jornalística: a isenção. Ao dar chance para apenas um dos lados falar sobre o tema, a saber, o lado daqueles que acreditam piamente na comunicação com o mundo dos mortos e não dão a mínima para o que a ciência verdadeira tem a dizer sobre a querela, a revista incorreu em falta gravíssima com o método científico, que perde cada vez mais espaço para as pseudociências, e com o público, que vai engolir a informação errada. E isso na melhor das hipóteses. Ao que parece, a IstoÉ julgou-se no direito de estender um pouco mais a quantidade de disciplinas e áreas permeadas pela investigação científica tomando a liberdade de efetivamente proclamar uma nova ciência.


A título de ilustração, a única das muitas fontes consultadas na matéria cujas credenciais remetem a um mínimo conhecimento dos rigores científicos é o físico Cláudio Brasil, citado en passant apenas para registrar o maior dos clichês do misticismo em geral; ‘Temos que abrir a mente e aceitar que a ciência não tem explicação para tudo.’ Além do fato de que não é preciso ter um mestrado na USP para repetir a frase com igual propriedade, há uma contradição óbvia entre o que o único cientista entrevistado tem a dizer e o que é transmitido pela matéria acerca do reconhecimento científico do fenômeno. Ora, se dentre as coisas que a ciência não consegue explicar figura a suposta comunicação com mortos através de ondas de rádio, então é claro que este objeto não é alvo da avaliação científica e, portanto, não é ciência. E, a despeito da vontade sincera de terceiros, homens de ciência ou não, assim permanecerá até que se encaixe nos rigores necessários para tanto.


Ainda que o cientista optasse por ser mais claro, ou que a revista selecionasse um trecho melhor de seu depoimento, continuaríamos longe, muito longe, de ter o direito de erguer um novo campo de estudo para a ciência. Isso porque a única fonte com conhecimento de causa suficiente e que abaliza o suposto fenômeno faz parte de uma pequena minoria em sua categoria. Ao generalizar a afirmação, a IstoÉ induz o leitor a crer que o método e a comunidade científica corroboram a transcomunicação, ou que nem questionam a sua validade dentro dos rigores científicos. Dificilmente a mentira poderia ser maior. Se escolher as fontes a dedo para gerar o mínimo possível de discussão crítica e sadia no texto não configura um jornalismo relaxado e parcial, não sei mais o que pode ser.


Contradição em termos


E isso não é tudo. Num dos casos relatados, acerca de uma mãe que perdeu a filha adolescente – Edna – de forma trágica, a revista faz referência a um certo Laboratório Interdisciplinar de Biopscicocibernética, ‘único na Europa totalmente dedicado ao exame e análise científicos de fenômenos paranormais’. Um laudo divulgado pela instituição é utilizado como evidência da origem além-mundo da voz captada por um dos instrumentos, que seria de Edna, e da subseqüente validade da transcomunicação como ciência. O fato é laureado como ‘o primeiro caso autenticado por um laboratório internacional de um contato com um espírito’.


Em suma, os jornalistas da IstoÉ foram incapazes de desconfiar de uma evidência que precisa passar por uma instituição dedicada ao estudo de fenômenos paranormais para ser atestada. Eles aparentemente desconhecem que um dos parâmetros básicos do método científico é a reprodutibilidade dos fenômenos observados e dos resultados obtidos. Existem centenas de milhares de laboratórios no mundo que poderiam ter examinado o material gravado, mas justamente o que surge na reportagem como prova incontestável da aceitação científica é um centro especializado em promover o que está em dúvida: a paranormalidade.


Não conheço tal instituição, mas posso dizer com razoável segurança que o que lá se produz não é ciência. A partir do momento em que um fenômeno paranormal pode ser plenamente estudado, reproduzido e falseado, ele deixa de fazer parte da categoria do sobrenatural e passa a integrar os livros de ciência. A rigor, a simples existência de uma instituição científica que estuda fenômenos paranormais é uma contradição em termos. Eu adoraria tomar conhecimento das contribuições de tal centro de pesquisas à sociedade que o abriga. Que belos serviços devem ser prestados à comunidade com descobertas e experimentos que não podem ser reproduzidos em nenhum outro laboratório do mundo!


Questão crucial


Por questões inerentes a sua formação profissional, o jornalista confere altíssima relevância à palavra de suas fontes, a ponto de tornar-se este o método mais comumente adotado para apurar a realidade. As palavras carregam uma importância exagerada e costumam passar sem filtros de análise pelos blocos de nota, chegando à redação incólumes, por mais absurdas que sejam suas implicações.


É preciso estabelecer de uma vez por todas que evidências anedóticas não servem para comprovar coisa alguma e, não raro, as pessoas mentem deliberadamente, em favor de interesses próprios ou de terceiros, ou, simplesmente, erram. Essa é uma lição que não precisaria ser ensinada aos jornalistas da IstoÉ caso eles prestassem um pouco mais de atenção à própria profissão. Freqüentemente, o tema em pauta na mídia envolve áreas em que a mentira e a contradição se fazem constantes, a política é o melhor dos exemplos. O jornalismo deve pautar-se pela investigação, as fontes são mero ponto de partida para a verificação posterior dos fatos. Tenho certeza de que os redatores da IstoÉ já sabem disso.


