Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Como um almanaque

A propósito do artigo ‘Ciência em crise, jornalismo em queda?’, de Allan Novaes [ver remissão abaixo], a divulgação científica para a população sempre foi como um almanaque. Recortes de informações ou notas, curiosidades de pesquisas inacabadas e mal contextualizadas que chegam ao público leigo (ou deveria dizer não-iniciado?). As atividades científicas foram estimuladas pelo Estado e até pela igreja (quando corroborava seus pontos de vista), alardeadas politicamente para apreendermos que o Estado era eficiente nas suas políticas educacionais. A igreja, apesar dos medos de questionamento de seus dogmas, ‘abraçou a fé’, e começou a afirmar que isso não era mais do que evidência da providência divina, porque se o seu deus (com letra minúscula mesmo) tinha feito o humano à sua imagem e semelhança…

Isso também se deve muito aos pseudoprojetos de educação que tivemos neste país. Nunca tivemos projetos de educação que primassem por uma lógica de desenvolvimento do nosso povo. As mudanças foram quase que somente estéticas e casualistas. Projetos devem ter justificativa, discriminação de meios, de recursos, de financiamentos, data de início e fim, e objetivos a serem alcançados: em curto, médio e longo prazo. Nunca tivemos um projeto educacional nessas condições no Brasil.

E falando de ciência, particularmente, a debandada para a dita ciência alternativa, não é um fenômeno local, senão mundial. É um fenômeno histórico, vem como ondas. Algumas, como tsunamis, varrem toda a base de paradigmas existentes e abrem outros, por onde seremos obrigados a navegar. É possível que estejamos nesse limiar de acontecimentos, por isso tantos questionamentos sobre os porquês da realidade.

Ciência e dogma

A ciência puramente positivista, matemático-biológica, é ferramenta de trabalho de um grupo restritíssimo de pessoas com aptidão para trabalhar com ela. É certo que quase todas as coisas de que precisamos, ou que achamos que precisamos, foram criadas por mentes científicas, ou não: meramente criadas por inventores, ou aplicadores da ciência. As técnicas científicas não são somente hipótese, verificação e revisão. O uso do ‘ensaio e erro’ também foi largamente utilizado, e ainda ocorre na ciência.

A ciência positivista foi utilizada e justificada para reduzir o humano a um animal qualquer, a uma máquina qualquer. Diversas analogias foram utilizadas para justificá-la: funcionamos como um relógio, somos uma máquina de trabalhar, um mero animal sem sentimentos, mas com condicionamentos.

As ciências humanas e sociais (essas ciências incompletas), como diria Karl Popper, surgiram exatamente dos abusos cometidos pela maneira estreita de enxergar a vida humana que a visão positivista em si permitia. A partir daí obtivemos jornadas de trabalho de 8 horas (antes era um massacre de 12 a 18 horas); a importância dos cuidados à criança, a partir dos trabalhos de Freud (antes a criança era vista como um miniadulto); a compreensão das diferenças culturais, a importância de cada uma delas para haver respeito às diferenças humanas (antes predominava a noção de raças fracas e fortes, culturas, idem, o que justificou guerras santas ou não e de purificação de raças).

Qualquer ciência (dita no sentido dos antigos, como sinônimo de conhecimento) é questionável, sem poder deixar de sê-lo, sob pena de incorrer numa contradição em si mesma. Toda ciência tem que ser refutável, senão torna-se dogma.

Certezas esdrúxulas

As ciências biológico-matemáticas não são, de maneira nenhuma, apanágio para compreensão do humano. Há de se ver o conjunto: ciências com metodologia lógico-matemática, ciências com metodologia estatística observacional, ciências do ensaio e erro: empírica, especulativa, entre outras.

A proximidade da ciência e da religião é umas destas muitas loucuras que pode produzir esse ser humano absolutamente contraditório, que pode produzir coisas maravilhosas, e também aberrações pelas quais não merece ser chamado de racional. Não é porque a ciência seja mal ensinada na escola comum; ela quase sempre foi. Mesmo os professores de Biologia e os de Matemática costumam ensinar princípios dicotômicos, como se as matérias não representassem um conjunto epistemológico, mas coisas estanques. Não ensinam Biologia, mas História. Não ensinam Matemática, somente Aritmética, ou quebra-cabeças.

Em vez de uma Universidade, temos uma Multiplicidade. Como querer que as pessoas concebam sua natureza, se ela é mostrada fragmentada? Tentar lutar contra Deus é uma luta perdida. A ciência jamais vai preencher no ser humano a sensação de que algo lhe falta. A indigência espiritual que o faz acreditar num Pai que o dirige e cuida. Do medo da morte, que o faz acreditar numa vida além, cheia de alegrias e prazeres que lhe foram negados na existência.

Uma maneira de encarar esses momentos de descrédito científico é mostrar alternativas, comparações, suscitar debates; não demonstrar certezas, essas que mesmo a ciência é incapaz de dar; sermos honestos com a ciência para que não se busquem certezas esdrúxulas.

Revista de entretenimento

Há poucos dias li, (infelizmente não me recordo onde) que as autoridades de saúde americanas estavam encontrando dificuldades para vacinar os cidadãos. Muitos se recusavam, sem motivo, à vacinação por desconfiar da eficácia delas. Isso tem levado o governo americano a fazer campanhas de saúde para a população, esclarecendo o que é e para que serve uma vacina.

O fundamentalismo religioso na ciência é um reflexo do fundamentalismo na política, esse sim, pode ser perigoso. Muitos dos grandes cientistas guardavam sentimentos de religiosidade; porém, não os impediu de fazer a verdadeira ciência. O fundamentalismo na política gerou guerras horrendas, páginas negras na história, de pura ignorância; e a primeira providência destes governos que fomentam essas políticas foi o cerceamento da informação, da opinião, como tem ocorrido com jornalistas em todo o mundo atualmente. Pode ser sintoma de uma grande doença que poderá vir se permitirmos, se não tomarmos medidas preventivas. Uma delas é evitar radicalizações, de qualquer tipo.

A Superinteressante é um almanaque, sim. É uma revista de entretenimento que usa de especulações científicas para divertir. Não deixa de ser uma proposta interessante, se ao menos se assumisse como tal: um almanaque. Como almanaque soa antigo, então, chama-se Superinteressante, um nome ‘marquetoso’, vendável. E é só.

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Psicólogo