Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Dois mundos distintos

Mais uma vez a IstoÉ desinforma seus leitores, misturando ciência com religião. No artigo ‘Um saber do outro mundo’, um trio de jornalistas embarca na falácia, ultimamente muito em voga, da suposta convergência entre ciência e religião. É lamentável constatar que três cérebros foram capazes de produzir tamanha peça de desinformação.

Por que ciência e religião não convergem? Porque lidam com métodos e objetivos diferentes. O objetivo da ciência é responder a questões empíricas, isto é, perguntas que se referem a fatos verificáveis. Como exemplos de questões científicas podemos citar as seguintes: qual é a distância entre a Terra e o Sol? Como e quando surgiram os dinossauros? O que causa a esquizofrenia? Como curar o câncer? Note-se que nem todas as perguntas científicas têm resposta conhecida, e nem ao menos há garantia de que a resposta atual esteja correta ou seja definitiva. Realmente, podemos responder com alta exatidão apenas à primeira pergunta. Quanto às demais, há ainda lacunas no conhecimento. Novos fatos podem derrubar ou corroborar teorias atualmente aceitas, e, destarte, a ciência está em constante modificação e crescimento.

A ciência não responde a questões filosóficas, éticas ou religiosas, pois estas fogem ao seu escopo. Por exemplo, a pergunta ‘é lícito matar embriões humanos para ajudar a salvar outras vidas?’ tem caráter ético, não científico. Quando muito, a ciência poderá assessorar o legislador, informando-lhe que o embrião, nas primeiras semanas de vida, não possui sistema nervoso central e, portanto, não é capaz de sentir dor ou medo. Tampouco é a ciência capaz de responder se deuses existem, se os seres humanos têm alma, se há vida após a morte ou se existe um propósito por trás de tanto sofrimento no mundo. São questões centrais às religiões, mas inverificáveis por meio de fatos e experimentação.

Vários pecados

O conhecimento científico não se baseia na autoridade ou tradição, mas na verificação empírica, e portanto exige uma postura constantemente crítica e cética. As religiões baseiam-se fortemente em tradições, livros sagrados e autoridade de sacerdotes e profetas. O crente é instado a substituir o ceticismo e a visão crítica pela fé. Pela fé, e somente por ela, consegue ele acreditar que Deus criou o Universo em seis dias, com todas as espécies animais e vegetais; que uma virgem engravidou por obra do Divino Espírito Santo, vindo a parir o Filho de Deus; que o Sol parou em seu curso; que é possível comunicar-se com os mortos e psicografar livros por eles ditados; ou que se pode, mediante orações, expelir demônios e curar doenças. Nenhuma destas crenças encontra respaldo científico.

Cada um professa a crença religiosa que bem entender; felizmente nossa Constituição garante a liberdade religiosa, incluída nesta a opção de não possuir fé alguma. Mas isto não muda a constatação de que ciência e religião seguem caminhos diferentes e freqüentemente incompatíveis.

Os autores cometem o equívoco adicional de acreditar que o surgimento de faculdades teológicas assinala uma convergência entre ciência e religião. Teologia não é ciência, não produz novos fatos, nem os verifica. Ela é o estudo de crenças religiosas, que não podem, por sua própria definição, ser refutadas, mas apenas reinterpretadas. Não se confunda a teologia com o estudo científico de determinados aspectos da religião. Psicólogos e psiquiatras investigam, por exemplo, os fenômenos que ocorrem no cérebro de pessoas em êxtase religioso. Arqueólogos buscam indícios que corroborem ou refutem relatos bíblicos. Antropólogos procuram descobrir como as religiões influenciam os hábitos de diferentes sociedades. Como a religião é parte importante das vidas de bilhões de pessoas, é natural que cientistas se interessem em investigar suas implicações, sem contudo abdicar do rigor metodológico.

Confundir a religião como objeto de investigação científica com a religião como objeto de fé é um dos vários pecados do artigo. Estabelecida a confusão, tudo é possível: desde físicos que hipotetizam misteriosas vibrações capazes de alterar a estrutura molecular até psiquiatras que acreditam em cirurgias espirituais; desde veterinários que afirmam comunicar-se por via telepática com seus pacientes até a governadora do estado do Rio de Janeiro, incapaz de distinguir entre ciência e criacionismo, programa religioso que a Sra. Garotinho pretende agora introduzir nas aulas de Biologia, em pé de igualdade com a teoria da evolução.

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Ph.D. do Departamento de Produção e Exploração Animal da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (Unesp-Botucatu, SP)