O problema nos remete a uma questão crucial: como pode um profissional cujo currículo de formação desconhece completamente todos os referenciais que ajudaram a fazer da ciência o que ela é hoje, de Hume a Popper (com a vaga exceção de Descartes, que é citado mais pela sua visão ultrapassada do que pelo pioneirismo), alguém que não sabe diferenciar um teste duplo-cego de uma evidência anedótica, escrever sobre ciência? E, pior, usar as páginas de trabalho para efetivamente eleger uma nova área do conhecimento humano, pela consulta a ‘especialistas’ no referido método que não se atreveriam, garanto, a concorrer ao prêmio de US$ 1 milhão oferecido por James Randi a quem comprovar, diante de testes científicos controlados, a existência de fenômenos paranormais?


Gestão do saber


O mal que afeta as revistas nacionais não é novidade, nós já conhecemos o caminho da perdição. As dificuldades financeiras e a concorrência pesada com os meios eletrônicos, em especial a internet, obrigam as publicações impressas a se diversificarem. A tentação de lucro fácil e retorno imediato é forte demais para que a maioria das redações possa resistir ao jornalismo rasteiro. As revistas perdem seu caráter analítico e reflexivo, justamente as qualidades que deveriam diferenciá-las no ecossistema jornalístico e que acabam por se perder em meio à superficialidade de temas esdrúxulos.


A IstoÉ não é a primeira e, infelizmente, não será a última revista a enredar-se no lamaçal do jornalismo oportunista, mais preocupado com as vendas do que com o interesse público. A SuperInteressante, por exemplo, outrora conceituada revista de divulgação científica, já passou por este processo há tempos. Nela, as pautas têm sempre um quê de espetáculo, apelando vez por outra a assuntos que costumam agradar à maior parte do público, cujo mote é a especulação pura. Muito antes de servir à educação científica, o jornalismo praticado por este tipo de publicação beira a literatura ou ao absurdo e, quando muito, arrisca pequenas curiosidades científicas, selecionadas mais por sua essência excêntrica do que pela importância dos fatos. A freqüente divulgação de informações erradas na mídia, o sensacionalismo, a priorização de aspectos pitorescos da ciência e pautas recorrentes e viciadas contribuem para ampliar o fosso existente entre a população e o extenso rol do conhecimento científico. Paralelamente, reforçam os já tradicionais pontos de conflito entre jornalistas e cientistas, reiterando a má fama dos primeiros como divulgadores da ciência.


O jornalismo científico tem como objetivo ser o intermediador entre a ciência e a sociedade. É o porta-voz do conhecimento humano, concebido de forma a popularizar a ciência, tornando-a compreensível e permitindo que o público possa criar juízo a respeito. Sua missão é atender às necessidades do cidadão de compreender como e por que as descobertas científicas e tecnológicas afetam, para melhor ou para pior, o seu dia-a-dia. O caráter de formador e educador científico dos meios de comunicação não é apenas reconhecido pelos profissionais da área, é admitido como legítimo há um tempo considerável, no mínimo desde 1978, quando a Comissão Internacional para o Estudo dos Problemas da Comunicação apontou em seu informe provisional: ‘A função principal da comunicação em ciência e tecnologia é a gestão do saber humano – da memória coletiva – de toda a informação que a sociedade necessita para progredir no mundo moderno.’


Honrem seus diplomas


No Brasil cultiva-se o tabu de que certos assuntos são impenetráveis, que não podem ser decifrados ou compreendidos senão por um grupo pequeno de homens, no caso, sábios detentores do conhecimento científico. Este pensamento culturalmente enraizado revela-se extremamente prejudicial aos interesses da sociedade. É de grande importância que o cidadão conheça o potencial de seu país numa área que é estratégica em todos os frontes. Não é concebível que o interesse público se afaste de tal maneira do motor da sociedade moderna a ponto de a atenção com o assunto beirar o descaso. É ainda menos aceitável que os veículos de informação ajudem a agravar o quadro, prestando um desserviço à população, quando deveriam concentrar-se em divulgar o assunto com um mínimo de qualidade e seriedade.


Vale lembrar que o jornalista tem, entre suas atribuições profissionais, um compromisso com o público que supera em muito a ânsia de entretê-lo e de vender edições a todo custo. Entre os parâmetros éticos adotados para garantir a informação embasada e de cunho informativo ou reflexivo, a isenção e o cuidado com a informação deveriam estar acima de todos os outros valores. Não pretendo exigir da IstoÉ uma postura ativa em relação à divulgação científica. Não nutro esperanças de que a dita revista tenha algum potencial para especializar-se em jornalismo científico. O que se pede é apenas o mínimo; se a revista não tem condições profissionais, técnicas ou de qualquer outra ordem para escrever sobre ciência com alguma propriedade, então é melhor que não o faça.


Em suma, peço que os jornalistas da IstoÉ honrem os seus diplomas. A ciência por si só já reúne dificuldades suficientes para difundir-se entre a população, ainda que seus inúmeros resultados benéficos sejam abraçados com rapidez voraz. É necessário deixar claro que o conhecimento científico não precisa enfrentar mais este obstáculo, principalmente vindo de quem deveria ser um de seus mais fortes aliados.

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Estudante de Jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre